Código de Processo Penal Comentado | Flavio Meirelles Medeiros

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Edição 2024

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Artigo 28o-A CPP – Acordo de não persecução penal

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Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);   (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I – se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II – se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III – ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV – nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.   (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Acordo de não persecução penal
A Transação nos Sistemas Jurídicos: Common Law vs. Europa

No sistema da common law, a transação é compreendida como uma negociação direta entre as partes, sem qualquer fiscalização judicial. Em contraste, no modelo europeu, existe a possibilidade de controle judicial sobre esse tipo de acordo.

Na Europa, a transação foi introduzida pelo Ministério Público na década de 1970. Atualmente, vários países adotam práticas de conciliação, incluindo Alemanha, Holanda, Espanha, Itália, Colômbia, Chile, Uruguai e Argentina. No Brasil, a conciliação foi incorporada ao ordenamento jurídico em 1995, com a promulgação da Lei n.º 9.099/1995, que regulamenta os juizados especiais. Essa legislação prevê mecanismos conciliatórios, como a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89), aplicáveis a delitos cuja pena máxima não ultrapasse dois anos.

O Acordo de Não Persecução Penal: Solução ou Ilusão?

A introdução do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) tem sido amplamente celebrada como um avanço na política criminal. No entanto, há motivos para questionar os benefícios reais desse instrumento. A principal justificativa para sua adoção reside na promessa de reduzir a sobrecarga do Judiciário, permitindo que os juízes concentrem esforços em crimes de maior gravidade, além de contribuir para a diminuição dos custos da justiça criminal.

No entanto, essa visão ignora um aspecto fundamental: o próprio processo penal, independentemente de seu desfecho, já representa uma sanção. Mesmo quando não há uma expectativa concreta de pena privativa de liberdade, a existência do processo impõe ao acusado um fardo significativo. O risco de prisão persiste enquanto o julgamento não é concluído, criando uma incerteza que, para o réu, se traduz em um estado de constante ameaça à sua liberdade.

Além disso, o desenvolvimento do procedimento criminal – com etapas como interrogatórios, inquirição de testemunhas, intimações e comparecimentos obrigatórios – gera efeitos análogos aos da pena, especialmente no que diz respeito à prevenção especial. Se o objetivo da pena é, entre outras finalidades, a ressocialização do infrator, não se pode ignorar que a longa duração do processo penal muitas vezes cumpre essa mesma função. A experiência de responder a um processo pode ter impacto pedagógico significativo sobre o réu, independentemente do resultado final.

Por essa razão, processos em que a prisão não é um desfecho provável tendem a ser relegados a segundo plano. A celeridade processual é priorizada em casos de réus presos ou quando há fortes indícios de inocência. Nos demais, a própria morosidade pode, paradoxalmente, atuar como um instrumento pedagógico. E, do ponto de vista da política criminal, não há prejuízo relevante se um processo de menor gravidade prescrever antes da condenação, desde que sua tramitação tenha produzido os efeitos esperados sobre o acusado.

A adoção do ANPP não deve ser tratada como um avanço inquestionável. A simples existência desse modelo em outros países não é argumento suficiente para sua eficácia. Nos Estados Unidos, por exemplo, o plea bargain – sistema que inspirou acordos de não persecução penal – tem demonstrado falhas graves, incluindo desigualdades no tratamento dos acusados e incentivo à confissão de crimes por medo do processo.

Outro ponto negligenciado é o risco de reincidência criminal. Um furto cometido hoje pode evoluir para um assalto amanhã. Um indivíduo que frequentemente pratica lesões corporais pode, no futuro, cometer um homicídio. Uma simples audiência para homologação de um acordo está muito aquém, em termos de impacto, quando comparada à pressão psicológica exercida por um processo penal longo e ameaçador.

Ademais, os delitos abarcados pelo sistema de acordos de não persecução não se limitam a crimes de menor gravidade. Pelo contrário, muitos delitos que exigiriam maior repressão e uma punição pedagógica rigorosa podem ser incluídos nesse modelo, como:

Crimes contra a administração pública: concussão (art. 316 do CP), corrupção ativa (art. 333 do CP), corrupção passiva (art. 317 do CP), peculato (art. 312 do CP);

Crimes contra a fé pública: falso testemunho ou falsa perícia (art. 342 do CP), falsificação de documento público (art. 297 do CP);

Crimes patrimoniais e contra a segurança pública: furto (inclusive algumas formas qualificadas – art. 155 do CP), incêndio (art. 250 do CP).

