Flavio Meirelles Medeiros

Código de Processo Penal Comentado | Flavio Meirelles Medeiros

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Edição 2024

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Artigo 28o-A CPP – Acordo de não persecução penal

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Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);   (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I – se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II – se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III – ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV – nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.   (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Negociação. Avanço ou retrocesso? Antecedentes. Menos mal.

Acordo de não persecução penal

A negociação do direito de punir: No sistema da common law, a transação é uma negociação. Negociação entre as partes. Não há fiscalização judicial. No sistema europeu, há possibilidade de fiscalização judicial. Na Europa, a transação foi introduzida pelo Ministério Público na década de 1970. Na atualidade, diversos países, inclusive latino-americanos, adotam a conciliação, tais como Alemanha, Holanda, Espanha, Itália, Colômbia, Chile, Uruguai e Argentina. No Brasil, a conciliação é introduzida em 1995, com a Lei n. 9.099/1995 (juizados especiais) para os delitos apenados com pena não superior a dois anos, por meio dos institutos da transação (artigo 76) e suspensão do processo (artigo 89).

Será mesmo um avanço? A introdução do acordo de não persecução penal vem sendo muito festejada. Temos dúvidas, porém, quanto aos benefícios do acordo para a política criminal. Os elogios ao sistema têm por principal fundamento a redução, no judiciário, de processos de importância menor, possibilitando, por consequência, que os juízes possam dar mais atenção aos procedimentos criminais mais importantes e graves, reduzindo custos da justiça criminal. Não é levado em consideração a circunstância de que o processo criminal, mesmo que seu final seja previsível em muitos casos, representa ameaça de perda de liberdade ao acusado.  Ele fica, durante anos, sob o risco de ser preso. Tal ameaça de prisão, no subjetivismo do acusado, não cessa enquanto o processo não chega a seu termo, mesmo quando se sabe de antemão que o processo não resultará em recolhimento à prisão, ainda que sobrevindo sentença condenatória. Ora, esse desenrolar do procedimento, aquela sequência de atos processuais, com inquirição de testemunhas, interrogatório, intimações, obrigatoriedade de comparecimento, produzem o mesmo efeito que se espera da pena, qual seja o de prevenção especial, que objetiva a ressocialização do delinquente (afirmação válida para quando o acusado é culpado). Não é tão somente a pena prevista em abstrato, ou a aplicada em concreto, que dispõe de efeitos preventivos e repressivos do crime. O processo também busca esses resultados. O processo cujo prognóstico é o de finalizar sem prisão possui relevância menor. Não há pressa, pois a celeridade, enquanto princípio, não se aplica a todos os processos – é princípio do processo civil, do processo criminal do acusado preso e do acusado em que o acervo probatório existente indica a inocência. Não havendo pressa em julgá-lo – ao contrário, pois quanto maior for a dosagem temporal do remédio tanto mais provável será a cura –, não se pode dizer que o procedimento atrapalhe o andamento dos processos relevantes. Ele pode esperar. Se prescrever, em vez de resultar em sentença, seja dito, não faz qualquer diferença do ponto de vista da política criminal. Não, não podemos concordar que os instrumentos de conciliação representem avanço para a política criminal. A circunstância de terem sido adotados em diversos países não diz muito. É experiência nova. Há muitos anos existe na lei estadunidense, e lá é um desastre. O ladrão (furto) de hoje pode ser o assaltante (roubo) de amanhã. Aquele que se envolve com delitos de lesões corporais (e há os que fazem com certa frequência) pode se torna o homicida do futuro. Simples audiência de conciliação, que é possível antever,   informal e rápida, nesses casos, fica muito longe em termos de eficácia para a política criminal quando comparada a um longo e ameaçador processo criminal (apontamos: o acusado em processo cujas provas lhe são favoráveis dispõe de instrumentos para fazer valer o princípio da celeridade). Não nos convencem os benefícios de transações penais. Nenhuma delas. Praticamente todos os delitos que não envolvem violência podem, em tese, ser incluídos no sistema de acordo de não persecução. Entre eles há delitos graves e que merecem maior reprimenda, nem que seja a punição (pedagógica) de um longo processo criminal. Entre outros delitos sobre os quais estamos a nos referir, têm-se concussão (artigo 316 do CP), corrupção ativa (artigo 333 do CP), corrupção passiva (artigo 317 do CP), peculato (artigo 312), falso testemunho ou falsa perícia (artigo 342), falsificação de documento público (artigo 297 do CP), furto (artigo 155 do CP – inclusive algumas formas de furto qualificado) e incêndio (artigo 250). A população não conhece, em geral, o direito e a lei. O mesmo não se dá com seus transgressores. Delinquentes conhecem diversos dispositivos do código penal, em especial aqueles relativos aos crimes que costumam praticar. Logo adquirem o conhecimento dos delitos que não resultam em prisão quanto  praticados pela primeira vez. Quantos não aproveitarão essa oportunidade? Está sendo desprezada – até porque pouco comentada – a finalidade pedagógica do processo penal.

Resolução 181. O antecedente normativo: A mãe do acordo de não persecução penal é a resolução n. 181 do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP. Trata-se de resolução, indiscutivelmente, fora da lei. Ao ser editada, não dispunha de fundamento legal. Violava o princípio da obrigatoriedade. Causa estranheza essa portaria, porquanto incumbe ao Ministério Público, conforme preceito constitucional, a defesa da ordem jurídica (artigo 127 da CF). No Supremo, duas ações têm por objeto sua constitucionalidade, as ADIs 5790 e 5793, propostas pela Associação dos Magistrados Brasileiros e pelo Conselho Federal da OAB. A avó do acordo de não persecução é a transação penal dos juizados especiais. A bem da verdade, esse acordo não é algo tão novo. Trata-se da transação dos Juizados Especiais sob nova roupagem (artigo 76 da Lei n. 9.099/95), só que aplicável a crimes mais graves. Comparadas as duas formas de conciliação, verifica-se que são idênticas em diversos aspectos.

O limite imposto. Dos males o menor: O acordo só pode ser realizado se a pena mínima cominada ao delito for inferior a quatro anos. Se a pena mínima fosse maior, ou se não fosse estabelecido qualquer limite de pena para a realização do acordo de não persecução, estaríamos sujeitos ao mesmo desastre do sistema punitivo estadunidense. Lá, onde o promotor tem mais compromisso com a política e com a comunidade do que com o direito, não é incomum a utilização de duas “estratégias” de negociação adversarial por parte da acusação: uma, convencer o acusado que dispõe de mais provas do que realmente possui; duas, convencer o acusado de que as provas das quais dispõe tipificam um delito mais grave do que aquele que realmente elas indicam. Ambas estratégias com um único fim: obter, sob ameaça, o pior acordo para o acusado. Singularidades de um sistema admirado por alguns escritores da atualidade, deslumbramento que só se justifica pelo fato de alguns não assimilarem que o direito tem por substrato a história e a cultura de uma nação. O que é bom para um povo pode ser péssimo para outro. Sobre esse tema, o grupo Prerrogativas, constituído por conhecidos juristas brasileiros, teceu interessantes considerações no artigo Desconstrução do pacote “anticrime” de Moro e o freio contra o retrocesso, publicado na Revista Conjur. Segundo os signatários da publicação “o ultrapassado e inquisitório Processo Penal brasileiro não comporta um espaço negocial sem limite de pena, a infantil americanização proposta por Moro, em que o Ministério Público poderia negociar uma pena com o corrupto, mas também com o traficante e mesmo com o estuprador. Imagine-se o diálogo: temos prova de sobra de que o senhor é o autor do estupro, temos DNA, reconhecimento etc. (…) Poderíamos pedir uma condenação a 12 anos de prisão, mas se o senhor confessar, fechamos em 6 anos no regime semiaberto, pode ser? Claro que sim! E a vítima, precisa concordar? Não, ela nem fala. O pacote “anticrime” não deu espaço algum para a vítima nessa negociação (…) Mas se a negociação beneficia o criminoso confesso, é o martírio do inocente. Acusações abusivas, prisões cautelares utilizadas como instrumento de tortura e coerção (em um sistema carcerário medieval e dominado por facções), ameaça de penas elevadas, enfim, todo um rosário de instrumentos de tortura pode ser utilizado no plea bargaining para fazer com que a tal ‘voluntariedade’ dos acordos seja puro golpe de cena, mera retórica ilusória para sedar os sentidos de incautos (…) Moro estava propondo a dose letal para a realidade brasileira, que felizmente ficou reduzida, no projeto aprovado, ao acordo de não persecução penal (…)”.

Condições. Pena mínima. Justa causa. Confissão. Causas proibitivas.

