Código de Processo Penal Comentado | Flavio Meirelles Medeiros

Artigo 3º-C CPP – Competência do juiz das garantias

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Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
    § 1º Recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
    § 2º As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
    § 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
    § 4º Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Artigos 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3ª-E e 3º-F suspensos sine die por liminar concedida nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 pelo Ministro Luiz Fux.

Ainda sobre competência do juiz das garantias

A competência do juiz das garantias cessa com o recebimento da denúncia: Há erro material no inciso XIV quando se refere ao artigo 399. Entenda-se que a menção é ao artigo 396. Ver nossos comentários no subtítulo Recebimento da denúncia ou queixa do título Competência e funções do juiz das garantias, em comentário ao artigo 3º-B, inciso XIV.

A competência não abrange o processo das infrações penais de menor potencial ofensivo: Os juizados são regulamentados pela Lei no 9.099, de setembro de 1995, a qual, no artigo 61, considera infrações penais de menor potencial ofensivo para efeitos de sua incidência as contravenções penais e os crimes aos quais a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa. Observe-se que, no concurso de infrações de menor potencial ofensivo é afastada a competência dos juizados especiais quando a soma das penas ultrapassar dois anos (RHC 046646/SP, rel. ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 07/04/2016, DJE 15/04/2016). A Lei no 10.259, de 12 de julho de 2001, dispõe sobre a instituição dos juizados especiais cíveis e criminais no âmbito da Justiça Federal.

Não se aplica para aos processos que visam coibir violência doméstica e familiar: Foi acertada a cautelar concedida pelo Ministro Dias Toffoli quando, na ADI N. 6.300, suspendeu a aplicação do sistema do juiz das garantias nos casos de violência doméstica ou familiar. Segundo o artigo 5º da Lei n. 11.340/2006, configura violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras ações, qualquer ação ou omissão que lhe provoque sofrimento psicológico. A violência psicológica é definida no inciso II do artigo 7º dessa lei e abrange qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima, ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento, ou que vise degradar ou controlar ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir, ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. Há, também, no inciso IV do mesmo dispositivo, a descrição da violência patrimonial entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer necessidades. Nem sempre, melhor dizendo, muitas vezes, não há crime e, mesmo assim, ausente a tipicidade penal, a jurisdição é ativada por meio da Lei n. 11.340/2006. O principal objetivo desse texto legal é a prevenção do delito. Nos casos de violência doméstica e familiar, cumpre à autoridade policial remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência. Não é conveniente dividir as funções jurisdicionais neste tipo de procedimento. Uma das razões, não obstante a imposição de medidas protetivas de urgência (verdadeiras cautelares), é a de que poderá não haver juiz de instrução, pois que pode não haver crime e, por consequência, não ser ofertada denúncia. Uma segunda razão é que a instituição do juiz das garantias no procedimento dos delitos de âmbito doméstico importaria em casos em que o juiz das garantias não seria o juiz da terra (tomando emprestada essa expressão que é utilizada para testemunhas que são ouvidas por precatória em outra comarca que não a do juiz processante), configurando uma impropriedade na medida em que, nas causas envolvendo família, é essencial que o juiz esteja próximo dos acontecimentos. Não apenas para resolver questões urgentes – e urgência é a regra nesse assunto -, como também para inquirir as pessoas envolvidas. O tema é especializado e requer atenção especial dado aos números referentes à violência doméstica, razão pela qual o legislador incentivou a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (artigo 14 da Lei n. 11.340/2006). A não aplicabilidade do juiz das garantias aos casos de violência doméstica é definitivamente resolvida com o disposto no artigo 13 da Lei n. 11.340/2006, quando preceitua que ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei. O sistema dessa lei especial, como visto, conflita com o juiz das garantias.