A finalidade pedagógica do processo penal tem sido negligenciada no debate sobre medidas alternativas. No entanto, trata-se de um aspecto essencial para a política criminal e que não pode ser ignorado. A pressa em buscar soluções alternativas pode, na verdade, comprometer a função repressiva e preventiva do direito penal.

Não é o excesso de processos no Judiciário que enfraquece a política criminal. O verdadeiro problema do sistema repressivo está na fase investigatória, e não no processo. A conhecida frase popular “a polícia prende e a justiça solta” não reflete a realidade. Na prática, a polícia não prende na maior parte dos casos, e não há estatísticas confiáveis no Brasil sobre a relação entre crimes cometidos e crimes solucionados. Os poucos estudos existentes se concentram no delito de homicídio (dados de 2024), mas a maioria dos crimes, especialmente fraudes e golpes virtuais, sequer chegam ao conhecimento das autoridades.

A estimativa, ainda que imprecisa, é de que mais de 90% dos crimes fiquem sem solução. Se há um problema estrutural no sistema repressivo, ele não está no processo penal, mas sim nos órgãos de investigação, que frequentemente falham em apurar delitos e garantir que os responsáveis sejam levados a julgamento.

Assim, antes de priorizar a ampliação de acordos e soluções negociadas, a política criminal deveria focar na eficiência da investigação e na garantia da punição dos verdadeiros responsáveis pelos crimes. Sem isso, a ilusão de que o ANPP representa um avanço pode apenas reforçar a impunidade e enfraquecer o impacto do Direito Penal na sociedade.

A Experiência Norte-Americana: Um Alerta

A prática do plea bargain nos Estados Unidos ilustra os potenciais perigos dessa lógica negocial. Lá, é comum que promotores utilizem estratégias agressivas de negociação, muitas vezes ameaçando réus com acusações mais severas do que os indícios realmente sustentam. Diante da perspectiva de enfrentar um julgamento com penas extremamente altas, muitos acusados aceitam acordos não necessariamente por reconhecerem sua culpa, mas por medo do pior quadro possível.

Essa realidade impacta de forma desproporcional os acusados com menos recursos financeiros, que frequentemente não podem arcar com advogados experientes e acabam dependendo da defesa pública, uma estrutura sobrecarregada e subfinanciada. Assim, a barganha penal acaba por aprofundar desigualdades sociais, tornando o resultado do processo menos dependente da verdade dos fatos e mais condicionado à capacidade do réu de negociar com o Estado.

O Diferencial Brasileiro: Garantias e Limites

No Brasil, a gratuidade da justiça para aqueles que não podem pagar por defesa é um fator diferenciador relevante em comparação com o modelo norte-americano. Aqui, o réu sem condições financeiras tem acesso à Defensoria Pública, cujos membros são selecionados por rigoroso concurso público, garantindo uma defesa qualificada. Além disso, o ordenamento jurídico brasileiro permite que o réu recorra sem custos, diferentemente dos EUA, onde o acesso à justiça tem um custo elevado, tornando o processo penal um instrumento desigual de coerção contra os economicamente vulneráveis.

Diante disso, a preservação de limites bem definidos para os acordos penais no Brasil é essencial. É fundamental evitar que o processo penal se torne uma mera barganha, onde a desigualdade de forças entre o Estado e o acusado conduza a acordos injustos. O modelo brasileiro, ao condicionar o ANPP a delitos de menor potencial ofensivo e estabelecer critérios objetivos para sua aplicação, busca um equilíbrio entre eficiência e justiça, garantindo que a negociação penal não comprometa as garantias individuais nem o princípio da verdade real.

A Resolução nº 181/2017 e a Justificativa Internacional

Para justificar a legalidade da Resolução nº 181/2017, um dos principais argumentos foi sua suposta conformidade com a Resolução nº 45/110 da Assembleia Geral das Nações Unidas, aprovada em 1990, que recomenda: “Sempre que adequado e compatível com o sistema jurídico, a polícia, o Ministério Público ou outros serviços encarregados da Justiça Criminal podem retirar os procedimentos contra o infrator se considerarem que não é necessário recorrer a um processo judicial com vistas à proteção da sociedade, à prevenção do crime ou à promoção do respeito pela lei ou pelos direitos das vítimas.”