Condições cumulativas obrigatórias do acordo: Conforme o caput do artigo 28-A, não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as condições dos incisos I a V, ajustadas cumulativa ou alternativamente. São quatro as condições cumulativas e obrigatórias para a realização do acordo: justa causa; confissão de infração penal sem violência ou grave ameaça, e com pena mínima inferior a quatro anos; acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime; que o investigado aceite se submeter às condições dos incisos I a V do artigo 28-A. Ausente qualquer uma dessas condições, o acordo não pode ser efetivado. Observe-se que para aferição da pena mínima cominada ao delito, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto (parágrafo 1º do artigo 28-A).

Aferição da pena mínima: Para aferição da pena mínima cominada ao delito, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto. Nas causas de aumento devem ser aplicadas o fator que menos aumenta; nas de diminuição, o que mais diminua. No caso de tentativa (artigo 14 do CP), por exemplo, em que a pena pode ser reduzida de um a dois terços, para fins de cálculo da viabilidade do acordo, ela é reduzida em dois terços.

Justa causa enquanto condição obrigatória: O acordo, diz o caput do dispositivo ora em exame, é viável se não for caso de arquivamento. Quando é caso de arquivamento? Pressupostos processuais são os requisitos essenciais para que a relação jurídica processual se estabeleça. Entre outros, temos: inexistência de litispendência, de coisa julgada, de ilegitimidade, de incompetência absoluta, de suspeição. São três as condições genéricas da ação: a possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir e a legitimidade. As condições genéricas da ação são aqueles requisitos que devem estar presentes em toda e qualquer ação. Condições específicas da ação são aquelas exigíveis para apenas algumas ações. São exemplos de condições específicas: a representação, a requisição e o lançamento de crédito tributário. O fato investigado deve ser crime, ou seja, deve haver possibilidade jurídica do pedido. A prescrição, por igual, afasta a possibilidade jurídica do pedido. A falta de interesse de agir se dá quando não há elementos indiciários suficientes para a propositura da ação, vale dizer, os indícios existentes devem apontar para que tanto o crime quanto a autoria sejam prováveis. É necessária a presença de legitimidade. Em crime de ação privada, há ilegitimidade ativa do MP. Se o investigado é menor de 18 anos, há ilegitimidade passiva da parte. Mais um senão que fazemos às transações penais: não faltarão casos em que a presença de elementos indiciários suficientes para a propositura da ação será auferida pela reação do investigado. Sob ameaça de processo, se confessar, serão considerados presentes os indícios. Dessa forma, não se saberá jamais se o negócio foi fechado por medo ou por culpa.

Confissão formal e circunstanciada: O investigado, enquanto condição obrigatória do acordo, deve, na letra da lei, confessar formal e circunstancialmente a prática de infração penal. De nada vale a confissão feita na fase policial para fins de acordo. Por outro lado, se não houver confissão no inquérito, não há impedimento a que ela seja produzida no acordo. A exigência de confissão, a qual não é exigida para fins de suspensão do processo ou transação no Juizado Especial, é inconstitucional e ilegal. Dispõe o artigo 5º, inciso LXIII da CF, que o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do advogado. O Pacto de San José da Costa Rica – promulgado pelo Decreto n. 678/1992 –, no artigo 8º, letra “g”, estatui como garantia mínima do acusado o direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a declarar-se culpado. No acordo não há processo, porém, em havendo descumprimento, poderá existir. Mais descabida é a exigência de que a confissão seja circunstancial, já que, neste caso, estaria havendo verdadeira produção de provas contra si, além da confissão. Caso haja confissão no acordo, e em caso de sua rescisão, a primeira consideração é de que o acordo, assim como a confissão, deverá ficar acautelado em cartório, à disposição exclusiva das partes (ver: 1 – subtítulo O processo não abdica da busca inatingível da verdade no título Apresentando o juiz das garantias do artigo 3o-B; – 2 subtítulo Importante interpretação que diz respeito ao acautelamento do inquérito do título Apresentando o juiz das garantias do artigo 3o-B; 3 – subtítulo Proposta de interpretação intermediária do título Destino da documentação da investigação do artigo 3o-C; 4 – e título Destino da documentação da investigação do artigo 3o – C). Na hipótese de que o juiz venha a ter conhecimento da confissão, é preciso ter em conta que ela foi obtida com o objetivo de concluir o acordo, ou seja, a voluntariedade não implica sua veracidade. É que o investigado pode ter confessado unicamente para não correr os riscos do processo, com receio das suas consequências. A confissão do acordo de não persecução, isolada, vale tanto quanto aquela efetivada na delação: nada absolutamente. A ser reconhecida válida a exigência de confissão, o que a lei reivindica é que o investigado confesse o delito, ou seja, que reconheça sua participação. Não há qualquer obrigação de informar o nome de coautores, pois, nessa hipótese, estar-se-ia diante do instituto da delação premiada. O ato solene do acordo deve ser gravado por sistema de vídeo.

Condições cumulativas e/ou alternativas: O artigo 28-A, parágrafo 2º, incisos I a IV, arrola condições para a formalização do acordo. Essas condições podem ser estatuídas alternativa ou cumulativamente. São elas: I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), à entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. A exigência de cumprir outra condição indicada pelo Ministério Público não é ilegal, pois não se trata de pena. Se fosse pena, incidiria a regra de que não há pena sem lei anterior e, nesta hipótese, ela seria ilegal. Não é punição, e sim uma condição. É legal desde que, obviamente, seja proporcional e compatível com a infração penal imputada. O prazo dessa exigência não pode ultrapassar aquele fixado para a prestação de serviço à comunidade. É que não havendo previsão de prazo para a exigência do MP, aplica-se, por analogia, o inciso III do artigo 28-A.

Causas proibitivas do acordo: Está vedado o acordo de não persecução: nos casos de competência do juizado especial (quando as penas cominadas somadas não são superiores a dois anos); se o investigado for reincidente, ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; ter sido o agente beneficiado nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. Há reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior (artigo 63 do CP). Não prevalece a condenação anterior se, entre a data do cumprimento ou a extinção da pena e a infração posterior, tiver decorrido um período de tempo superior a cinco anos, computado o período de prova da suspensão da pena ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação (artigo 64, inciso I do CP). A lei n. 11.340/2006 define os delitos praticados no âmbito de violência doméstica.

Jurisprudência

Lei penal no tempo: O acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei n. 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia (HC 607.003-SC, Rel. Min. Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 24/11/2020, DJe 27/11/2020).

Acordo sem justa causa é nulo: A celebração de acordo de transação penal não acarreta a perda de objeto de habeas corpus em que se alega atipicidade da conduta e ausência de justa causa. O julgador deve realizar controle sobre a legitimidade da persecução penal, de modo que casos de manifesta atipicidade da conduta narrada, extinção da punibilidade do imputado ou evidente inviabilidade da denúncia por ausência de justa causa acarretem a não homologação da proposta (HC 176.785, rel. min. Gilmar Mendes, DJE de 18-5-2020).

Intimação para audiência e fato atípico: Constitui constrangimento ilegal a intimação para a audiência preliminar para proposta de transação penal, se o fato é atípico (HC 86.162, rel. min. Carlos Velloso, 2ª T).

O advogado. Audiência. Legalidade. Devolução. Recusa de homologação.

Participação do advogado e necessidade de prévio conhecimento do conteúdo da investigação: O acordo de não persecução penal deve ser formalizado por escrito. No ato devem estar presentes o investigado, o promotor e o advogado. O promotor deve providenciar para que o defensor tenha conhecimento da prova. Deve fazê-lo com alguns dias de antecedência, pois o exame dos autos pelo defensor possibilita, entre outros cuidados, concluir a propósito da existência ou não de indícios suficientes de crime e autoria. Não havendo indícios ou provas não há razão para entabular acordo.

Audiência de homologação do acordo. Exame da legalidade: Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deve verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade. Voluntariedade significa que o investigado faz o acordo espontaneamente, sem coação. No exame da legalidade, além da legalidade e proporcionalidade das condições estabelecidas, o juiz deve ouvir de parte do promotor (quem, alternativamente, poderá apresentar um memorial resumido) quais os indícios a justificar a justa causa. A seguir, dará a palavra ao defensor, que poderá contraditar ou concordar. Não há o que justifique o juiz examinar a prova sozinho, sem contradição. Mesmo sendo ele o juiz das garantias (nesta fase ainda não se deu o recebimento da denúncia, portanto a competência para homologação do acordo é do juiz das garantias, e não do juiz da instrução).

Devolução do acordo: Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, os autos serão devolvidos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.

Execução do acordo: Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.

Recusa de homologação e providências: O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou quando não for realizada a adequação a que se refere o parágrafo 5º deste artigo. Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações, oferecimento da denúncia ou arquivamento. Ambas as partes podem interpor recurso em sentido estrito da decisão que recusar homologação (artigo 81 inciso XXV). Se a recusa se der por parte do Ministério Público, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior para fins de reexame da decisão, consoante artigo 28 deste Código.

Descumprimento. Cumprimento integral.

