Flavio Meirelles Medeiros

Código de Processo Penal Comentado | Flavio Meirelles Medeiros

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Edição 2024

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Artigo 3º-B CPP – Funções do juiz das garantias.

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Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (Redação integral do presente dispositivo pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
    I – receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal;
    II – receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código;
    III – zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo;
    IV – ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;
    V – decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo;
    VI – prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente;
    VII – decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral;
    VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo;
    IX – determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;
    X – requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;
    XI – decidir sobre os requerimentos de:
        a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;
        b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico;
        c) busca e apreensão domiciliar;
        d) acesso a informações sigilosas;
        e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado;
    XII – julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;
    XIII – determinar a instauração de incidente de insanidade mental;
    XIV – decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código;
    XV – assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;
    XVI – deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;
    XVII – decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação;
    XVIII – outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo.
        § 1º § 1º O preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído, vedado o emprego de videoconferência.
       
        § 2º Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada.

Apresentando o juiz das garantias

Características do sistema do juiz das garantias: O pacote anticrime, Lei n. 13.964, de 24 de outubro de 2019, introduziu, na ordem processual, o juiz das garantias. A compreensão deste sistema é simples: as funções judiciais de exame da legalidade de medidas cautelares e invasivas na fase de investigação são realizadas por um juiz; a instrução e julgamento do processo são empreendidos por outro. O juiz que autoriza as medidas coercitivas pré-processuais (cautelares e invasivas) não é o mesmo que instrui e julga, muito embora não haja impedimento que este último, mediante prévio requerimento, as autorize. Trata-se de um único processo e que tramita em uma mesma instância. O juízo e a instância são unas. Instâncias são graus hierárquicos recursais. Não há recurso do juiz das garantias para o juiz de instrução. A instância de ambos magistrados é a mesma. Não obstante criado e regulado por alguns poucos dispositivos normativos, configura uma profunda transformação da persecução criminal. É um salto em direção à efetividade da justiça criminal, a qual consiste, grosso modo, na absolvição dos inocentes e condenação dos culpados, ou seja, na proteção de dois princípios constitucionais fundamentais integrantes da relação processual: a garantia individual e a segurança pública. Enfatizamos: o ganho de efetividade é real para os dois princípios. A codificação de 1941 é o procedimento selvagem. O juiz das garantias representa sua domesticação. É a relação processual civilizada. O Código de Processo Penal, embora date de 1941, foi, no curso dos anos, sendo modificado, adaptando-se aos novos tempos e novas realidades. Seu aprimoramento tem sido constante. Não é um texto desatualizado, muito embora necessite de algumas alterações, especialmente na parte recursal – o que não nos parece tarefa difícil –, e de revogação expressa de alguns dispositivos que já se encontram tacitamente revogados. O juiz das garantias ingressou no trem de refinamento da norma processual. Com nomenclaturas diversas, já se encontra em prática em diversos países, entre os quais, Itália, Portugal, França, Alemanha, México, Chile, Paraguai e Colômbia. Não é, por conseguinte, inovação nacional. Sabe-se que a circunstância de um instituto estar em vigor em outros países não constitui certificado de eficiência. É preciso colocá-lo a funcionar para saber de seus defeitos e qualidades. A advertência que convém fazer é a de que devem ser afastadas dessa avaliação as motivações políticas e ideológicas, dado que elas, vaporizando a lógica, aniquilam o pensamento jurídico. O juiz das garantias não é e não pode ser  proativo. É governado pela inércia. Já se tem a polícia e promotor investigando. Este último, é preciso destacar, o fazendo anomalamente quando não se trata de delito cuja investigação policial possa ser prejudicada por influência econômica ou política (o MP só está autorizado a investigar quando presente a probabilidade de influência política/econômica na investigação policial ( esse é nosso entendimento nosso, distinto da jurisprudência – 2024). Seria um exagero colocar mais um, o juiz, para exercer essa função. Juiz liderando investigação é a antijurisdição, a negação da função processual, a usurpação da função policial.

Juiz das garantias ou de legalidade? Juiz das garantias não é um juiz investigador. Menos ainda juiz defensor do investigado. Esse nome, juiz das garantias não foi boa escolha. Não representa o que ele realmente é. Dá margem à equivocada compreensão de que o juiz irá se limitar a proteger direitos do acusado, mantra do catálogo de estultices ideológicas. O juiz das garantias não se limita a avaliar se o requerimento feito pela autoridade investigadora não viola direitos, mas também autoriza medidas invasivas e impõe cautelares, entre as quais a prisão provisória. Ao autorizar medidas invasivas e determinar a prisão, não está se limitando a observar regras de garantia, mas também normas de segurança pública garantistas da coletividade. Ele acende duas velas, uma para a garantia, outra para a segurança. Por essas razões, a terminologia selecionada não foi apropriada. Juiz das garantias é vocábulo que expressa apenas um aspecto de sua atuação, a da garantia. Não revela sua ação em prol do coletivo, aquela que concede efetividade à regra constitucional da segurança pública, dever do Estado e direito do cidadão. Melhor batismo teria sido se fosse dado o nome juiz de legalidade. Expressaria melhor quem ele é realmente.