Entretanto, essa fundamentação não confere legitimidade à violação do princípio da obrigatoriedade, por dois motivos principais: 1 – Trata-se de uma mera recomendação internacional, sem força normativa obrigatória no Brasil; 2 – O próprio texto da Resolução da ONU condiciona sua aplicação a ser “adequada e compatível” com o sistema jurídico de cada país. No Brasil, a obrigatoriedade da ação penal pública é uma regra clara e positivada, não podendo ser afastada por uma recomendação internacional.

Além disso, a natureza da Resolução nº 181/2017 é eminentemente processual, pois versa sobre a exclusão do processo penal, e não sobre matéria administrativa. No Brasil, conforme o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, somente a União tem competência para legislar sobre Direito Processual, e uma resolução administrativa não pode inovar no ordenamento jurídico ao ponto de alterar o regime de persecução penal.

Análise da Constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal

A constitucionalidade de alguns dispositivos da Resolução nº 181/2017 foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nº 5790 e 5793, propostas pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e pelo Conselho Federal da OAB, respectivamente. Nessas ações, foram questionadas normas que tratavam da possibilidade de investigação criminal pelo Ministério Público.

O STF, ao julgar as ações improcedentes, considerou constitucionais os dispositivos que regulamentavam a atuação investigatória do MP. No entanto, não houve julgamento específico sobre os dispositivos que tratam do acordo de não persecução penal (ANPP).

A Superação da Questão pelo Legislador

A partir da Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o acordo de não persecução penal foi formalmente adotado pelo legislador, o que eliminou as discussões sobre a possibilidade de regulamentação da matéria pelo Ministério Público. Com isso, a questão foi superada em parte, pois o ANPP passou a ter previsão legal expressa.

Cabimento do acordo de não persecução penal

Nos termos do caput do artigo 28-A do Código de Processo Penal, não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado, de forma formal e circunstanciada, a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima seja inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal (ANPP), desde que tal medida se revele necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. O acordo deverá observar as condições estabelecidas nos incisos I a V do referido dispositivo, podendo ser ajustadas de forma cumulativa ou alternativa.

Para a formalização do ANPP, é imprescindível o preenchimento de quatro requisitos cumulativos e obrigatórios:

1 – Não ser caso de arquivamento das investigações (ver comentários ao artigo 395, que versa sobre a rejeição da denúncia);

2 – Confissão da infração penal, desde que sem violência ou grave ameaça;

3 – Pena mínima inferior a quatro anos;

4 – O acordo deve ser necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

Além disso, é essencial que o investigado aceite submeter-se às condições previstas nos incisos I a V do artigo 28-A. A ausência de qualquer um desses elementos inviabiliza a celebração do acordo.

Importante destacar que, para a aferição da pena mínima cominada ao delito, devem ser consideradas todas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto, nos termos do §1º do artigo 28-A.

De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a aplicação do ANPP tem se consolidado como instrumento de política criminal. Entre janeiro de 2020 e agosto de 2024, foram celebrados 17.853 acordos de não persecução penal em todo o país, evidenciando sua relevância prática no sistema de justiça criminal.

Justa Causa e Viabilidade do Acordo de Não Persecução Penal

Nos termos do caput do artigo 28-A do Código de Processo Penal, a celebração do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) somente é admissível se não for caso de arquivamento. Mas quando se configura a necessidade de arquivamento? Ocorre quando estão ausentes os pressupostos processuais, as condições genéricas da ação e as condições específicas exigidas para a persecução penal.

Os pressupostos processuais correspondem aos requisitos indispensáveis para a constituição válida da relação jurídica processual. Dentre eles, destacam-se:

– Inexistência de litispendência ou coisa julgada;

– Ausência de ilegitimidade das partes;

– Incompetência absoluta do juízo;

– Situações de suspeição ou impedimento do magistrado.