Descumprimento do acordo e suspensão condicional do processo: Se forem descumpridas as condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia. Tendo em vista os princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo, a rescisão não pode ser efetivada sem que seja dada vista a seu defensor. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado pode ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo.

Cumprimento integral do acordo e antecedentes criminais: A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não devem constar da certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo (não celebração de novo acordo). Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade. Consoante o artigo 202 da Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal), cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, bem como qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei. 

Remessa à instância superior. Audiência de custódia. Retroatividade.

Remessa ao órgão superior: No caso de recusa por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior na forma do artigo 28 deste Código. No Ministério Público Estadual, a revisão da ordem de arquivamento fica a cargo do Procurador-Geral de Justiça. No Federal, a cargo das Câmaras de Coordenação e Revisão (art. 62, inciso IV, da LC 75/1993), exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral.

Acordo na audiência de custódia: O acordo de não persecução pode ser proposto na audiência de custódia, porém somente se – e depois de – concedida a liberdade. Não parece viável oferecer o acordo para quem está submetido à prisão, pois o preso se submete a qualquer acordo desde que recupere sua liberdade. Dessa forma, seria voluntariedade viciada. Não se pode cogitar a presença da condição da confissão voluntária daquele que está sob uma das mais violentas coações. Preso faz qualquer acordo, inclusive confessa, para ver cessado o comando prisional.

Retroatividade. Aplicação aos processos em curso e findos: A norma que afasta a pena e a substitui pelo cumprimento de determinadas condições é norma de direito material, já que regula o direito subjetivo de punir do Estado (a propósito da diferenciação entre normais penais e processuais penas, ver Capítulo 12 da Teoria Geral de nossa Breve Teoria Geral do Processo). Logo, aplica-se a ela o princípio da retroatividade, uma vez que é uma norma  mais benéfica. É resultado do art. 5º, inciso XL da CF, segundo o qual a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Procede, também, do artigo 2º, parágrafo único do CP: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.” O acordo pode ser, portanto, requerido pelo acusado ou proposto pelo promotor, tanto na fase da investigação como nos processos em andamento ou findos. Estando em tramitação, pouco importando a instância. Se o acordo for perfectibilizado em processo findo, a eficácia da sentença condenatória é suspensa até o cumprimento do acordo. Havendo rescisão do acordo, os efeitos da sentença retornam ao plano da eficácia.

Jurisprudência

O juiz não pode impedir a remessa ao órgão superior no MP: Não se tratando de hipótese de manifesta inadmissibilidade do ANPP, a defesa pode requerer o reexame de sua negativa, nos termos do art. 28-A, § 14, do Código de Processo Penal (CPP) (2), não sendo legítimo, em regra, que o Judiciário controle o ato de recusa, quanto ao mérito, a fim de impedir a remessa ao órgão superior no MP. Isso porque a redação do art. 28-A, § 14, do CPP determina a iniciativa da defesa para requerer a sua aplicação (HC 194677/SP, relator Min. Gilmar Mendes, julgamento em 11.5.2021).

O acordo e autoridade policial

Viabilização do acordo pela autoridade policial: Como já demonstramos no título Será mesmo um avanço?, em comentários ao presente dispositivo, não nos parece que seja o excesso de processos tramitando no Judiciário o fator que prejudica a política criminal. A deficiência do sistema repressivo criminal – e por sistema repressivo entenda-se a atividade investigatória e a jurisdicional –, está na investigação, e não no processo. A frase popular a polícia prende e a justiça solta não reflete a realidade. É desacertada porque a polícia não prende. Não há – é curioso – estatística no Brasil que esclareça qual a relação entre delitos noticiados e delitos solucionados. Há somente estudos relativos ao delito de homicídio. Mesmo se houvesse estatística, ela não seria precisa, visto que muitos delitos não são levados ao conhecimento da polícia. Grosso modo, é possível afirmar que noventa por cento dos crimes ficam sem solução. Logo, se for para aprimorar o sistema repressivo, não é para o processo que se deve voltar os olhos, mas sim para os órgãos de investigação. Deve ser reconhecida a competência do MP para investigar somente aqueles delitos em que a persecução puder ser influenciada por pressões econômico-financeiras ou políticas. Esse entendimento não se funda propriamente em questões relativas à idoneidade de policiais, mas de ausência de hierarquia no MP, de sua independência. Autonomia do policial é pouco frente à hierarquia da burocracia governamental, em cujo ápice estão políticos e pessoas muito poderosas. Fora dessa hipótese (possibilidade de pressão econômica/financeira ou política), deve ser reconhecida (inclusive por habeas corpus do investigado, já que a investigação realizada por acusador tende a ser mais gravosa do que aquela realizada por investigador, dado que esse não inaugura nem participa da ação penal) a incompetência (e esse é o termo correto, pois que se está diante de direito administrativo) do Ministério Público. Sobre a circunstância de a investigação do Ministério Público ser mais gravosa ao acusado, ver subtítulo No sistema do inquérito, o investigador não é o acusador do título Dever de imparcialidade da autoridade policial e parcialidade do inquérito, em comentários ao artigo 4º. Outra providência a ser levada a efeito objetivando a melhoria da repressão criminal é o investimento em tecnologia, principalmente em tecnologia digital, informática e ciência de processamento de dados. Os professores e delegados de polícia Ruchester Marreiros Barbosa e Raphael Zanon da Silva publicaram interessante artigo intitulado Delegado de polícia deve viabilizar acordo de não persecução penal, publicado na Revista Conjur, no qual sustentam que “é possível chegar à conclusão que cabe ao presidente do inquérito policial (…) a elaboração de minuta do acordo de não persecução penal, assumindo o formato de um protocolo de intenções (…). A adoção do citado protocolo pelo Delegado de Polícia tem por objetivo evitar a realização de meios investigativos de forma inútil, que ao final serão descartados, denotando desperdício de recursos materiais e humanos.” Quer parecer que a concepção desenvolvida por Ruchester e Zanon não viola qualquer dispositivo legal. Se eventual demora do aprofundamento da investigação não tenha o condão de interferir no seu resultado (caso não haja risco de as provas desaparecerem) – demora essa que se concretizaria caso o acordo não se realizasse ou fosse rescindido –, não há qualquer prejuízo na suspensão das diligências do inquérito policial. Examinando o tema por outro ângulo: sendo a investigação de iniciativa do MP, o promotor pode suspender seu curso e propor o acordo de não persecução? Ora, se essa suspensão não puder resultar em qualquer prejuízo para eventual retomada das investigações em momento posterior, não há qualquer impedimento para que se faça o acordo, suspendendo-se o procedimento investigatório. Considerando que a investigação administrada pelo promotor possui o mesmo objetivo daquela que é presidida pela autoridade policial, qual seja, a de obter elementos indiciários suficientes à propositura da ação, vale dizer, dispondo ambas investigações da mesma natureza, não há razão para que se possa suspender a do promotor e não se possa interromper a da autoridade policial. Não faz sentido concentrar pessoal e material em atividade que, na sequência, não será aproveitada, quando esses recursos poderiam ser direcionados para a investigação e solução de delitos mais graves. Administrar é priorizar. E, se noventa por cento dos delitos noticiados não são solucionados, outra solução não há senão priorizar investigações que provoquem mais danos à ordem social e jurídica. Afastar o MP da investigação de qualquer delito (em próprio benefício da instituição) e priorizar a investigação de delitos mais graves, com otimização da tecnologia investigativa, esses são os caminhos da eficiência da repressão criminal.

Crimes tributários

Crimes tributários: O pagamento extingue o crime tributário. Se há pagamento, não se justifica qualquer acordo, pois o delito se faz ausente. Mas e se o devedor não tem condições de pagar? Fica prejudicado seu direito ao acordo? Não fica. O caput do artigo 28-A arrola as condições, alternativas ou cumulativas, para a efetivação do acordo. Entre elas está a de reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo. Se o investigado está impossibilitado de pagar o tributo devido, essa condição não pode ser exigida. Pode ocorrer que o investigado tenha condições de pagar parte do tributo devido. Não vemos impedimento para que seja realizado pagamento parcial, obviamente com o posterior abatimento do valor total devido ao ente credor.

A política demencial das drogas

Tráfico de drogas privilegiado e acordo de não persecução: No caso do tráfico de drogas (artigo 33, parágrafo 1º e seus incisos da Lei n. 11.343/2006), a pena pode ser reduzida de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa (artigo 33, parágrafo 4º da Lei n. 11.343/2006). Com a redução da pena, ela fica aquém de quatro anos. Logo, nesse delito está autorizado o acordo de não persecução penal. Essa possibilidade pode contribuir para a redução da lotação da população carcerária e poupar a devastação precoce e estúpida da saúde física e mental de milhares de jovens brasileiros. No ano de 2019, de um total de 773 mil presos no país, 163 mil estavam detidos em razão de tráfico de drogas. O maior percentual de presos no Brasil se dá por este delito. Em segundo lugar está o roubo, com 115 mil casos.