Juiz das garantias e tribunal do júri: De quando em quando, nações descem às trevas. O ambiente político provoca reflexos na interpretação das leis, que se vulgariza, se populariza, se moraliza imoralmente. Gritos de multidões virtuais, secundados por máquinas repetidoras, papagaios bytes, seduzem e deslumbram intérpretes. Umberto Eco, escritor e filósofo italiano, comentou que “a internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar”. Pouco importa a literalidade do Código de Processo Penal, corroborado pelo princípio constitucional, as decisões balançam e se revezam quando se discute o momento do início da execução, se antes ou depois do trânsito em julgado. Discute-se, de uns tempos para cá (2020), sobre a possibilidade de o condenado pelo Tribunal do Júri estar ou não sujeito à execução provisória. Qual seria o fundamento? Afirma-se que é a soberania da decisão dos jurados. Cumpre assinalar que o artigo 5º da CF encontra-se posicionado no Título II, o qual versa sobre os Direitos e Garantias Fundamentais. O caput do artigo 5º, ao qual está vinculado o inciso XXXVIII, que trata da soberania dos veredictos, diz que “garante-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)”. Ora, a dedução a que se chega é a de que a competência do júri e a soberania de suas decisões foram estatuídas constitucionalmente em favor do acusado, jamais contra ele e em favor dos jurados. A soberania dos veredictos está prevista no título que trata dos direitos e garantias fundamentais. Deve, portanto, ser interpretada em favor do acusado. A soberania do veredicto foi instituída em favor do acusado, não em seu desfavor, ou não seria uma garantia individual. Deve ser examinada sob a ótica da proteção do acusado. Há outro argumento que afasta em definitivo opiniões de cunho moral: se o condenado por homicídio deve cumprir a pena por antecipação, por qual razão o mesmo tratamento não deve ser dado ao estuprador, ao latrocida, ao sequestrador? Ainda, a consideração de que a imensa maioria dos casos de homicídio que transitam pelo Tribunal do Júri não são qualificados (mediante pagamento, motivo torpe, emprego de veneno, fogo, a emboscada etc.), e sim praticados por motivos passionais, onde, muito frequentemente, os efeitos do álcool estão presentes: escaramuças de bêbados ou desafetos que já vinham há tempo se desentendendo, rivalidades fálicas e coisas do gênero. A maioria dos condenados é constituída por acusados primários. Sem periculosidade. O homicídio foi um acidente em suas vidas. A tendência homicida, a personalidade homicida, o homicida em série, não constituem regra. Ao contrário, são exceções. Mais uma observação necessária: o significado da expressão “garantia da ordem pública” (um dos requisitos para a imposição de preventiva) parece ter sido congelado, aprisionado por alguns escritores. Garantia da ordem pública não simboliza apenas a possibilidade de “o acusado voltar a delinquir”. Garantia é preservação. Ordem é tranquilidade, serenidade, segurança. Há aqueles que querem proibir dar ao símbolo a integralidade de seu significado. A afirmação de que a gravidade do delito por si só não constitui motivo para a prisão preventiva é correta. Por outro lado, é um mal-entendido dizer que a gravidade do delito associada à prova da existência do crime e fortes indícios de autoria não constitui razão para a preventiva. A gravidade do delito, além de poder revelar periculosidade, quando seguida de punição tardia, provoca lesão à ordem pública. A ordem espancada, a insegurança da sociedade, representam fundado receio de perigo e confirmam a existência concreta de fatos contemporâneos. Um latrocida, um estuprador, aquele que fez uso de tortura para matar, o sequestrador que machucou ou matou sua vítima, nessas hipóteses, sem qualquer incerteza, diante da prova de delito e fortes indícios de autoria, cabível é a prisão preventiva. A qualquer momento. Antes ou depois da decisão de 1ª instância. Os homicidas não estão todos em um mesmo barco. É preciso examinar as circunstâncias do homicídio e do acusado. A preventiva resolve com efetividade e justiça o problema da liberdade após a decisão do júri. Legitimar a execução provisória no caso de condenação pelos jurados com fundamento na soberania do júri é violentar a lei e a lógica do sistema.

Não vinculação das decisões do juiz das garantias

É um só juízo. Revogação e anulação de atos do juiz das garantias: Qualquer decisão do juiz das garantias – seja sobre cautelar, medida invasiva, recebimento de denúncia – não vincula o magistrado que lhe sucede: o juiz de instrução. A qualquer momento o juiz de instrução pode reexaminar cautelares aplicadas, incluindo as prisões preventiva ou temporária. São duas funções. São exercidas por juízes distintos. Mas o juízo, a instância, é uma só. Instâncias são graus hierárquicos recursais. Não há qualquer recurso contra ato do juiz das garantias para o juiz de instrução. A instância de ambos magistrados é a mesma. Quando o juiz de instrução revoga ou anula uma decisão do juiz das garantias é como se ele estivesse voltando atrás de sua própria decisão. É que o juízo e a instância são uma só. Não há atuação simultânea desses magistrados. Recebida a denúncia, o juiz de instrução assume a jurisdição. Não há impedimento a que o juiz de instrução volte atrás e revogue, ou anule, o recebimento da denúncia feito pelo juiz das garantias. Uma vez que seja recebida a denúncia, qualquer questão pendente é da competência do juiz de instrução. Sobre o tema, ver título Providências judiciais frente à inépcia no subtítulo Reconhecimento da inépcia da denúncia depois de recebida do título Providências judiciais frente à inépcia em comentários ao artigo 395.