No que se refere às condições genéricas da ação, são três os requisitos essenciais, aplicáveis a qualquer demanda:

1 – Possibilidade jurídica do pedido;

2 – Interesse de agir;

3 – Legitimidade das partes.

Já as condições específicas da ação são exigíveis apenas em determinados casos, conforme a natureza do ilícito penal.

Para que o ANPP seja viável, o fato investigado deve configurar crime, ou seja, deve haver possibilidade jurídica do pedido. A prescrição, por exemplo, afasta essa possibilidade, inviabilizando tanto a denúncia quanto a formalização do acordo.

A ausência de interesse de agir ocorre quando não há elementos indiciários suficientes para justificar a propositura da ação penal. Em outras palavras, os indícios disponíveis devem demonstrar não apenas a existência do crime, mas também a plausibilidade de sua autoria—configurando, assim, a justa causa.

É importante assinalar que a confissão isolada, desacompanhada de outros elementos indiciários, não é suficiente para caracterizar a justa causa.

Além disso, o acordo exige a presença da legitimidade processual. Assim, o Ministério Público não possui legitimidade ativa nos crimes de ação penal privada. Da mesma forma, se o investigado for menor de 18 anos, há ilegitimidade passiva, uma vez que a apuração de atos infracionais se dá na esfera do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Exemplos de condições específicas da ação incluem representação da vítima nos crimes de ação penal pública condicionada; requisição do Ministro da Justiça nos crimes que dependem dessa formalidade; lançamento definitivo do crédito tributário, nos crimes contra a ordem tributária (art. 83 da Lei nº 9.430/1996).

Dessa forma, a celebração do ANPP é incabível nos casos em que a denúncia deva ser rejeitada ou quando a hipótese seja de absolvição sumária—matérias abordadas detalhadamente nos comentários aos artigos 395 e 397.

Aferição da Pena Mínima

Nos termos do §1º do artigo 28-A do Código de Processo Penal, para a aferição da pena mínima cominada ao delito, devem ser consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.

Nos casos de causas de aumento, adota-se o fator que menos majora a pena. Nas causas de diminuição, aplica-se o fator que mais reduz a pena.

Exemplo dessa regra ocorre nos casos de tentativa (artigo 14, inciso II, do Código Penal), em que a pena pode ser reduzida de um a dois terços. Para fins de viabilidade do acordo, aplica-se o redutor mais favorável ao réu, ou seja, a pena deve ser reduzida em dois terços.

Já em relação à habitualidade criminosa, é fundamental distinguir essa prática do crime continuado previsto no artigo 71 do Código Penal. O crime continuado caracteriza-se quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, desde que preenchidos os requisitos de tempo, lugar, modo de execução e outras circunstâncias semelhantes. A habitualidade criminosa, por outro lado, não se confunde com esse instituto e não pode ser utilizada para o cálculo da pena mínima no contexto do ANPP.

Confissão Formal e Circunstancial: Limites

A confissão formal e circunstanciada da prática da infração penal é um requisito obrigatório para a celebração do ANPP. Entretanto, essa confissão deve ser realizada dentro da formalidade do próprio acordo, não se aproveitando eventual confissão feita na fase policial.

Se houve confissão na fase policial, essa, por si só, não tem valor para fins de ANPP – é necessária nova manifestação formal no curso do acordo.

Valor Probatório da Confissão no ANPP

O reconhecimento da prática do crime no âmbito do ANPP não implica sua veracidade, pois é obtido unicamente para viabilizar a formalização do acordo. Isso porque o investigado pode optar por confessar para evitar os riscos e consequências de um processo penal, sem que isso signifique necessariamente a autoria e a materialidade do delito.

Assim, a confissão no ANPP, isoladamente considerada, não possui valor probatório. Essa mesma limitação se aplica à confissão firmada em acordos de colaboração premiada. Pelos mesmos motivos, essa confissão formal não faz prova em outros processos que tratem de outros assuntos e de outros ramos do direito.

O investigado não está obrigado a indicar coautores ou fornecer informações que possam incriminá-lo além do que já foi confessado. Caso contrário, estaríamos diante do instituto da delação premiada, e não de um ANPP.