Acordo de não persecução criminal e o caput do artigo 33 da Lei n. 11.343/2006: Quando a conduta do investigado se insere no caput do artigo 33 da Lei n. 11.343/2006, impossibilita-se o acordo de não persecução penal. A legislação precisa ser alterada de forma a possibilitar que o infrator do caput do artigo 33 também possa ser beneficiado com o acordo de não persecução penal. Nosso entendimento é o de que, por meio do processo legislativo, a pena mínima deve ser reduzida para que fique em um patamar abaixo de quatro anos. Nos títulos que seguem explicamos os motivos desse entendimento.

Considerações de Guilherme Fernandez Silva sobre a repressão do comércio de drogas: Em interessante artigo publicado na Revista Conjur, intitulado Considerações sobre o acordo de não persecução penal no tráfico privilegiado, o Promotor de Justiça Guilherme Roedel Fernandez Silva examina a possibilidade de realização do acordo de não persecução no tráfico privilegiado. Escreve que ”o constituinte de 1988 internalizou a política de guerra às drogas, capitaneada internacionalmente pelos Estados Unidos, e estabeleceu que ‘a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e os definidos como hediondos’. A evolução legislativa e jurisprudencial sobre o tema, marcada pela construção no imaginário da sociedade e dos atores do sistema de Justiça Criminal da figura do traficante como um ser violento e perigoso, etiquetou o comércio de determinadas substâncias entorpecentes como crime hediondo (…). Enviaram milhares de jovens para longas temporadas em prisões, por terem vendido um baseado ou um papelote de cocaína para alguém que voluntariamente se interessou por alterar seu estado mental com uso da substância tornada ilícita por ato do Poder Executivo. (…) Ocorre que em 2016, no HC 118.153, o STF decidiu que o chamado tráfico privilegiado não tem natureza hedionda. O STJ, então, no julgamento do Tema 600, estabeleceu que o ‘tráfico ilícito de drogas na sua forma privilegiada não é crime equiparado a hediondo’. (…) O argumento que sustenta a tese que de que o traficante do aglomerado necessariamente integra organização criminosa porque dependeria de autorização do dono do morro para praticar o comércio, além de revelar odioso preconceito de classe e reforçar a criminalização da pobreza, é falso (…). Infelizmente, com a devida vênia, parece que o principal obstáculo para promotores firmarem acordo de não persecução penal no tráfico privilegiado decorre da ausência de reflexão sobre o bem jurídico efetivamente tutelado nos crimes relacionados às drogas e especialmente sobre o principal motivo pelo qual o comércio de algumas drogas pode se tornar extremamente violento: a própria criminalização!”.

Drogas. Tabu. A fantasia do traficante aliciador e a lenda da organização criminosa

Drogas, tabus e crenças: São muito oportunas as considerações do Promotor de Justiça de Guilherme Roedel Fernandez Silva. Estamos destruindo vidas de milhares de jovens, empilhadas em presídios – situação suportada por tabus e crenças infundadas. Algumas expressões, a propaganda e a mídia possuem o poder de transformá-las em expressões repulsivas. Tráficantes de drogas, o que são eles? Comerciantes. Tabus geram proibições cujas razões não são científicas. São apenas crenças. Comercializar cigarros e álcool não é proibido. Vender maconha e outras drogas é. Que diferença há entre drogas lícitas e ilícitas? Não há nenhum critério lógico para distinguir a licitude das drogas. A única diferença que pode ser feita é a de que as lícitas são as autorizadas, e as ilícitas são as proibidas – o que significa não distinguir. Tabu e crença não fazem uso da lógica. A crença não se baseia em fatos, mas em versões sem provas e no desejo de crer. A crença é imune à razão. Não nos aproxima da realidade, pois, nos dizeres de Friedrich Nietzsche, a crença forte só prova a sua força, não a verdade daquilo em que se crê (Humano, Demasiado Humano. São Paulo: Lafonte, 1918). A humanidade faz uso das drogas desde os primeiros hominídeos, surgidos há sete milhões de anos. Os sumérios gravaram o uso do ópio para incentivar a alegria em um ideograma datado de 5.000 a.C. Em 600 a.C., a coca já era conhecida de povos da América do Sul, consoante registros arqueológicos. Estudo que consta no artigo Psychoactive Substances in Prehistoric Times: Examining the Archaeological Evidence dá conta de resquícios fósseis de cacto alucinógeno, encontrados numa caverna do Peru, no período entre 8600 a.C. e 5600 a.C. As sementes da leguminosa Dermatophylum, encontradas na região que hoje é o Sul do Texas e Norte do México, datam do final do nono milênio a.C. até 1000 d.C. E pequenas esculturas de pedra chamadas ‘pedras de cogumelo’, encontradas na Guatemala e no México, sugerem que cogumelos alucinógenos teriam sido usados em cerimônias religiosas entre 500 a.C. e 900 d.C. (Time and Mind Journal). As drogas sempre fizeram parte da cultura da humanidade. Foi no início do século XX que surgiram os primeiros movimentos no sentido de sua criminalização, tendo por motivação a xenofobia, interesses da indústria farmacêutica e crenças protestantes. A Conjur publicou, no ano de 2017, uma série de reportagens, empreendidas pelo jornalista Sérgio Rodas, sobre a guerra às drogas e lotação das prisões. Foram um total de oito reportagens. Foram escutados, entre outros, políticos, professores universitários, advogados, juristas e um procurador de justiça. As revelações delas constantes são esclarecedoras. Nos chamou a atenção o fato de que as drogas nem sempre foram um problema, ao contrário, foram um costume integrante da cultura. As drogas eram utilizadas legalmente em todo o mundo até o início do século XX. Tudo começa a mudar quando, nessa época, por duas razões. A primeira decorrente do preconceito contra imigrantes, os quais faziam uso de drogas diversas e competiam pelos empregos com os norte-americanos. A segunda razão, associada a interesses da indústria farmacêutica, foi a ética protestante: vida sem vícios, sem prazeres intensos, voltada para o trabalho, enquanto caminhos da salvação. Em 1914 foi publicada nos EUA a primeira lei antidrogas federal. Na sequência o álcool foi proibido (Sérgio Rodas: Conjur publica série de reportagens sobre guerra às drogas e lotação das prisões. Conjur). A indagação que cumpre fazer é a seguinte: se o homo sapiens viveu por duzentos mil anos sem a proibição do uso e livre circulação de drogas, o que de novo aconteceu com ele a justificar a interdição? Drogas são boas e são ruins. Drogas usadas moderadamente cumprem um importante papel de promover a interação de indivíduos e grupos, em encontros e festividades. Beber moderadamente com alguns amigos consiste em ritual de confraternização. Usadas em excesso, todas as drogas fazem mal à saúde física e psíquica. Até remédios tomados em excesso fazem mal à saúde. Matam, inclusive. Algumas drogas fazem mais mal que outras. Umas em curto prazo; outras, em longo. Não há qualquer evidência de que o álcool seja menos prejudicial que a maconha ou mesmo que a cocaína. Tudo é uma questão de onde se usa, como, quando e quanto. Drogas lícitas também produzem sequelas. O álcool destrói lares e mata no trânsito. O fumo provoca câncer de pulmão e enfarto do miocárdio, entre diversos outros males.

A fantasia do traficante aliciador: Acredita-se que cigarro e álcool não precisam ser proibidos. Maconha, cocaína e outras drogas, sim. É uma questão de fé. A crença é de que há drogas do Bem, distintas das drogas do Mal. O desconhecimento sobre o tema impressiona. Dentre as crendices risíveis, destaca-se a lenda do bombom emaconhado de porta de escola. Chega-se ao ponto de fantasiar que é o traficante que induz o indivíduo a experimentar a droga; que é o traficante quem vicia o indivíduo, e não o indivíduo que, livremente, comumente por influência do grupo, decide experimentar a droga, da qual, apreciando, passa a usar, moderada ou, excepcionalmente, de forma excessiva. Não é a droga que vicia o indivíduo. É o indivíduo que se vicia na droga. Muitos são, a enorme maioria, os que não se viciam. Para se viciar é preciso que haja predisposição, ou orgânica (alcoólatras, por exemplo) ou psíquica (causada por distúrbios psicológicos). Aqueles que acreditam que o traficante seduz suas vítimas defendem a ideia de que prendendo traficantes existirão menos viciados. Um disparate. Tolice.