O processo não abdica da busca inatingível da verdade. Importante interpretação que diz respeito ao acautelamento do inquérito: O sistema de juiz das garantias não afasta a instrução processual da busca da proximidade da verdade. A verdade que se busca no processo não é toda a verdade. Toda a verdade, em princípio, não interessa. O que realmente se passou não tem relevância. A verdade que interessa ao processo é só aquela que se presta para determinar se a hipótese delitiva descrita na inicial é, ou não é, verdadeira. O processo busca a verdade enquanto fim imediato. O objetivo mediato, ou finalidade última, é a de obter comprovação negativa ou positiva da hipótese delitiva descrita na denúncia. Em termos mais precisos, busca-se determinar se as provas autorizam a convicção de que a hipótese delitiva descrita na inicial constitui fato histórico. O processo busca a verdade, mas como ela é incognoscível, se satisfaz com a convicção. Sobre a verdade enquanto objetivo do processo, tema tão mal compreendido atualmente, ver título Recentes críticas ao princípio da verdade real no Capítulo 29 de nossa Breve Teoria Geral do Processo Penal. Perceba-se um dado importantíssimo: as partes, em especial o promotor, precisam intensificar sua proatividade, se comparado com o sistema anterior. O juiz cessa de exercer funções que definitivamente não são suas para, com serenidade e espírito repousado, julgar. O ganho para a imparcialidade é imensurável. O garantismo, às vezes, arma suas próprias arapucas. Defende a ideia de um processo adversarial, onde uma parte, o acusador – membro de instituição extremamente forte e com amplos poderes investigatórios – irá esgrimir com miseráveis que, não raro, sequer dispõem de valores para pagar a passagem do coletivo para comparecer na audiência de instrução e julgamento.

A busca da imparcialidade

Somos o inconsciente: Quando se trata de descobrir e desvendar a força do inconsciente, o alemão Arthur Schopenhauer, com sua admirável teoria da vontade (O mundo como vontade e representação, 1818), chegou à frente de Sigmund Freud. A vontade, para o filósofo do século XIX, é o princípio fundamental da natureza. Essa força não se curva às leis da razão. Escreve que “na realidade o processo de nossos pensamentos interiores não é tão simples como na sua teoria, pois aí muitas coisas estão imbricadas. Para que tenhamos uma ideia disso, comparemos nossa consciência com uma água de alguma profundidade: os pensamentos claramente conscientes constituem a superfície; a massa da água, pelo contrário, é formada pelos pensamentos confusos, os sentimentos, os ecos da intuição e das experiências, perpassados pela disposição de nossa vontade que é o núcleo de nosso ser”. Em diversas outras passagens, Schopenhauer descreve a força da vontade, que, bem traduzida, é o inconsciente. Sigmund Freud bebeu dessa fonte. Alguns anos após, o médico de Viena disse que somos onde não sabemos, e sabemos onde não somos. Não somos apenas o que pensamos ser. Somos mais: somos também o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos; somos as palavras que trocamos, os enganos que cometemos, os impulsos a que cedemos ‘sem querer’. O eu, disse Sigmund, não é o senhor de sua própria morada. 

O computador e o cérebro humano: Um receptor e processador de dados que realiza operações digitais diversas, vale dizer, um computador, funciona de forma distinta do cérebro humano. O computador armazena as informações no HD (disco rígido ou winchester). É sua memória. A qualquer momento, a informação lá armazenada, um entrelaçado de bytes (unidades de informação digital), pode ser resgatada pelo processador (o sistema “pensante” da máquina). Uma vez que seja retirada (deletada) a informação do disco rígido (com a expulsão da “lixeira” do software), não há maneira de recuperá-la. O que foi apagado desaparece. Não deixa vestígios. Não terá nenhuma influência sobre o processador. Com o cérebro ocorre algo distinto. Toda a informação que transita pelos sentidos é gravada na memória, mesmo aquela informação não percebida pela consciência, pela atenção. Não só toda a informação recepcionada pelos sentidos fica gravada, mas também todos os pensamentos, raciocínios, emoções e sentimentos. Se alguém, caminhando, passa por uma árvore junto da calçada, ou por um muro, ou por um portão, mesmo que não preste atenção a essas coisas, e desde que elas tenham estado ao alcance da visão, elas ficarão gravadas na memória. Isso, ao contrário do que se dá com o computador, não significa que essas imagens possam ser resgatadas, ou seja, trazidas à consciência. Se elas não chamaram a atenção, a impressão delas na memória é fraca. É como um carimbo. Se a impressão não é forte, a marca é fraca. Marcas fracas não podem ser lidas. As impressões não impregnadas suficientemente de energia biofísica e química, a consciência não consegue recuperar. Porém, elas ficam ali, gravadas no inconsciente, e, ali estando, possuem o poder de influir no rumo dos pensamentos e das decisões conscientes. Decidimos qualquer assunto não apenas pelas razões que conhecemos, mas, principalmente, pelos motivos que ignoramos. Por essa razão que o pensador de Viena desenvolveu a ideia de que pensamos onde não somos, e somos onde não pensamos.