A Confissão Como Justa Causa Para a Ação Penal

Não se pode sustentar que a confissão, isoladamente, seja suficiente para emprestar justa causa à ação penal. Se a única prova disponível for a confissão, sem quaisquer outros elementos indiciários que a corroborem, o acordo não pode ser realizado e tampouco pode servir de base para a propositura da ação penal.

Procedimento Correto Para Celebração do Acordo

Deve haver certo cuidado na produção do acordo. A sequência adequada é esta: O Ministério Público propõe o acordo, incluindo todas as cláusulas; o investigado, assistido por defensor, aceita as condições e, só então, formalizando a confissão; toda a negociação deve ser documentada, abrangendo tanto a proposta quanto o aceite e a confissão.

O investigado não deve confessar previamente sem que haja uma proposta formal do MP, pois, caso o Promotor não aceite o acordo, a confissão isolada pode ser prejudicial.

Caso o Promotor de Justiça recuse a proposta sob a alegação de que a confissão é insatisfatória, o investigado tem o direito de submeter a questão ao juiz, que decidirá sobre a validade e eficácia do acordo.

Condições Alternativas ou Cumulativas no Acordo de Não Persecução Penal

Nos termos do §2º do artigo 28-A do Código de Processo Penal, as condições impostas para a formalização do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) podem ser alternativas ou cumulativas, a depender da avaliação do Ministério Público e da adequação ao caso concreto.

As condições estabelecidas são as seguintes:

– Reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo (inciso I);

-Renúncia voluntária a bens ou direitos indicados pelo Ministério Público, quando identificados como instrumento, produto ou proveito do crime (inciso II);

– Prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, pelo período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, conforme regras do artigo 46 do Código Penal (inciso III);

– Pagamento de prestação pecuniária, nos termos do artigo 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social indicada pelo juízo da execução, preferencialmente voltada à proteção de bens jurídicos semelhantes aos atingidos pelo delito (inciso IV);

– Cumprimento de outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada (inciso V).

A imposição de outra condição pelo Ministério Público é juridicamente válida, pois não se trata de pena, mas de requisito para a formalização do acordo. Caso fosse considerada pena, incidiria o princípio da legalidade estrita (nullum crimen, nulla poena sine lege), o que tornaria tal exigência ilegal.

O prazo máximo para cumprimento dessa exigência não pode ultrapassar o período previsto para a prestação de serviço à comunidade, conforme analogia com o inciso III do artigo 28-A.

Causas Proibitivas do Acordo

A formalização do ANPP é expressamente vedada nas seguintes hipóteses:

– Crimes de competência dos Juizados Especiais Criminais, ou seja, infrações penais cujas penas não ultrapassem dois anos, nos termos da Lei nº 9.099/1995;

– Reincidência ou habitualidade criminosa, quando houver elementos probatórios indicativos de conduta criminosa reiterada ou profissional, salvo se as infrações pretéritas forem insignificantes (inciso II);

– Benefício anterior em ANPP, transação penal ou suspensão condicional do processo nos cinco anos anteriores à infração penal (inciso III);

– Crimes praticados no contexto de violência doméstica ou familiar, bem como aqueles cometidos contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, conforme descrito no artigo 7º da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006).

A reincidência penal ocorre quando o agente pratica novo crime após ter sido condenado definitivamente por outro crime, seja no Brasil ou no exterior (artigo 63 do Código Penal).

A condenação anterior não gera reincidência se, entre o cumprimento (ou extinção) da pena e a infração posterior, tiver decorrido mais de cinco anos, computado o período de prova da suspensão condicional da pena e do livramento condicional, desde que não tenha havido revogação (artigo 64, inciso I, do Código Penal).

Formalização do Acordo e Participação do Advogado

A celebração do Acordo de Não Persecução Penal deve ocorrer por escrito, com a presença obrigatória do investigado, do representante do Ministério Público e do advogado ou defensor público.

O Ministério Público deve garantir ao defensor o conhecimento prévio das provas constantes dos autos, possibilitando análise técnica adequada. O acesso aos autos é essencial para que o defensor possa avaliar a existência de indícios suficientes de autoria e materialidade, a viabilidade ou não da celebração do acordo e a proporcionalidade das condições impostas.

Caso não existam indícios mínimos de autoria ou materialidade, não há razão para firmar o acordo.