A lenda da organização criminosa: Não faltam aqueles que entreveem em todo traficante um membro de organização criminosa ou associado para o tráfico. Desconhecem como se dá o tráfico. É sistema que se desenvolve por divisão de porções cada vez menores. Traficantes maiores vendem para traficantes menores, sucessivamente. Uma porção de droga é comprada por alguém que, por sua vez, a divide em tantas outras porções menores. Essas porções menores, vendidas em separado, custam, somados seus valores, mais caro que porção comprada. O lucro está nesta diferença. A razão da porção menor ser proporcionalmente mais cara que a maior está no risco que existe em fazer diversas vendas em vez de uma só. Quanto maior o número de vendas, maior o risco de ser preso. Logo, é a proibição que valoriza o produto e viabiliza o tráfico. Excluídos alguns poucos que estão no topo da pirâmide, parcela significativa desses indivíduos são viciados e se dedicam a esse comércio para sustentar o próprio vício. Pertencer à organização criminosa é exceção. Anos de exercício da advocacia criminal nos autorizaram a concluir que mais que noventa e oito por cento dos vendedores de drogas não fazem parte de qualquer organização. Adquirem a droga de qualquer vendedor, ou melhor, daquele que vende o melhor produto pelo melhor preço. Não há qualquer compromisso entre eles. Quem vende, vende para quem paga, pouco importa quem seja. Associação criminosa ou organização criminosa, enquanto tipos penais, pressupõe: associação de pessoas, divisão de tarefas, objetivo econômico. Há vínculo unindo os associados por fins comuns. As organizações, ou associações, criminosas dedicadas ao tráfico são poucas. Envolvem tráfico internacional, quando se trata do andar de cima. No de baixo, há o traficante que exerce a distribuição com exclusividade em uma determinada região. Essa exclusividade é assegurada por alguns membros armados da associação, milícias e policiais corruptos. Milicianos ameaçam ou matam aquele traficante que invade o território do traficante protegido (e que paga pela proteção). Policiais corruptos prendem os desautorizados a traficar em determinadas áreas. Esse baixo tráfico é o daqueles traficantes encastelados em comunidades carentes. Os que fazem parte da organização são muitos poucos. Basicamente a organização se constitui do traficante, os que, armados, o protegem, os milicianos e policiais corruptos que asseguram o território. O traficante líder vende, pessoalmente, ou por meio de seus comparsas armados próximos, drogas para qualquer um que se disponha a pagar. Aquele que compra não tem, normalmente, outro vínculo com a organização que não seja a obrigação de pagar o preço, o que o faz mediante o recebimento do produto. Esse segundo traficante, dividindo o produto em porções, irá vender para qualquer outro que se disponha a pagar. E assim por diante. Onde queremos chegar? Na insensatez. Quando se condena alguém por tráfico de drogas em concurso com o delito de organização criminosa, o que não é incomum, sem qualquer demonstração de reais vínculos associativos, está-se diante de um ato de insensatez. E de desconhecimento. A propósito, cumpre observar que o argumento de que caso se descriminalizasse a venda de drogas, o traficante passaria a praticar crimes violentos, como roubo por exemplo, é preciso ter em consideração que traficante violento é exceção. É aquele líder do morro e dos que estão intimamente ligados a ele. A imensa maioria dos vendedores de droga são ocasionais, possuem seu próprio trabalho, ou como empregados ou como autônomos. Esse argumento é apenas mais um industrializado e distribuído pelos interesses que existem e que constituem as causas da repressão.

Males das drogas.  Inutilidade e nocividade da repressão.

Males que as drogas causam: O cigarro possui 4.700 substâncias tóxicas. Nenhuma de suas substâncias é proibida. Mas ele é a principal causa de morte no mundo dentre as que poderiam ser evitadas. O Instituto Nacional de Câncer (INCA) estima que, para cada ano do triênio 2020/2022, sejam diagnosticados no Brasil 30.200 novos casos de câncer de pulmão, sendo que em 70% dos casos o motivo é o fumo. O cigarro age sobre as células que recobrem os vasos sanguíneos, estreitando-os e os endurecendo. O fumante possui 30% mais chances de sofrer infarto do miocárdio. Quanto ao álcool, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, ele é responsável por três milhões de mortes ao ano. De cada vinte mortes, uma está relacionada com o consumo dessa droga. Tendo em vista que – ao contrário de outras drogas que, quando matam, a vítima é o próprio usuário –, o álcool mata quem não o ingeriu, talvez ele seja uma das drogas mais perniciosas. A maconha é usada há muitos anos. O contingente de usuários não é pequeno. A maconha também é droga que oferece riscos. Embora existam estudos que aleguem sua inocência (e estudos e estatísticas têm para todos os gostos, máxime a quem se dispuser a comprá-los), a canabis, quando fumada por adolescentes, pode, mesmo que consumida em poucas ocasiões, desencadear um processo psicótico gravíssimo. Psicólogos e psiquiatras experimentados sabem com mais certeza do que estudos. Seu mal maior é este: pode criar condições para desencadear psicoses e esquizofrenia, especialmente se fumada na adolescência. Essa consequência desastrosa ocorre com um percentual relativamente pequeno de indivíduos (algo em torno de um a três por cento dos que fumaram na puberdade). Viciados que fumam a maconha habitualmente, todos os dias, desenvolvem síndrome amotivacional. Não fazem planos, são preguiçosos, desenvolvem algum grau de déficit cognitivo. Em muitos desses viciados, a droga exerce uma função terapêutica, sedativa – recomendável possivelmente. Se fumada eventualmente, por adultos, não há, praticamente, qualquer risco ou malefício para a saúde. É meio de interação. Tão saudável quanto beber algumas taças de vinho. A cocaína, por sua vez, por muitos anos foi droga liberada, no Brasil e na Europa. Cheirada em excesso, pode provocar parada cardiorrespiratória. Quando o excesso não é aquele do momento, mas o que persiste no decorrer dos tempos, ela se transforma em poderoso estímulo de distúrbios mentais. Dispõe do poder de agravá-los. Consumida eventual e socialmente, com bastante moderação, assim como álcool e a maconha, não é capaz de provocar danos à saúde. Não é uma droga com alto poder viciante. Seus efeitos duram poucos minutos. Não são muitos os viciados em cocaína. Há muitos usuários, poucos viciados. Outras drogas podem ser bastante prejudiciais, especialmente se usadas em excesso ou com frequência. A bala (ecstasy), cujo princípio ativo é o MDMA (metilenodioximetanfetamina), produz serotonina em excesso, o que pode provocar lesões em células nervosas. O doce (LSD – dietilamina do ácido lisérgico) pode provocar quadros psicóticos. O crack (uma mistura de cloridrato de cocaína com bicarbonato de sódio) produz efeito forte e rápido. Difunde-se com facilidade em indivíduos predispostos em razão de problema psíquicos. Outra droga bastante difundida no Brasil é o loló (mistura de substâncias constituída basicamente por éter, cloreto de etila e clorofórmio). Assim como o crack, o loló é utilizado por alguns moradores de rua, tendo em vista não custarem caro ambas as drogas.

Inutilidade da repressão e os males que ela provoca: A repressão das drogas tem se demonstrado inútil. A ideia de que é o traficante quem corre atrás do viciado, e não o contrário, faz parte da coleção de disparates sobre o tema. Aqueles que creem que o traficante alicia o indivíduo e o introduz no vício precisam urgentemente retornar ao mundo. Prender quem comercializa drogas é inútil. É fazer antipolítica criminal. Preso um, sempre haverá três outros indivíduos livres dispostos a lucrar com venda de drogas. A prisão de um produz o efeito de prevenção geral. Mas no sentido inverso. Quanto maior a repressão, mais o preço do produto sobe. O lucro aumenta. É incentivo para novos traficantes. Assim são algumas crenças. Inúteis. Estava certo o ministro Luís Roberto Barroso, quando, em suas anotações ao voto oral do recurso extraordinário n. 635.659, apontou que “a criminalização do comércio de drogas não produz o efeito de reduzir o consumo. A contrário, aumenta o consumo, pois o dependente, enquanto fomentador de um criminoso, fica a margem da lei.  Mas a criminalização do tráfico produz sim alguns resultados: mais crimes (de tráfico) e os correlatos (corrupção, organização criminosa), além de fomentar milícias”. Não existe luta ou guerra quando a vitória é impossível. É uma luta falsa, forjada. Quanto mais se combate o tráfico, mais a droga adquire valor. Isso não é luta. Isso é criar e, a seguir, se associar. Para reduzir o consumo de drogas só uma guerra é possível: aquela que combate o consumo. Mesmo que a repressão extinguisse o tráfico, o consumo persistiria. Maconha se planta em casa, alucinógenos se obtém recolhendo cogumelos em qualquer campo onde tenha gado, uísque se fabrica com milho, lolo pode ser substituído por eter e drogas de laboratórios se obtém com receita médica.
Essa guerra não se trava com fuzis, e sim com pedagogia e assistência médica. Diz respeito à saúde e à educação. O controle de drogas do Estado está onde jamais deveria ter se situado, nos órgãos de repressão. O lugar dele é no Ministério da Saúde. Poucos são os que resistem à propaganda maciça. A respeito da efetividade da propaganda, há uma frase atribuída a Joseph Goebbels: Dê-me o controle da mídia e farei de qualquer país um rebanho de porcos. Com propaganda maciça até passar a mugir a população é capaz. Há alguns exemplos atuais dessa força: a campanha de Lei Seca promovida pelo Ministério dos Transportes e a campanha contra o cigarro. Esse é o caminho. Se foi adotado em outros países? Precisamos ser sempre os últimos? Portugal já descriminalizou o uso desde 1990. Nós ainda sequer terminamos de julgar o tema. Possivelmente é o uso vinculará a jurisprudência.