Cognição motivada, dissonância cognitiva e convicção: Kevin Dunbar, psicólogo da Universidade de Stanford, citado por Rômulo de Andrade Moreira, no artigo As pessoas estão ficando mais burras?, publicado no portal Justificando, esclarece que “nosso cérebro libera uma descarga de dopamina, neurotransmissor ligado à sensação de prazer, quando recebemos informações que confirmam nossas crenças. Somos programados para não mudar de opinião. Mesmo que isso signifique acreditar em coisas que não são verdade”. Dá-se o nome de vieses aos desvios do conhecimento. São estudados pela psicologia. São vários. O desvio de ancoragem se dá quando a mente está focada em uma situação passada que serve de referência. Pode ser uma experiência traumática (um assalto sofrido por um familiar, por exemplo). Escalada de compromisso, a persistência no erro por razões narcísicas. Desvio da repetição, quando uma afirmação é repetida diversas vezes ao ponto de dificultar contradizê-la. Desvio da crença, fundado em fé, religiosa ou não. Desvio da confirmação, a crença naquilo que se acredita por antecipação e que produz o efeito de isolar e desconhecer quaisquer contraindícios e contra-argumentos. O julgador não está imune a esses desvios. A notícia do crime sempre aciona o instinto de proteção da espécie. A notícia do delito grave e revoltante encontra no homem dupla motivação para o prejulgamento: a notícia da gravidade e a revolta. O processo é o sistema, um aparelho, uma engenhosidade, tecnicamente criada e aperfeiçoada por estudiosos no curso dos anos, que objetiva afastar o prejulgamento do julgamento. Antes de ser um procedimento, um conjunto de atos, é uma refinada elaboração do intelecto que busca proteger o juiz da parcialidade. Não se julga bem sem técnica, sem conhecimento, sem ciência do direito. O processo é o instrumento que, em última análise, tem por fim evitar que o julgador acredite naquilo que ele quer acreditar, uma tendência absolutamente humana. O juiz das garantias é mais um aperfeiçoamento desse sistema no sentido de afastar estes vieses da fase de instrução e julgamento. A cognição motivada (acreditar por antecipação) provoca a dissonância cognitiva que, por sua vez, gera a convicção. Motivação cognitiva são razões e motivos vários que interferem na consciência, muitos deles inconscientes. A origem desses motivos está na história pessoal de cada um, nas experiências, nos acidentes de percurso. Cremos que exista algo de constitucional, uma tendência inata consequente da memória genética, que traça rumos da motivação cognitiva (desenvolvemos esse assunto no título Proibição. Motivação e irracionalidade, em comentários ao artigo 28-A). A motivação cognitiva produz a tendência antecipada da convicção. É aquilo que está pronto e aguardando o acontecimento, a notícia. É a maneira como estamos posicionados para assimilar os fatos. A chegada da notícia a nosso aparelho psíquico é amoldada a sua estrutura motivacional. É deformada, consequentemente. A motivação cognitiva é o solo de onde brotam os demais pensamentos, avaliações e conclusões. Nos magistrados, exteriorizam-se nas suas tendências, tais como liberais, conservadoras, garantistas, punitivistas… Para criar uma narrativa, o juiz – um historiador – não escapa da interferência do desvio motivacional. Antes de dar partida à pesquisa, já se encontra presente o viés motivacional. O desvio de motivacional é humano. Representa a ausência de neutralidade. A ordem jurídica não pode exigir neutralidade do indivíduo. Ela é inerente a nossa condição de parte do mundo. De nossa individualidade, identidade, desigualdade. Em um segundo momento, no decorrer da pesquisa, sua mente é contagiada por mais uma disfunção, a dissonância cognitiva. É a venda colocada sobre seus pensamentos e que cega sua consciência. Todo indício que contraria a hipótese elaborada é descartado. Não é relevante. Não tem importância. É anulado por outro contraindício, mesmo que de menor valor probatório. Só aceita aquilo que lhe agrada, que condiz com suas ideias e hipóteses. Há outro fator que adere aos efeitos da dissonância cognitiva. Aquilo que contradiz perturba o andamento dos trabalhos. É o castelo de areia que está sendo construído e um terceiro se intromete dizendo que deve ser considerada mais uma torre. Para atender à sugestão, só desmanchando o castelo e refazendo suas bases de modo a suportar a nova torre. Não é fácil assimilar a ideia de destruir o que foi laboriosamente construído. Ao final, em um terceiro momento, chega a convicção. Quando a convicção é conquistada, a imparcialidade, a razoabilidade, o próprio raciocínio, são calados. Daí a razão de, não raro, ser reconhecida, indevidamente, a má-fé em embargos de declaração. É recurso interposto após o momento da sedimentação do convencimento. Os embargos estão no sentido contrário à convicção. Difícil o julgador ver neles qualquer fundamento quando todas as certezas já estão tuteladas pela convicção. Como sentenciou Friedrich Nietzsche, as convicções são cárceres, mais inimigas da verdade do que as próprias mentiras. A convicção é força animal que aniquila a incerteza. É absolutamente indispensável ao comportamento e a sobrevivência da espécie. Sobre a força da convicção e suas origens, ver o título Indícios, convicção e prova no subtítulo Convicção. A força a serviço da incerteza do título Indícios, convicção e prova, em comentários ao artigo 155. A razão obedece a nossos desejos, nossa vontade. O bom juiz é aquele desprovido de ideologia e dotado de maior capacidade de bloquear a interferência de suas motivações pessoais na decisão. Juízes debilitados por efeito de ideologias são inválidos para o exercício da jurisdição criminal. Ao examinarem a ordem jurídica processual só conseguem enxergar ou o princípio da segurança, ou o da garantia. Devem ser afastados da jurisdição criminal. Podem exercer outra competência, mas são despreparados para a competência que decide o destino de iguais, de acusados e da sociedade. O afastamento não viola a independência do juiz. Encontra razões hermenêuticas e é indispensável para a efetivação de jurisdição criminal responsável.

A contaminação: Bernd Schünemann, professor catedrático da Ludwig Maximilians Universität de Munique, em sua obra Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito, relata pesquisas realizadas com juízes e promotores. Com base nos resultados da pesquisa conclui que o juiz, ao receber a denúncia, instruir o processo e julgar, não está tão somente acumulando funções, mas exercendo atividades conflitantes, o que perturba o julgamento. Entre outras causas, conclui que o magistrado “ao se encontrar numa situação turva, orienta-se pela avaliação precedente e oriunda de uma pessoa por ele aceita como adequada a uma comparação comportamental” (SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013). A avaliação precedente pode ser tanto o relatório do delegado de polícia, onde consta a narrativa da hipótese delitiva e as razões do indiciamento, como a avaliação da promotoria tangente à existência de justa causa. Assiste razão ao jurista alemão. Quem investiga cria hipótese. Quem cria hipótese busca prová-la. Quem busca provar ativa a dissonância cognitiva. A dissonância cognitiva prejudica o conhecimento da contraprova. Quem atinge seu objetivo ama a si próprio mais um pouco. O homem é movido pelo desejo de sucesso de suas empreitadas, qualquer empreitada. Para aplicar a prisão provisória, o juiz precisa, nos termos da lei, se convencer da existência de crime e de indícios de autoria. Também precisa formar convicções imputativas para aplicar medidas invasivas e cautelares não prisionais. Não pode fazê-lo se não se convencer da presença de fumus boni iuris. Uma fez formada a convicção, como se desvencilhar dela por ocasião da sentença? Ora, quando a convicção bate na porta da frente, a razão dispara pela dos fundos. Havendo medidas aplicadas na fase do inquérito – é curioso – o juiz se vê infectado pela convicção antes mesmo da existência de uma ação penal contra o investigado. Seu convencimento precede ao do próprio acusador. Como não reconhecer que no atual sistema o juiz exerce funções conflitantes? A contaminação é pré-processual. O próprio recebimento da denúncia já é ato contaminador, pois é vital fazer um exame da justa causa para admiti-la. Não se submete alguém às provações da ação criminal sem convencimento quanto a indícios autorizadores. Como a narrativa da peça inicial comumente limita-se a descrever fatos, desacompanhada da fundamentação relativa à prova de tais fatos, o juiz deve, a rigor, debruçar-se sozinho sobre a prova inquisitorial. O que assegura às partes que ele não decidirá, ao final, intimamente e embasado na prova inquisitiva, sem conhecimento das partes, sem contraditório? Ora, a sentença, nessas condições, contém motivo oculto, ou não? Obviamente, sim. O recebimento da denúncia constitui ato contaminador do juízo. Fez bem o pacote anticrime ao indicar o juiz das garantias para a prática desse ato.