Reexame das medidas cautelares em curso: Há necessidade de reexame das medidas cautelares em curso no prazo máximo de 10 (dez) dias, diz o parágrafo 2º. Esse dispositivo precisa ser interpretado, pois em sua literalidade viola o princípio acusatório. Não se deve permitir ao juiz mergulhar solitário no exame de prova. Se não houver pedido de reexame fundamentado da defesa, o juiz – antes de ingressar no exame da prova dos requisitos da preventiva e decidir – deverá abrir prazo para as partes se manifestarem, primeiramente ao promotor e, a seguir, à defesa. Deve decidir com contradição, o que significa dizer com a colaboração. Essa é a leitura constitucional do dispositivo. Não está autorizado o exame solitário da prova por parte do juiz, especialmente em razão de que a ação penal está recém-iniciada. A contaminação deve ser repelida. O sistema do juiz das garantias é sistema de repartição de trabalho e de responsabilidades. A cultura de centralização na figura do juiz precisa ser abandonada. As partes necessitam assumir com responsabilidade suas funções. No modelo anterior, o juiz ficava sobrecarregado de deveres e responsabilidades. Exercia funções que não eram suas.

Destino da documentação da investigação.

Acautelamento dos autos do inquérito: O parágrafo 3º do presente artigo estatui que os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria do juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa. Esse dispositivo é crítico. É antiga aspiração de alguns escritores a ausência de contato entre o juiz e a prova inquisitiva. Crítico porque contraria nossa cultura. Se for para dar um passo deste tamanho, é preciso construir uma interpretação intermediária. De qualquer maneira, a interpretação intermediária que propomos nos parece acertada e, portanto, pode ser adotada como definitiva. Há entendimento sustentando que os autos do inquérito fazem parte dos documentos que devem ser apensados ao processo. É uma tentativa de burlar a literalidade da lei e, também, de sua intenção. Como qualquer tese assistemática, seriam necessárias muitas palavras para advogar esse quid pro quo. De nada serviria o sistema do juiz das garantias se o juiz, já no início do processo, pudesse se contaminar com a prova inquisitiva. A tese oposta, fantasiando sobre as vantagens para o acusado de um processo adversarial, apadrinha a ideia de que o juiz deve ficar totalmente isolado da prova do inquérito. Processo adversarial é o acusador selecionado e extremamente qualificado versus o advogado generalista do bairro. Tratando-se de defesa promovida pela defensoria pública, tem-se, no âmbito da Justiça Federal, de um lado, uma instituição, o MPF, com orçamento anual de R$ 7.050.649.84 (sete bilhões), e de outro, a Defensoria Pública Federal com orçamento de R$ 588.659,16 (meio bilhão) – projeto de lei orçamentária exercício financeiro de 2020. A instituição acusadora dispõe de doze vezes mais recursos humanos e materiais do que a defensora. Paridade de armas? De um lado, um órgão com poder investigativo, com poder de requisição, detentor em suas sedes de aparatos de interceptação de comunicações. Do outro, uma instituição desprovida de poder, detentora apenas de direitos. Quem tem poder manda. Que tem direito pede. Não se pode transformar o processo em um procedimento adversarial. Esse sistema é estadunidense. Está em desacordo com nossa formação cultural e com as origens de nosso processo criminal. Não é possível isolar completamente o juiz da prova inquisitorial. Nenhum cidadão, em sã consciência, dotado de formação ética, irá decidir o destino do outro com meias verdades. Não vemos como o juiz possa tirar a liberdade de alguém lhe sendo ocultado provas. Seria Cabra Cega processual. A venda dos olhos da deusa romana Dice representa a regra da isonomia, não significa a possibilidade de julgar sem conhecer provas. No penal, vigora a regra da verdade real. A verdade real não é objetivo do juiz, é princípio do processo. É o processo que busca a aproximação máxima da verdade. Já o objetivo o juiz é determinar se a prova dos autos autoriza o convencimento de que a hipótese delitiva descrita na inicial ocorreu. A melhor aproximação da verdade se dá com contraditório e sem inquisição. Busca da verdade não significa recorrer à inquisitoriedade, ao contrário. Luigi Ferrajoli afirma que se deve julgar com a verdade formal. É preciso entender o que o festejado autor da obra Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal quis dizer com verdade formal. O jurista italiano dá a essa expressão o significado de prova que está nos autos. Está absolutamente correto. Não se pode julgar com prova extra-autos. É com a verdade formal (prova autuada) de Ferrajoli que se é capaz de aproximar melhor da verdade real. Mas, então, como solucionar o problema da contaminação do juiz pela prova inquisitiva? Ocorre-nos uma interpretação do presente dispositivo que, ao mesmo tempo em que evita a contaminação do juiz, não o isola da completamente da prova indiciária produzida no inquérito. Primeiramente um aspecto muito importante: a comparação entre a prova da instrução e a colhida nas investigações, especialmente a testemunhal, contribui enormemente para aferir o valor da prova. Essa comparação é útil para ambas as partes. É bastante comum o processo em que, para embasar a tese defensiva, são examinadas dialeticamente as contradições entre os depoimentos inquisitoriais e os da instrução. Isso não favorece apenas as partes. Vai de encontro ao fim do processo de máxima aproximação da verdade, mesmo que inatingível.