Nocividade da repressão criminal:A repressão criminal ao tráfico de drogas, como vem sendo feita, indiscriminadamente, não é apenas inútil. É nociva e perniciosa. Seis motivos. Primeiro: a repressão aumenta o preço da droga na medida que crescem as dificuldades e riscos do comércio. Esse aumento de preços torna o tráfico mais lucrativo, o que serve de incentivo para o surgimento de novos traficantes. Segundo: os presídios estão abarrotados de vendedores de drogas, varejistas pobres. De acordo com dados divulgados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), em junho de 2016, o crime por tráfico de drogas apareceu em 28% das incidências penais pelas quais as pessoas privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento no país. O Brasil tem mais de 773 mil presos (ano 2020) para um total de menos de 400 mil vagas. Traficantes são jovens com idades de 18 a 26 anos. Eis o caos prisional total. Com as delegacias lotadas, presos em flagrante são algemados em postes nas ruas. Esses jovens estão tirando a vaga de criminosos realmente perigosos, aqueles que agem com violência contra a pessoa. Terceiro: boa parte desses jovens traficantes desconhece a violência. Não são delinquentes dados à violência. São presos com quantidades de droga que, quando vendidas, mal dá para sustentar uma família por mais de um mês. A prisão do jovem, em face de sua imaturidade, aniquila seu futuro. Não se discute se a experiência prisional pode ser traumática, e sim, qual a gravidade do trauma e a intensidade das sequelas. O desequilíbrio emocional que ocasiona, sem tratamento, perdura por toda a vida. A experiência da prisão, além de representar desperdício da juventude, cria condições para a formação de verdadeiros e novos criminosos. São sangue novo, matéria prima para as gangues. O Estado investe e gasta para transformar indivíduos de escassa ou nenhuma periculosidade em audaciosos delinquentes. Prisão estraga quem é bom e piora quem é ruim. Onde não havia rancor, ele é plantado. Traficante, uma vez que seja preso, se torna um indivíduo pior. Investir em finalidade contraproducente leva o nome de desperdício de dinheiro público. “Da promulgação da lei de drogas, em 2006, até hoje, houve um aumento do encarceramento por infrações relacionadas às drogas de 9% para 27%. Aproximadamente, 63% das mulheres que se encontram encarceradas o foram por delitos relacionados às drogas. Vale dizer: atualmente, 1 em cada 2 mulheres e 1 em cada 4 homens presos no país estão atrás das grades por tráfico de drogas (…) Além do custo elevado, há outro fenômeno associado ao encarceramento: jovens primários são presos juntamente com bandidos ferozes e se tornam, em pouco tempo, em criminosos mais perigosos. Ao voltarem para a rua, são mais ameaçadores para a sociedade, sendo que o índice de reincidência é acima de 70%. Por fim, há um outro problema: como não há critério objetivo para distinguir consumo de tráfico, no mundo real, a consequência prática mais comum, como noticiam, dentre muitos, Pedro Abramovay e Ilona Szabó, é que ‘ricos com pequenas quantidades são usuários, pobres são traficantes’ (Ministro Luís Roberto Barroso – anotações ao voto oral do recurso extraordinário n. 635.659). Quarto: custa caro manter alguém preso. Gasta-se, no Brasil, mais de 15 bilhões ao ano com presídios. Cada preso possui um custo de R$ 4.000,00 ao mês, o suficiente para prestar auxílio básico para seis famílias carentes. Para a repressão são gastos vultosos recursos. Não se trata somente de presídios, são despesas com polícias e com o judiciário. Os juízes ficam instruindo e julgando inutilidades, quando poderiam estar se dedicando a solucionar litígios realmente relevantes. Todo esse dinheiro, que deveria estar sendo direcionado para o tratamento de viciados e prevenção por meio de campanhas educativas, é gasto em repressão, punição e destruição de seres humanos. Quinto: quando o traficante, uma vez solto, não se torna um delinquente violento, não tendo sido aliciado pelo crime, suas oportunidades de conseguir atividade lícita são reduzidas consideravelmente, pois fica estigmatizado. Sexto: a repressão às drogas constitui incentivo à corrupção policial e ao fortalecimento e crescimento de milícias. A certa altura de sua história, o povo norte-americano, cujo direito penal é um mistifório de pecado, religião, moral evangélica pentecostal e punições, entre elas, a de pena de morte, onde o Estado, literalmente, assassina o condenado, passou a crer que os males todos possuíam uma causa: a embriaguez. Do ano de 1920 ao de 1933 vigorou a Lei Seca, com a proibição de produção e venda de bebidas alcoólicas. Esse período representou o auge do crime organizado estaduniense. Diversas organizações criminosas de tráfico de bebidas alcoólicas foram formadas. A corrupção policial atingiu níveis máximos. A Cosa Nostra Americana cresceu e ganhou força. Al Capone dominava Chicago. A interface entre a sociedade e a criminalidade é realizada pelo contingente policial. A polícia está em contato próximo e direto com criminosos. É natural, esperado e inevitável, que alguns policiais terminem por se corromper. A propósito, é uma das razões pelas quais entendemos que só excepcionalmente o Ministério Público pode investigar, pois quem senta ao lado direito do juiz, um lugar de confiança, não pode fazer interface com o crime. A proibição das drogas torna lucrativo o seu comércio. E onde há crime e dinheiro, irremediavelmente, a corrupção diz presente. Outra consequência da repressão das drogas é que ela constitui importante fonte de renda para milícias, que não apenas as vendem como também cobram de gangues pelo monopólio de “territórios”. O Ministro Luís Barroso foi feliz ao afirmar, no seu voto oral em plenário, por ocasião do julgamento do recurso extraordinário n. 635.659, que, paralelamente ao tráfico “floresce a criminalidade associada ao tráfico, que inclui, sobretudo, o tráfico de armas utilizadas nas disputas por territórios e nos confrontos com a polícia”.

Inutilidade e nocividade. Resumindo: Em resumo, o atual sistema de repressão às drogas é inútil porque reduzir o número de traficantes não implica diminuição de viciados. Não é o tráfico que produz o consumo. É o inverso. E é nociva, pois: 1 – Aumenta o preço da droga, tornando o negócio mais lucrativo, o que resulta em mais tráfico. 2 – Contribui para a superlotação dos presídios, faltando vagas para delinquentes perigosos. 3 – Transforma pessoas pacíficas em perigosos delinquentes. 4 – Gera gastos públicos inúteis. 5 – Estigmatiza aquele que não piora. 6 – Incentiva a corrupção policial e o fortalecimento das milícias .

Vitória sobre o tabagismo. Descriminalizar e educar. Repressão inútil e cara.

A vitória sobre o tabagismo: Prender com fundamento em tabu e crença é incivilidade. O que deveria ser feito em relação à política de drogas não é prender. Reduzir o número de traficantes, que isso seja ressaltado em todos seus termos, não reduz o consumo. É a inutilidade da prisão. O governo federal fez, nas últimas décadas, maciço investimento em propaganda esclarecedora dos males do tabagismo. Campanha educativa. O resultado é impressionante. Três quartos dos homens que fumavam deixaram o vício. A dificuldade do viciado de abandonar o tabagismo é enorme. Os sintomas de abstinência, que duram mais de um mês, envolvem dor de cabeça, irritabilidade, dificuldade de concentração, alteração do sono, sudorese, mãos frias, fome compulsiva, alterações de humor, ansiedade e apatia. A vontade de voltar a fumar é intensa nos primeiros meses. Em alguns fumantes, ela persiste por anos. As políticas públicas e pedagógicas, inclusive políticas de tributação, revelaram-se um sucesso. Conforme o Instituto Nacional do Câncer, em 1989, 43,3% dos homens e 27% das mulheres fumavam. Em 2006, o percentual de fumantes no Brasil caiu para 15,7%. Segundo dados do Ministério da Saúde, no ano de 2019, apenas 9,3% da população entrevistada declarou que ainda é fumante.