Culpa inconsciente. O juiz julgando a si próprio: O juiz que julga não pode ser o mesmo que prende. Ao julgar, o juiz deve estar liberto dos grilhões que aprisionaram provisoriamente o acusado ou de outras medidas coercitivas que tenham sido aplicadas. O juízo do magistrado não funciona como o de um computador. Ao julgar não consegue deletar da memória a prisão provisória que decretou.  Pode crer que é capaz disso. Não é, no entanto. Negar e não perceber a influência inconsciente é distinto dela não existir. O inconsciente não pode ser dominado com facilidade. Na fase de julgamento, o magistrado não pode estar aprisionado à possibilidade da intromissão da culpa. A questão é: como se sente o juiz quando reconhece a inocência daquele que manteve preso antecipadamente por meses ou anos? Nada? É profissional, técnico, imune a sentimentos? Aprendeu na faculdade de direito, ou nos livros, a isolar sentimentos de avaliações? Pode não haver, sabe-se, erro judiciário na prisão provisória do acusado inocente. A prisão do inocente pode ter sido perfeitamente legal. Mas, mesmo assim, o sentimento de culpa é inevitável. O reconhecimento racional da inexistência de culpa não dispõe do poder de expulsar o remorso íntimo. O inconsciente é relativamente indiferente à razão, pois na relação entre os dois, quem domina, silenciosamente, é o primeiro. Ele tatua em suas sinapses o sofrimento do outro. Onde o magistrado que prendeu o acusado por longo período encontrará conforto para, reconhecendo-o inocente ao final do processo, absolvê-lo? Antes de absolver o acusado, terá de absolver a si próprio. O juiz que absolve o preso provisório desaprova, indiretamente, sua condução do processo. Juiz não é ser transcendental. É humano. Reconhecer o erro, porém, não é uma qualidade comum entre os homens. Tanto a prisão decretada no curso da investigação, antes do ingresso da ação penal, como a decretada de ofício durante a instrução, provocam uma quase invencível predisposição para a condenação. Diante da prisão do acusado no curso do processo, a dissonância cognitiva é acionada. Sistema de defesa que é, ela ignora contraindícios e prepara o cenário para o desfecho sem culpa (do juiz). É sistema inconsciente de proteção do ego. O ego veste fantasias para se ocultar das repressões do superego e da impulsividade do ID. É função do ego a casa. É assim que o juiz, prisioneiro da culpa, prende por definitivo, em algumas ocasiões, um inocente. Fundamentado nessas razões, o pacote anticrime fez a previsão de um juiz para acompanhar o inquérito e outro para a instrução e, também, vedou a prisão por iniciativa isolada do juiz no curso da instrução. Cabe o registro: entre as medidas coercitivas (invasivas e cautelares), a que mais produz o efeito da culpa é a prisão antecipada.

Juiz populista e guerreiro: Conta a mitologia que Narciso, filho de deuses, era muito belo. Consultado por seus pais, o oráculo previu que o rapaz viveria por muitos anos, desde que não olhasse para seu próprio rosto. As mulheres o amavam dado a sua excepcional beleza. Narciso, arrogante e soberbo, as ignorava. Desprezadas, as mulheres pediram aos deuses que as vingasse. Nêmesis sentenciou que Narciso se apaixonaria pelo próprio reflexo. Com sede, ao se aproximar de uma lagoa para beber, Narciso se deparou com o próprio rosto, e por ele se apaixonou. Paralisado na contemplação de sua beleza, definhou e morreu. Nêmesis o transformou em uma flor, narciso. Operadores de direito, juízes, advogados, promotores, delegados podem ser vítimas do narcisismo. No narcisismo, a grandeza do amor próprio não permite o reconhecimento do outro. Dentre os amantes, o narcisista é o mais fiel: é incapaz de amar o outro. Nada pode se atravessar no entre ele e sua paixão. Carente – pois não consegue estabelecer relações de troca de afeto –, busca constantemente o amor dos outros, como recurso para fortalecer o amor próprio. É personalidade egocêntrica, egoísta e ambiciosa. Ambiciona qualquer coisa que provoque admiração. A admiração alheia tem por única meta tonificar a própria. O operador de direito com essas características pode representar um risco à coletividade. O juiz de índole conservadora, narcisista, pode fazer uso de seu cargo para abastecer o amor a si próprio. Para isso, uma estratégia é buscar o aplauso e o apoio das multidões. A multidão não é racional. É inconsciente grupal. Terry Pratchett, escritor inglês, dizia que a inteligência de uma criatura conhecida como multidão é igual à raiz quadrada do número de pessoas dentro dela. O indivíduo, na multidão, abre mão de sua personalidade e adere à identidade coletiva, uma identidade inferior, da espécie, animal. As multidões são sempre punitivistas, porquanto a notícia de crime é ameaça para a espécie. Irracional, a inconsciência não distingue notícia de delito com o próprio delito. Maquiavel já aconselhava ao príncipe buscar legitimidade nas multidões quando quisesse burlar leis e normas das instituições. A multidão é a mãe de todos os tiranos, nos dizeres de Dionísio de Halicarnasso. Buscar legitimidade perante o povo é estratégia antiga de tiranos. Para o narcisista só o que importa é a sua ambição, a qual, de alguma maneira, irá reforçar seu amor próprio. Como sua carência afetiva é ilimitada, seu projeto é macromaníaco. Sendo juiz, poderá se tornar populista, buscando legitimidade nos gritos das multidões. Elas lhe protegerão para que possa atropelar leis e instituições quando no rumo de seus objetivos. As instituições e seus órgãos correcionais devem sempre ficar atentos quando a cabeça de Narciso desponta na janela. Deve ser decepada imediatamente. Na vacilação, o tempo que restar poderá não ser suficiente para evitar catástrofes institucionais. Depois será tarde. O sistema do juiz das garantias contribui para proteger o Poder Judiciário do juiz guerreiro e populista. O juiz das garantias não investiga. Não prende por conta própria. Aplica a lei autorizando a prisão ou aplicando medidas cautelares coercitivas quando presentes os requisitos legais. Não é das garantias. É juiz da legalidade. Como já dito, acende duas velas, uma para a garantia, outra para a segurança. O sistema o impede de se travestir de notícia para inaugurar e liderar cruzadas contra o Mal.