Proposta de interpretação intermediária: O sistema do juiz das garantias objetiva evitar a contaminação, impedindo que o juiz de instrução tenha contato direto com a prova inquisitorial e imponha, antes do início do processo, medidas invasivas e coercitivas. Conforme o parágrafo terceiro desse artigo 3º-C, os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria do juízo. O tema de competência do juiz das garantias não é, no que diz respeito a fases, o processo criminal, mas sim a investigação criminal, a qual perdura até o recebimento da denúncia. Recebida a denúncia, os autos são enviados ao Judiciário, onde ficam acautelados na secretaria. No entanto o legislador não explica o que quis dizer com acautelados. É necessário elaborar interpretação sistemática para encontrar o significado desta expressão. Acautelado é aquilo que é seguro, guardado. Os autos do inquérito ficam, portanto, guardados na secretaria. O parágrafo 4º do dispositivo ora em exame expressa que fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias. Assegurar expressamente o acesso somente às partes, e mantê-los guardados, sinaliza, com relativa clareza, que o juiz não detém a chave da porta do armário. Interpretação em sentido contrário corresponderia à derrocada do sistema de juiz das garantias. As partes podem anexar peças do inquérito ao processo? Sim e não. Não, no curso da instrução do processo. Sim, ao final. A juntada de peças do inquérito ao processo, em seu início, sendo peças inquisitivas e não contraditadas, se lidas pelo magistrado, podem contribuir para que ele faça um pré-juízo relativo à hipótese delitiva. Se examinadas ao final da instrução, o juiz já possui certo grau de convencimento fundado em prova contraditada. Quer dizer, ele já é detentor de um pré-juízo contraditado. Sua imparcialidade, nesta altura, está reforçada. As partes podem trazer novos elementos, desta feita dos autos do inquérito. Esses novos elementos indiciários devem ser contraditados. Nada será juntado aos autos sem que seja dada oportunidade para a outra parte se manifestar. Primeiro, a acusação anexa documentos. A seguir, a defesa. O prazo comum, no caso, não seria uma boa solução, pois a defesa, desconhecendo o que a acusação vai agregar, ficaria na contingência de anexar documentos, alguns desnecessários e outros contrários ao interesse que representa na relação processual. Segundo o artigo 402, produzidas as provas, ao final da audiência, o Ministério Público, o querelante e o assistente e, a seguir, o acusado poderão requerer diligências cuja necessidade se origine de circunstâncias ou fatos apurados na instrução. Esse dispositivo autoriza o requerimento de diligências que tenham relação com fatos apurados durante a instrução. Essa é a fase de relacionar aquilo que foi apurado na instrução com os documentos (e testemunhos autuados do inquérito estão integrados à definição de documentos) constantes do inquérito. Logo, uma conclusão muito importante: os indícios e provas apurados na fase investigativa, os quais tiverem relação (guardarem vínculo de natureza probatória) com circunstâncias ou fatos apurados na instrução, e somente esses documentos, podem ser juntados pelas partes ao processo. A ideia de que as provas inquisitivas pré-processuais são desprovidas de valor esbarra na clareza do artigo 155, que impõe a regra de que o juiz não pode fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação. Se o juiz não pode decidir com base exclusiva na prova da investigação é porque pode decidir também com fundamento nela. As provas do inquérito valem para o convencimento, desde que estejam em harmonia com aquelas coletadas durante a instrução contraditória. Podem ser úteis tanto à acusação quanto à defesa. Se confirmadas pela instrução processual, favorecem a acusação. Já se em contradição e desarmonia, contribuem para a declaração de inocência. O artigo 155, portanto, não foi revogado pelo acautelamento das investigações. Sobre o valor da prova pré-processual, ver título Valor probante do inquérito em comentários ao artigo 4º do CPP. Todo pedido da parte no curso do processo não dispensa, em princípio, a respectiva fundamentação. Para agregar ao processo documentos da investigação, as partes deverão fundamentar o pedido demonstrando a condição do artigo 402: necessidade juntada que se origine de circunstâncias ou fatos apurados na instrução. A liberdade para juntar documentos aos autos é, por conseguinte, limitada. A parte não possui o direito de juntar qualquer documento aos autos. Não referimos somente a documento contido no inquérito, e sim a qualquer documento. Pudesse a parte juntar quaisquer documentos ao processo, nada impediria peticionar diversas vezes requerendo a anexação de documentos variados, sem qualquer relevância, ao ponto de transformar os autos em uma incompreensível pilha de papéis (reais ou virtuais). A anexação de todo o inquérito, como se dava até então, é impensável no novo sistema. Assim sendo, as principais conclusões: 1 – embora o juiz não tenha acesso aos autos do inquérito, ele não é segregado do universo probatório; 2 – as partes (e não o juiz) selecionam o que é importante para a prova, evitando, dessa maneira, o desvio cognitivo do juiz/investigador; 3 – a responsabilidade e a participação das partes no processo aumentam; 4 – o juiz se vê desembaraçado de indagações investigativas, o que lhe propicia estudar e julgar melhor, ou seja, com melhor aplicação do direito processual e penal, o que resulta em ganho de efetividade dos princípios da garantia e da segurança pública.