Descriminalizar e educar: Para o problema da droga, a melhor solução é descriminalizar. Educar para que não sejam usadas. Venda regular em farmácias e com receita médica (com acompanhamento médico). Da tributação das drogas sai o custeio de campanhas de esclarecimento semelhantes às realizadas com o tabagismo. O mundo jamais abandonará as drogas. Há, nelas, um aspecto saudável e desejável: interação social. Indígenas fazem, drogados, periodicamente, festas. Brasileiros e outros povos também, carnaval. Uma noite de libação com amigos tem para muitos valor superior a meses de ansiolíticos, antidepressivos e estabilizadores de humor. Algumas drogas desinibem, propiciando a aproximação de pessoas, a comunhão e a união do grupo. Até o início do século XX, a humanidade utilizava drogas livremente, não se cogitava de proibi-la. O abuso é que deve ser evitado. Prender comerciantes é completa inutilidade. Ressalvando que não era a legalidade do tráfico que estava em discussão, o Ministro Luís Roberto Barroso acertou no alvo ao dizer que para o problema das drogas “só há uma solução: acabar com a ilegalidade das drogas e regular a produção e a distribuição” (anotações ao voto oral do recurso extraordinário n. 635.659). Corajosa declaração do Ministro.

Toda a repressão às drogas é inútil e cara: Nenhuma repressão que se faça ao tráfico de drogas irá reduzir seu consumo. De nada adianta prender o produtor de drogas ou o atacadista. Outros produtores e atacadistas os substituem. Onde há demanda, a oferta nunca deixará de existir. Se prenderem cem plantadores de maconha no país, outros tantos o substituirão. A uma, porque a demanda não pode ser segregada em presídios. É impossível fazer com que pessoas que queiram se drogar, deixem de fazê-lo. A duas, em razão de que a cada prisão a consequente redução da oferta acarreta aumento do risco do comércio, o que eleva o preço que, por sua vez, atrai mais indivíduos à produção e ao comércio. Esse entendimento implica reconhecer que não há solução para o tráfico e consumo de drogas? Não, não significa. Solução há. Porém é difícil de implementá-la em razão da resistência que há de parte de alguns setores. A solução é singela e já referimos: campanha pedagógica. Constitui objetivo impossível, inexequível e ilusório reduzir o consumo reprimindo o tráfico. A iniciar que o tráfico não é pai do consumo, ao contrário. Enquanto existir procura por drogas sempre haverá oferta. O remédio, consequentemente, é manifesto: redução do consumo. Não é difícil de atingir esse objetivo. A campanha do governo brasileiro contra o tabagismo reduziu o percentual de fumantes de 35% em 1989 para 9,3% em 2019. São dados do Ministério da Saúde. Campanhas de esclarecimento funcionam, possuem efetividade. A conclusão não é nossa. É das estatísticas. A propósito especificamente de considerar-se o uso de droga crime ou não, essa discussão nos faz lembrar uma frase do professor de direito penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Salo de Carvalho, quem afirmou: Da pele para dentro eu constituo um Estado soberano. Faz-nos recordar, também, Shakespeare, quando escreveu que choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes. No recurso extraordinário 635659, o STF está por decidir se o porte de droga para consumo próprio constitui, ou não, crime. Muito provavelmente, no julgamento deste recurso extraordinário, será decidido, em mora jurisdicional, que porte para uso próprio de droga não é delito. Nos faz pensar em um país que não existe. Nele era proibido às mulheres usarem calça. Só podiam usar vestido. A venda de calça era severamente punida. Com o passar dos tempos, foi permitido às mulheres usar calças. Mas vender calças persistiu proibido. Passaram a usar, sem que estivessem praticando qualquer delito. Mas continuou sendo crime vender para o livre uso. O mistério ficou por conta de decifrar a lógica do acontecimento. Todos têm o direito de beber. Mas ninguém pode vender para quem quiser exercer seu direito. Proíbe-se a venda daquilo que se possui o direito de uso.

Solução paliativa

Solução paliativa. Necessidade de alteração da pena mínima do tráfico: Há interesses, aqueles de vulto, aos quais confrontar, reconhecemos, possui pouca utilidade. A descriminalização das drogas cumpre importante papel que diz respeito a interesses internacionais. É preciso encontrar uma solução, ainda que provisória, para o encarceramento em massa da juventude. Ao tráfico de drogas se aplica pena que varia de cinco a quinze anos (artigo 33 da Lei n. 11.343/2006). O acordo de não persecução criminal está autorizado aos delitos com pena mínima inferior a quatro anos. É preciso reduzir a pena mínima do tráfico de drogas de forma a possibilitar a realização do acordo de não persecução penal. Enfim, a continuar as coisas como estão, prosseguirá o caos instalado no sistema prisional, onde, a confirmar que tabu e crença têm por principal fundamento a irracionalidade, o maior percentual de presidiários são indivíduos não violentos, e jovens.

Proibição. Motivação e irracionalidade

Razões de ordem psíquica da proibição: Além de haver interesse de grupos, nacionais e estrangeiros, na proibição de drogas, existem duas outras explicações para a sua vedação e persecução penal. Uma é psíquica, outra é sociológica. Tanto uma como a outra não constituem razão lógica para a proibição. Daí ser a proibição simples tabu, crença, algo sem fundamento racional, embora fomentada por interesses. Quando algo que produz prazer é bom e que quando praticado excessivamente é ruim, seja para o indivíduo, seja para a coletividade, tende-se proibi-lo parcialmente. Proibido só parcialmente porque quando praticado moderadamente é bom, quando em excesso, é ruim. Sexo. Sexo excessivo é sexo infiel ao matrimônio (porque põe em risco a família), é sexo com diversos parceiros (porque coloca em risco a saúde), é sexo incestuoso (porque é geneticamente pernicioso). Mas sexo é bom. É indispensável. Sem ele a espécie se extingue. Sendo praticado moderadamente, é bom. Excessivamente, é ruim. Precisa ser parcialmente proibido. Em algumas regiões onde predomina o islamismo, as mulheres estão proibidas de mostrar o rosto (tapa-se os lábios, que são mucosas, onde estão as principais fontes do prazer sexual). No ocidente as mulheres cobrem o sexo e os mamilos. Vale dizer, proíbe-se parte, libera-se outra. A parcialidade da proibição encontra representação na anatomia. A moderação do prazer é simbolizada pela vedação parcial da exposição corporal. Qual a relação disso com drogas? Com drogas se dá o mesmo. A necessidade que se tem de sinalizar que o excesso está proibido se faz permitindo o uso de certas drogas, e proibindo o de outras. A proibição parcial se efetiva através de processo de deslocamento. Por que a proibição é parcial? Porque drogas fazem bem e, também, fazem mal. Fazem bem porque favorecem a integração individual e grupal. Fazem mal porque, se utilizadas em excesso, provocam transtornos individuais e sociais. Para sinalizar que o excesso não é bem quisto, proíbe-se umas drogas, autoriza-se outras. Deslocamento da proibição do excesso. Assim, obtém-se a sensação de que o excesso está afastado. Não justifica a proibição legal na medida em que a proibição de algumas drogas não tem o poder evitar o excesso.