Análise das objeções ao sistema do juiz das garantias

Exame das críticas ao sistema do juiz das garantias: O sistema do juiz das garantias implica menos custos para o exercício da jurisdição e menos trabalho para os juízes (e mais para as partes). Reforça a efetividade da justiça criminal na medida em que prestigia os princípios da garantia e da segurança pública. Seus dispositivos regulam a relação processual. Não há retrabalho, não há violação da regra do juiz natural e não são necessárias novas leis federais para sua regulamentação.

Não há aumento nem de custos, nem de trabalho: Os juízes das garantias são os mesmos magistrados que hoje atuam em primeira instância. Há uma distribuição, ou repartição, de funções. Os juízes não trabalham em dobro. O mesmo trabalho que era feito por um juiz é dividido entre dois juízes. Cada um faz uma parte.

O juiz das garantias não é defensor: Como já dito, a expressão juiz das garantias, adotada pelo legislador, não é a mais adequada. Passa a impressão que o juiz fiscaliza apenas as garantias do investigado, o que não é verdade. O juiz é fiscal das garantias, sim, mas não só delas. É ele quem autoriza medidas invasivas e cautelares, inclusive as prisões temporária e preventiva. Logo, conclui-se, é juiz da legalidade. Fiscaliza tanto a garantia quanto assegura o cumprimento do princípio constitucional da segurança pública. Ora, se é ele quem, estando presentes os requisitos da prisão provisória, a decreta, é, por óbvio, também juiz da segurança pública.

As normas do sistema são de competência e constitucionais: Como o juiz das garantias é norma de competência, e tendo em vista o disposto no artigo 96, inciso I da CF, o qual dispõe que compete privativamente aos tribunais elaborar seus regimentos internos dispondo sobre a competência, há quem sustente que a lei federal não poderia tê-lo criado. Essa interpretação do artigo 96 é inadequada. Competência diz respeito à relação processual, logo a competência para legislar sobre ela é da União, conforme artigo 22 da CF: compete privativamente à União legislar sobre direito processual. Não fosse competência matéria de direito processual, o CPP seria inconstitucional em todos seus capítulos que versam sobre a competência, a saber, competência pelo lugar da infração (artigos 70 e 71), competência pelo domicílio ou residência do réu (artigos 72 e 73), competência pela natureza da infração (artigo 74), competência por distribuição (artigo 75),  competência por conexão ou continência (artigos 76 a 82), competência por prevenção (artigo 83) e competência pela prerrogativa de função (artigos 84 a 87). Quando o artigo 96, inciso I da CF, diz que compete privativamente aos tribunais elaborar seus regimentos internos dispondo sobre a competência, a menção é à competência dos diversos órgãos que compõem os tribunais, suas turmas, órgãos especiais e, também, à competência pela natureza da infração, a qual pode ser regulada por leis de organização judiciária, conforme artigo 74 do CPP que dispõe: “A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri.” As leis de organização judiciária estão autorizadas a estabelecer normas de competência tendo em conta a natureza da infração, ou seja, o tipo de delito. Essas normas podem criar varas especializadas para o processo e julgamento de determinados delitos, como por exemplo, violência doméstica, delitos de trânsito, crimes contra o sistema financeiro, organização criminosa, drogas, crimes financeiros, crimes contra menores, crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. No caso do juiz das garantias não é criada competência em razão da natureza da infração. O sistema do juiz das garantias não considera a natureza da infração. Toda infração está, salvo algumas exceções, sujeita a ele. Damos mais um passo. Não se diga que a relação que se estabelece entre o juiz das garantias e a autoridade investigante e/ou o acusado não é uma relação processual, vale dizer, não se trata de processo. Onde há pedido de jurisdição, onde há direito à jurisdição, onde há dever e poder de prestar jurisdição, o que há é relação processual. Seja relação acessória, seja relação prévia à relação principal, pouco importa, é relação de processo, ou seja: processo. Logo, concluindo, a instituição do juiz das garantias é norma de processo, cuja competência para legislar é da União. Não há, definitivamente, inconstitucionalidade.