Apensação de provas irrepetíveis, medidas de obtenção de prova ou de antecipação de prova: Algumas provas não podem ser repetidas, são irrepetíveis. Exame do corpo de delito e algumas perícias não podem, em algumas ocasiões, ser repetidas. Devem ficar em apenso ao processo, onde podem ser examinadas diretamente pelas partes e pelo juiz. Medidas de obtenção de provas são aqueles requerimentos do investigador e respectivas decisões autorizadoras dadas pelo juiz das garantias relativas a medidas invasivas e cautelares. Esses documentos devem ser depositados pelo juiz das garantias em apenso ao processo. As medidas estão arroladas exemplificativamente no artigo 3º-B, inciso XI e suas alíneas. Indagação que não é fácil de responder é se o resultado das medidas invasivas deve ser apensado ou se fica no interior do inquérito, local onde o juiz de instrução inicialmente não pode conhecer. Não é uma questão fácil. Nelson Hungria costumava lecionar, em sua inigualável obra Comentários ao Código Penal, que a melhor maneira de aferir se um enunciado está correto é verificando se ele não pode resultar em consequências absurdas. Por hipótese: um inquérito cuja prova indiciária se funda exclusivamente em prova documental e conteúdo de interceptação telefônica. Essas duas provas se completando e demonstrando a prática do delito. Isoladas, porém, não comprovam coisa alguma. No curso da instrução, o juiz só terá acesso à prova documental? Seria um absurdo, pois se assemelharia a uma instrução feita em quarto escuro. E o que é grave, sem contraditório. Logo, a conclusão que a lógica do absurdo nos autoriza a chegar é a de que o resultado das medidas invasivas deve ficar apenso ao processo. Porém, reconhecemos, é tema que merece mais estudo. E o que são medidas de antecipação de provas? O artigo 156, inciso I, faculta ao juiz ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, a adequação e proporcionalidade da medida. O artigo 225, por sua vez, prevê que, se qualquer testemunha precisar ausentar-se, ou, por enfermidade ou por velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tomar-lhe antecipadamente o depoimento. O juiz das garantias, consequentemente, pode determinar a colheita antecipada da prova. Como é prova que deve se submeter ao contraditório, neste caso, excepcionalmente, o juiz das garantias funcionará como juiz de instrução. Tratando-se de colher o depoimento de testemunha, será designada audiência com a participação do investigado, seu defensor e o promotor. Como se trata de prova submetida ao contraditório judicial, pode – e deve – ser apensada ao processo (e não acautelada). A propósito, o inciso VII do artigo 3º-B dispõe que compete ao juiz das garantias decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral.

Fim

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