Razão sociológica: Já a razão sociológica possui milhões de anos. Está impressa na memória filogenética. Quando as diversas espécies de humanos vagavam, por milhões de anos (os hominídeos surgiram há aproximadamente sete milhões de anos), pelas savanas, em tribos composta por trinta a quarenta indivíduos, nesses agrupamentos já existiam dois tipos de indivíduos. Aqueles preocupados com a sobrevivência da espécie, e outros com a da tribo. Aqueles, guardiões dos genes (cuja diversidade assegura a adaptação da espécie às novas condições do ambiente) e, consequentemente, que entendem que todos são responsáveis por cada um. Estes, envolvidos com a sobrevivência da tribo e, por esse motivo, atentos às necessidades do presente, as quais dizem respeito principalmente à caça e a alimentação. No centro, o líder (hoje representado pelo governo). O conflito e a busca de equilíbrio entre estas forças, administrados pelo líder, é que tem assegurado, no curso dos anos, a sobrevivência do ser humano. a espécie, e reflexamente o indivíduo, é movida por forças opostas. Se as forças não estivessem em oposição, não se chegaria ao equilíbrio necessário para a adaptação ao meio. Naquelas tribos, a direita era composta pelos humanos que se saiam melhor na caça, na coleta e no embate com outras tribos. A esquerda era constituída pelos demais indivíduos. O líder era aquele que se destacava em força, empatia e inteligência.  Possuía a capacidade de manter o grupo unido, compondo esses subgrupos e forças. Sem a direita a tribo poderia morrer de inanição.  Sem a esquerda, com sua preocupação com a sobrevivência de todos, inclusive dos mais fracos, a tribo poderia se extinguir na linha sucessória. Ambos subgrupos eram, e continuam sendo, imprescindíveis, assim como o conflito e a composição entre eles, à sobrevivência da espécie. O indivíduo não pertence a um ou outro grupo em razão de suas condições e situação atuais, mas sim onde interna e constitucionalmente ele está inserido. Essa tendência da constituição do indivíduo, que precede ao nascimento – embora possa sofrer influência do histórico pessoal –, é uma das causas que provoca o desvio motivacional (ver subtítulo Cognição motivada, dissonância cognitiva e convicção no título A busca da imparcialidade, em comentários ao artigo 3º-B). A direita cuida do presente, a esquerda, do futuro. Os caçadores voltavam com a caça. O líder, não sem certa inconformidade deles, dividia a caça entre todos. A função do líder (e do governo hoje) é a de dividir a riqueza. Precisa se apoderar de parte do produto dos caçadores, não muito a ponto de que eles enfraqueçam (o que prejudicaria a caça), não pouco ao ponto de que a maioria passe fome e morra. Esses dois subgrupos se defrontam e se desentendem desde que surgiram os primeiros agrupamentos de hominídeos. Aquilo que chamamos de guerra cultural é manifestação dessas duas forças que movem a espécie. De um lado estão os conservadores, os liberais clássicos, a direita. De outro estão os progressistas, os sociais liberais, a esquerda. Nos sistemas de repressão criminal, eles aparecem, quando em seus extremos, sob a forma de garantistas (a referência é aos excessivamente garantistas, pois o processo é sim garantia) e punitivistas. Em seus bons modos, são, de um lado os conservadores, de outro, os liberais. As expressões esquerda e direita surgem nos parlamentos da França durante a Revolução Francesa. Os partidários do Rei sentavam à direita do orador. Defendiam interesses aristocracia. Eram os conservadores. Queriam que tudo prosseguisse como no velho regime. Os que sentavam à esquerda representavam a burguesia. A guerra cultural que hoje acontece no mundo ocidental envolve distintas, e opostas, visões do mundo. Nos primeiros tempos, a guerra se dava em torno de quantos pedaços da caça tocaria para os caçadores e quantos para os demais membros da tribo. De lá para cá, os interesses se multiplicaram. O que antes era uma luta em torno de um animal abatido, hoje é um confronto infindável em torno de ideias e soluções para problemas que afligem a humanidade. Na essência, o objeto da discussão persegue sendo o mesmo: como dividir a riqueza. A esquerda entende que devem ser concedidos maiores poderes ao Estado. A direita, o contrário, defende que o Estado deve ter menos poder e deve ser o menor possível, responsabilizando-se apenas pelo básico, principalmente segurança. Para a esquerda, cumpre ao Estado promover o bem estar da população, incluindo, principalmente, saúde, educação e auxílios aos menos favorecidos e às minorias (essa preocupação com minorias é contundente demonstração do cuidado que tem a esquerda com a diversificação genética, ou seja, com a perpetuação a espécie). A direita, sem deixar de se preocupar com a educação, entende que cada um deve ter apenas o que obteve por seu próprio esforço. Para a esquerda, todos são responsáveis por todos, ou, o que vem a representar o mesmo, o governo é responsável por todos. Para a direita, cada um é responsável por si próprio. A esquerda é favorável ao aumento da tributação. A direita é contra. A esquerda é pela divisão da riqueza. A direita, pelo acúmulo, ficando a distribuição para o futuro, sempre futuro naturalmente. Homossexualidade, aborto, feminismo, raça, ecologia, fronteiras entre países, ideia de nação, globalização, livre mercado, saúde, todos esses temas encontram distintas compreensões na esquerda e na direita. É luta sem fim. Absolutamente necessária. Tamanha é a força das convicções, de um lado ou de outro, em certos indivíduos, que desenvolvemos a certeza que há muito de congênito, e pouco de ambiente, nas posições ideológicas contrapostas. A guerra cultural foi bastante intensificada nos últimos anos. A razão disso está nas redes sociais. Em redes, ressurgem multidões. Multidões exercitam a ignorância, a selvageria, o extremismo, a unidade grupal, a guerra. Multidões são as tribos primitivas em estado de guerra. Sobre esse tema, ver título O operador de direito, justiça e a multidão, de nossa autoria, publicado na revista virtual Jusbrasil. Consequência dessa facilitação da conexão global é a intensificação da guerra cultural. E as drogas? As drogas fazem parte dessa guerra. Para direita, a droga é um mal. É desagregadora da família, das tradições, do status quo, desafia as leis, a ordem, é o prazer sem limite, um mau costume. A direita abomina a desordem. Na desordem, o que foi acumulado fica em risco. É preciso a lei e a ordem. A força do líder e a segurança que ele possa garantir. Sim, a segurança que o líder pode dar interessa à direita. Sua atribuição de dividir, não. Não interessa. Assim se movem homem e espécie. Pois então, essa é a segunda razão da proibição das drogas: a guerra cultural.

Não há lugar para o otimismo

Descriminalização. Se ocorrer irá demorar: O início da grande investida contra o tráfico iniciou nos EUA durante o governo de Richard Nixon na década de 1970, quando foi decidido que o grande mal que afligia aquela nação era o consumo de drogas. Foi criado e organizado um complexo sistema de repressão. Na sequência, esse sistema foi exportado para países latino-americanos. É do interesse dos EUA interagir com órgãos de repressão de outros países. A integração da repressão – com transferências de recursos, materiais, tecnologias, conhecimentos, informações –, são os mais eficientes métodos de manter controle e domínio, vale dizer, supremacia. Uma das formas da integração da repressão é a cooperação internacional, que mal utilizada, sem controle, se presta para eliminar a concorrência. A nação mais fraca deve sempre estar atenta à colaboração oferecida pela mais forte. Lobos não pastoreiam ovelhas. Preferem comê-las. Aliando-se à propaganda contra o mal, há o interesse de órgãos da repressão no recebimento de recursos materiais e financeiros. Os repressores operam maximizando sua própria importância. Como a repressão depende da droga, ela, a repressão, é a primeira viciada. O problema é criado e aumentado, objetivando justificar estruturas, materiais, pessoal e gastos. A dificuldade de adoção de solução racional para a questão drogas encontra barreira nesses interesses, responsáveis por criar e alimentar crendices e tabus. A mídia, sem deixar de cobrar seu preço, faz a sua parte. Em tempos de redes virtuais, nunca foi tão fácil dar ordens às mentes. A desinteligência, as concepções superficiais, a resignificação de conceitos elementares se disseminam rápida e eficientemente. Alguns indivíduos eram mais inteligentes quando nada tinham na cabeça. O mundo emburrece. A internet nos ludibriou. Quebrou todas as expectativas. Imaginava-se que proporcionaria mais conhecimento à humanidade. O efeito foi o contrário. Quem não lia passou a ler, e mentes vazias não distinguem a verdade da mentira. Acreditam nessa última, pois impressiona mais, é mais interessante. A proibição de determinadas drogas não dispõe de lógica e tem por fundamento a crendice. A crença é nutrida pelos seguintes ingredientes: interesse da indústria farmacêutica, dos órgãos de repressão, imperialismo, a ética protestante, o deslocamento psíquico da proibição do excesso, a ideologia conservadora, a propaganda e a falta de conhecimento da população. Há, também, enquanto condimento final, o interesse do maior interessado, o próprio traficante: sem a proibição, ele não teria lucro nem fonte de renda. É um banquete pesado, forte, de onde se conclui que tão cedo o imbróglio das drogas não será resolvido. E o genocídio persistirá por anos.

Redução do poder repressivo das polícias: Há outro aspecto, particular, pelo qual a descriminalização das drogas não interessa a alguns setores de órgãos diretamente relacionados à repressão penal: reduziria seu poder de prender. Para condenar um traficante de drogas são suficientes – é entendimento jurisprudencial – dois elementos de prova: a droga e o testemunho de dois, no máximo três, policiais (testemunhas de prisão em flagrante). Ora, com essa prova, é possível policiais desonestos, que objetivam burlar a lei penal, prender, praticamente, qualquer pessoa. É suficiente encaminhar uma porção de droga à perícia, suficiente para caracterizar o tráfico, a qual pode ser facilmente obtida mediante subtração de outra apreensão, e dois, ou três, policiais dispostos a mentir. Podem ser policiais civis, federais, militares ou da rodoviária federal. Que repressor abriria mão de tamanha liberdade para prender?

Fim

Respostas de 2

  1. Me desculpe ao autor, mas o ANPP é de suma importância para o processo penal brasileiro, como o texto mesmo diz, já existe em todo mundo civilizado algum tipo de justiça criminal consensual. Me parece que o autor ainda está nos anos 90, indisponibilidade da ação penal tá ficando no passado a realidade são os acordos. Falou em que não há pressa nos tramites processuais penais, o que discordo e rechaço, enquanto as comarcas estão abarrotados de processos penais cujo as penas não passarão de 4 anos (mesmo nos crimes que a pena abstrata máxima passe dos 4 anos) vários crimes que mereceria uma condenação penal tem a sua punibilidade prescritas. Sem contar que os ANPP não tem nada haver com o instituto parecido dos EUA, lá nem o judiciário tem controle(por isso do desastre lá), ao contrario do ANPP aqui no Brasil.

    1. Entendo tua posição. É majoritária. Mas mantenho o entendimento de que processo criminal, mesmo quando prescreve, é o melhor remédio para a doença.

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