Não há necessidade de que os inquéritos ou que os processos sejam eletrônicos: O argumento de que para instauração do juiz das garantias os inquéritos e processos devam ser eletrônicos nos pareceu, em princípio, convincente. Porém, melhor meditando, não é acertado. Há outras maneiras de juiz e delegado se comunicarem e trocarem documentos com registro de autenticidade. Essa comunicação pode ser realizada por meio de e-mails, com ou sem anexação de documentos. Registre-se que qualquer celular é capaz de fotografar e enviar documentos para o computador, a partir do qual pode ser enviada mensagens. Celulares também enviam e-mails. Para assegurar a autenticidade dos e-mails basta configurar o servidor para que eles sejam nele mantidos, o que pode confere autenticidade. O sistema de comunicação virtual WhatsApp não se presta para esta comunicação. É dotado de criptografia de ponta a ponta. As mensagens não podem ser resgatas no servidor. Não é possível autenticar as mensagens. Devem ser utilizados os endereços de e-mails oficiais da autoridade policial e do juiz, o que outorga segurança e autenticidade às comunicações. Há ainda o sistema CISCO, que permite a realização de videoconferência. A resolução n. 314/2020 do CNJ dispõe sobre a conjugação de esforços do CNJ e da empresa CISCO com o propósito de fornecer aos magistrados brasileiros uma solução de videoconferência para a prática de atos processuais via internet, especialmente audiências e sessões de julgamento. Com o Termo de Cooperação Técnica n. 007/2020, o sistema CISCO foi disponibilizado para todos os juízos e tribunais. Pode ser utilizado para a realização de atos virtuais, entre os quais a videoconferência, em sua plataforma – www.cnj.jus.br/plataforma-videoconfencia-nacional. Não há impedimento que o Termo de Cooperação seja estendido para que a autoridade policial o opere. O sistema CISCO possibilita a realização de teleconferência, com ou sem gravação e, também, o envio e recebimento de documentos. As gravações podem ser salvas na nuvem ou no computador. Uma dúvida: e se não existe rede de internet na comarca? Há telefone e correios. O que não for urgente pode ser solucionado pelos correios. O que for urgente pode ser resolvido por telefonema entre a autoridade policial e o juiz das garantias. Após o telefonema, ambos deverão lançar um auto de comunicação por telefone. As atas de comunicação, assinadas pela autoridade policial e pelo juiz, contêm os requerimentos e as decisões judiciais. Uma solução temporária, porquanto em poucos anos não haverá local no Brasil que não disponha de rede de internet. Não há qualquer irregularidade nesta forma de comunicação. É aplicável à espécie o artigo 370, parágrafo 2º do CPP: Caso não haja órgão de publicação dos atos judiciais na comarca, a intimação far-se-á diretamente pelo escrivão, por mandado, ou via postal com comprovante de recebimento, ou por qualquer outro meio idôneo. Note-se que o artigo 289 autoriza o juiz determinar a prisão por qualquer meio de comunicação. Igualmente o artigo 299. Se até a prisão pode ser ordenada por qualquer meio de comunicação, o que no processo não poderia ser feito também por qualquer meio de comunicação? Se o escrivão pode se comunicar por qualquer meio, por que não poderiam o juiz e a autoridade policial? Além do mais, há o princípio segundo o qual não há nulidade quando, praticado por outra forma, o ato tiver atingido o seu fim.

Comarcas com um só juiz. Videoconferência e audiência de custódia: Afirma-se que o sistema não poderia ser implantado nas comarcas onde só há um juiz. Em verdade, a possibilidade de faltar juiz se dá também nas comarcas que tenham dois juízes, já que um deles pode estar gozando férias. O parágrafo único do artigo 3º-D, ao prescrever que nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, regulando organização judiciária, é inconstitucional. Algumas audiências de custódia terão de ser, necessariamente, realizadas por videoconferência. Sabemos da importância da presença física do acusado para a realização da audiência de custódia. A comunicação direta e pessoal é mais completa. Nela o olhar, a maneira de falar, a entonação da voz, os gestos são melhor percebidos. Com a proximidade, as expressões adquirem significado mais completo. Com uma mesma oração podem ser expressos significados opostos, dependendo das variações de entonação que se der à voz no curso da fala. A proximidade física melhora essas percepções.

Não há violação do princípio do juiz natural: O princípio do juiz natural se traduz em que o magistrado deve ter sua competência determinada antes do fato a ser julgado. Não pode ser indicado, designado, nomeado para julgar um caso específico. Estando a competência do juiz das garantias previamente prevista em lei, soa excêntrico o argumento de que haveria violação do juiz natural.

Desnecessidade de edição de novas leis: O juiz das garantias já está suficientemente normatizado pelo pacote anticrime. São desnecessárias novas leis federais, mas apenas novas leis de organização judiciária.

Competência e funções do juiz das garantias

Normas aplicáveis ao inquérito e ao procedimento investigatório criminal (PIC): As normas relativas ao juiz das garantias não se aplicam apenas ao inquérito policial. São extensíveis ao procedimento investigatório criminal (PIC). Daí a razão do artigo 3º-B dizer que o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal. A propósito, na falta de regulamentação em lei, às investigações realizadas pelo Ministério Público são aplicáveis as normas do CPP relativas ao inquérito policial, salvo se colidentes com normas de mesma hierarquia. A propósito na ADI 6.298 ficou decidido que todos os atos praticados pelo Ministério Público como condutor de investigação penal se submetam ao controle judicial (HC 89.837/DF, Rel. Min. Celso de Mello) e fixar o prazo de até 90 (noventa) dias, contados da publicação da ata do julgamento, para os representantes do Ministério Público encaminharem, sob pena de nulidade, todos os PIC e outros procedimentos de investigação criminal, mesmo que tenham outra denominação, ao respectivo juiz natural, independentemente de o juiz das garantias já ter sido implementado na respectiva jurisdição.

Comunicação imediata da prisão (inciso I): A prisão de qualquer pessoa deve ser comunicada ao juiz. Deverá ser feita ao juiz das garantias, não ao juiz de instrução. A CF, em seu artigo 5º, inciso LXII, dispõe que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. O artigo 306 do CPP faz previsão desta comunicação. Remetemos o leitor aos comentários ao artigo 306.

Receber o auto da prisão em flagrante (inciso II): O auto de prisão em flagrante deve ser enviado ao juiz no prazo de vinte e quatro horas após a realização da prisão (ver artigo 306, parágrafo segundo). Recebendo o auto, o juiz providenciará no cumprimento das disposições do artigo 310 do CPP.

Zelar pela observância dos direitos do preso (inciso III): Ao juiz das garantias cumpre zelar pelos direitos do preso. Deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, conforme artigo 310 do CPP.

Comunicação ao juiz de instauração inquéritos e de investigações do MP (inciso IV): A notícia de delito, chegando ao conhecimento da autoridade policial, deve ser investigada. O início desta investigação deve ser comunicado ao juiz das garantias. Esse dever se estende ao Ministério Público. Tendo em vista o decidido na Adi 6.298 e conexas todos os atos praticados pelo Ministério Público como condutor de investigação penal se submetam ao controle judicial, tendo sido fixado o prazo de até 90 (noventa) dias, contados da publicação da ata do julgamento, para os representantes do Ministério Público encaminharem, sob pena de nulidade, todos os PIC e outros procedimentos de investigação criminal, mesmo que tenham outra denominação, ao respectivo juiz natural, independentemente de o juiz das garantias já ter sido implementado na respectiva jurisdição (item 4 da parte dispositiva do acórdão). Dessa maneira, uma vez implementado o juiz de garantias, a não comunicação da investigação que estiver em andamento no Ministério Pública importa nulidade da apuração. A obrigatoriedade de comunicação por parte do MP não viola o princípio acusatório. Princípio acusatório diz respeito ao processo, não às investigações, e significa que é o Ministério Público quem promove a ação penal pública. Promover significa propor e dar andamento à ação. Tem o sentido, principalmente, de fazer uso dos meios legais objetivando provar o fato descrito na peça inaugural do processo. Não guarda qualquer relação com a atividade investigatória. Não é possível transportar o princípio para fora do lugar ao qual ele pertence. Nas investigações há necessidade de comunicação ao Poder Judiciário. O estado de direito, no qual se inserem as garantias individuais, não admite poder sem controle e investigações totalmente secretas. Poder, principalmente aquele exercido em relação ao cidadão, deve ser fiscalizado por outro poder. Só o poder controla outro e lhe impõe limites. O investigado não pode ficar à mercê do investigador, sem que este último seja fiscalizado.

Prisão provisória e outras medidas cautelares (inciso V): Compete ao juiz das garantias decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar. Sobre o tema, ver comentários ao artigo 310 do CPP.

Prorrogação de prisão provisória ou outra medida cautelar (inciso VI): É da competência do juiz das garantias prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório, Consoante o artigo 316 e seu parágrafo único, o juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena da prisão se tornar ilegal. A prisão temporária encontra-se regulada pela Lei n. 7.960/1989 e cabe quando presentes as seguintes condições: quando for imprescindível para as investigações do inquérito policial; quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; e quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado. A prisão preventiva encontra-se prevista no artigo 311 e seguintes do CPP.

Produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis (inciso VII): É da competência do juiz das garantias decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e as não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral. Havendo urgência ou necessidade de que a medida seja efetivada sem o prévio consentimento do investigado, não há óbice que o contraditório seja realizado após a realização da produção da prova. O artigo 156, inciso I, faz semelhante previsão ao dizer que o juiz pode ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida. Na Adin 6298 e outras conexas foi concedida interpretação conforme ao inciso VII do art. 3º-B do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/2019, para estabelecer que o juiz pode deixar de realizar a audiência quando houver risco para o processo, ou diferi-la em caso de necessidade.

É possível a prorrogação do prazo de duração do inquérito (inciso VIII): O inquérito, estando o indiciado preso, deve terminar no prazo de 10 dias (artigo 10 do CPP). Cumpre ao juiz das garantias prorrogar o prazo de duração do inquérito (e do PIC) estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade. Consoante o parágrafo 2º do presente dispositivo, se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada). Na ADI 6.298/19 e conexas foi decidido que o juiz pode decidir por novas prorrogações do inquérito diante de elementos concretos e da complexidade da investigação (item 9 da parte dispositiva do acórdão proferido na ADI 6298 e conexas. A possibilidade de prorrogação é estendível, por incidência do artigo 3º do CPP, à investigação dos delitos com procedimento regulado por leis especiais

Trancamento do inquérito policial (inciso IX): O juiz das garantias pode determinar o trancamento do inquérito. Essa medida encontra cabimento quando, como exemplos, o fato investigado não for típico, ou quando se encontrar presente a prescrição. Provas insuficientes não justificam trancamento de inquérito, pois o que o inquérito tem por fim é justamente buscar provas.

Requisição de documentos, laudos e informações (inciso X): O juiz pode requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação. Compete ao juiz das garantias assegurar a legalidade do inquérito. Logo, pode e deve requisitar informações relativas ao inquérito (e ao PIC – procedimento investigatório criminal do MP). A requisição é ordem. Não se trata de simples pedido. O que caracteriza uma ordem não é a circunstância de haver ou não hierarquia entre quem a dá e quem a recebe. O que diferencia um simples requerimento (que pode ser negado) de uma ordem é que essa, ao contrário daquele, encontra previsão legal. Quando a lei determina o cumprimento do requerimento, trata-se de ordem. Sobre o assunto, ver subtítulo Requisições das autoridades judicial, ministerial e policial são para ser cumpridas no título Relações entre polícia e o ministério público, em comentários ao artigo 4º.

Medidas invasivas de sigilo (inciso XI): Existem medidas que, por serem invasivas ou limitadoras do direito da liberdade, só podem ser aplicadas havendo autorização judicial. Diz-se que são medidas em que há reserva de jurisdição. Só podem ser decretadas pelo juiz das garantias se houver requerimento. São elas: interceptação telefônica, telemática e de outras formas de comunicação; de afastamento de sigilos (fiscal, bancário, de dados); busca e apreensão; e outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado. A propósito de prova ilícita e de afastamento de sigilo, ver comentários ao artigo 157. Sobre busca e apreensão, ver comentários aos artigos 240 a 250 do CPP.

Julgamento do habeas corpus (inciso XII): O habeas corpus impetrado contra ato da autoridade policial é processado e julgado pelo juiz das garantias, não pelo juiz de instrução. Porém, se o investigador for o promotor, a lógica do sistema remete o julgamento do habeas corpus ao tribunal. Se a autoridade coatora for Promotor de Justiça ou Procurador da República, a competência para processar e julgar o habeas corpus é do tribunal (Tribunal de Justiça e Tribunal Regional Federal, respectivamente). A justificativa desse entendimento está em que, como a coação ilegal pode, em tese, caracterizar delito de abuso de autoridade é conveniente que o órgão que examina e julga a apontada coação ilegal seja o mesmo que dispõe de competência para processar e julgar eventual delito de abuso de autoridade. Conclusão contrária violaria a lógica do sistema. Relativamente ao habeas corpus, ver artigo 647 e seguintes. Assinale-se que o habeas corpus pode ser concedido de ofício pelo juiz das garantias (ver título Habeas corpus de ofício em comentários ao artigo 654).

Incidente de insanidade mental (inciso XIII): Quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal. O exame poderá ser ordenado ainda na fase do inquérito, mediante representação da autoridade policial ao juiz das garantias (artigo 149, parágrafo 1º). Descabe iniciativa de ofício, pois se trata de produção de prova.

Quem recebe a denúncia é o juiz da instrução (inciso XIV):

Na ADI n. 6298 foi declarada a inconstitucionalidade da expressão “recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código” contida na segunda parte do caput do art. 3º-C do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/2019, e atribuir interpretação conforme para assentar que a competência do juiz das garantias cessa com o oferecimento da denúncia. Vale dizer, a competência para receber a denúncia ou queixa não é do juiz das garantias, mas sim o da instrução. Escritores, em artigos publicados diversos, teceram diversas e contundentes críticas contra essa interpretação feita pelo Supremo Tribunal Federal. Contrariando a correnteza, nos parece acertada a interpretação judicial. E acrescentamos, os articulistas se fixaram nesse tópico apenas, não examinando todas demais conclusões a que chegou o Tribunal Superior em acórdão com mais de mil páginas e que debateu e examinou com profundidade temas de grande importância, apontando diversas soluções que em sua maioria merecem ser elogiadas. A impressão que esses articulistas dão é a de que o julgamento da Adin teria banido o princípio acusatório do processo penal, o que é longe de ser verdadeiro. Desenvolvemos esse assunto, explicando as razões por que é correta a interpretação do Supremo Tribunal Federal em comentários ao artigo 396 no título Fundamentação do recebimento e as razões por que é o ato é praticado pelo juiz da instrução.

Direito do investigado e de seu defensor de acesso à investigação (inciso XV): O inciso XV repete o disposto no artigo 7º, inciso XIV da Lei n. 8.906/1994. O advogado possui o direito de examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital. No mesmo sentido, a Súmula vinculante 14 do STF: É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa (vide jurisprudência posterior à publicação da Súmula). Esse inciso XV ressalva que não há direito de acesso a diligências em andamento. O direito ao acesso aos autos não abrange elementos de prova ou indiciários ainda não formalmente documentados. O sigilo é necessário às investigações. O resultado da investigação, uma vez formalizado, é que não pode ser subtraído do conhecimento do investigado ou de seu defensor. O acesso engloba o direito de fazer cópias. Constitui previsão do artigo 7º, parágrafo 12 da Lei n. 8.906/1994, que a inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV (direito de exame de autos), o fornecimento incompleto de autos, ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo, implicam responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade daquele que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa.

Admissão de assistente técnico (inciso XVI): Compete ao juiz das garantias admitir assistente técnico indicado pelo investigado. O investigado possui o direito de acompanhar perícias por meio de assistente técnico. A autoridade policial não pode negar o exame de corpo de delito quando requerido pelo indiciado (artigo 184 do CPP). Pode, sim, negar a realização de perícias que não forem necessárias ao esclarecimento da verdade. Por esclarecimento da verdade, entenda-se esclarecimento da verdade relevante para a aplicação de norma penal. Negado o pedido de exame de corpo de delito pela autoridade policial, o que constituiria uma excepcionalidade, ou mesmo de uma perícia, o mesmo pedido pode ser feito novamente ao juiz das garantias. Se negado novamente, cabível é a impetração de habeas corpus perante o tribunal. O inquérito visa a apuração da verdade, favorável ou não ao indiciado. Disso resulta a possibilidade de o defensor apresentar quesitos para a perícia (artigo 7º, inciso XXI, letra “a” da Lei n. 8.906/94). A não concessão dessa oportunidade ao indiciado implica nulidade, especialmente se a perícia não puder ser repetida na instrução criminal. Tratando-se de exame de corpo de delito, pode se cogitar, dependendo do que havia para ser esclarecido, em nulidade absoluta do próprio processo. É que, neste caso, já não se está diante de mera nulidade verificada na fase inquisitiva, mas de nulidade processual, pois, conforme detalhado no título Distinguindo prova ilícita de nulidade, subtítulo Obtenção de prova mediante ato processual e nulidade, em comentários ao artigo 157, o exame de corpo de delito, embora praticado no inquérito, é ato jurídico de natureza processual. Faltante o exame ou de requisito de sua existência, estar-se-á diante de nulidade absoluta (artigo 564, III, “b”).   

Homologação de acordo de não persecução penal ou de colaboração premiada (inciso XVII): Quando o acordo de não persecução penal ou o de colaboração premiada forem formalizados durante a investigação é da competência do juiz de instrução decidir sobre a homologação. O acordo de não persecução penal é regulamentado pelo artigo 28-A do CPP.

Prazo para a audiência de custódia e videoconferência: O preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído, vedado o emprego de videoconferência. Consoante decidido na ADI n. 6.298, o prazo de 24 horas poderá, no caso de impossibilidade fática, ser estendido e a vídeo conferência está excepcionalmente autorizada mediante decisão da autoridade judiciária competente, desde que este meio seja apto à verificação da integridade do preso e à garantia de todos os seus direitos.

Fim

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