Poder-dever do Ministério Público e direito do investigado

Diferentemente do que frequentemente se presume, o poder do Ministério Público de oferecer o ANPP não é discricionário. Trata-se de um poder-dever, ou seja, preenchidos os requisitos legais, a proposta do acordo deve ser feita.

Por outro lado, o investigado possui o direito subjetivo à formalização do acordo, caso cumpra todas as exigências normativas. Assim como ocorre com outros institutos, como sursis, livramento condicional e suspensão condicional do processo, a não persecução penal também configura um direito do investigado, desde que os critérios legais estejam preenchidos. O direito ao ANPP não pode ser negado pelo Ministério Público de maneira arbitrária ou por mero capricho. A negativa injustificada viola princípios processuais fundamentais e pode ser objeto de controle judicial.

Caso o Ministério Público se recuse indevidamente a propor o acordo, o investigado poderá impugnar essa decisão por meio de habeas corpus a ser interposto no Tribunal competente.

Na hipótese de o Tribunal reconhecer a existência do direito ao acordo e, ainda assim, o Ministério Público persista na negativa, eventual denúncia não poderá ser recebida, pois o ANPP, quando cabível, passa a ser uma verdadeira condição da ação, assim como ocorre com a representação da vítima e a requisição ministerial em crimes que dependem dessas formalidades.

Acordo de não persecução penal por iniciativa da autoridade policial

Os professores Ruchester Marreiros Barbosa e Raphael Zanon da Silva, em artigo publicado na Revista Consultor Jurídico (Conjur) intitulado “Delegado de polícia deve viabilizar acordo de não persecução penal“, sustentam que é possível chegar à conclusão que cabe ao presidente do inquérito policial (…) a elaboração de minuta do acordo de não persecução penal, assumindo o formato de um protocolo de intenções (…). A adoção do citado protocolo pelo Delegado de Polícia tem por objetivo evitar a realização de meios investigativos de forma inútil, que ao final serão descartados, denotando desperdício de recursos materiais e humanos.

A sugestão apresentada é louvável, pois, se a demora no aprofundamento da investigação não impacta o resultado final, não há prejuízo na suspensão das diligências para a formalização do acordo.

Sendo a investigação de iniciativa do Ministério Público, poderia o promotor suspender seu curso para viabilizar o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP)? A resposta deve ser afirmativa, desde que essa suspensão não comprometa o prosseguimento das investigações futuras.

Se a investigação conduzida pelo Ministério Público possui a mesma natureza e finalidade daquela presidida pela autoridade policial—ou seja, a obtenção de elementos indiciários suficientes à propositura da ação penal—, não há razão para que a suspensão seja permitida ao MP e vedada ao delegado.

A otimização dos recursos policiais impõe uma racionalização dos esforços investigativos. Concentrar tempo, pessoal e material em diligências que posteriormente não serão aproveitadas é contraproducente. A gestão eficiente da persecução penal exige a priorização de delitos de maior gravidade, garantindo uma repressão criminal mais eficaz.

Oportunidade para a proposta do acordo de não persecução penal

O artigo 3o, letra B, parágrafo XVII do CPP ao afirmar que compete ao juiz das garantias decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal não significa que na fase processual o juiz de instrução esteja vedado de formalizar o acordo.

O ANPP pode ser realizado em diferentes momentos processuais, desde que presentes os requisitos legais, inclusive em sede recursal.

No curso do inquérito policial – Se já houver elementos suficientes para a propositura da ação, o Ministério Público pode oferecer o acordo. A autoridade policial, por sua vez, pode oficiar o MP sugerindo a formalização do ANPP, fundamentando sua recomendação na presença da justa causa para a ação penal.

No momento do recebimento do inquérito pelo MP – Após a análise dos autos, o Promotor pode propor o acordo antes de oferecer a denúncia.

Acordo anexo à denúncia – O MP pode apresentar a denúncia e, simultaneamente, em anexo, propor o acordo. Nesse caso, caberá à defesa decidir entre apresentar resposta à acusação ou aceitar o acordo, já incluindo a confissão formal. Se aceito, o processo é suspenso, e, após cumprido acordo, o recebimento da denúncia é revogado.

Durante a tramitação do processo – Se a ação penal já estiver em andamento e o ANPP ainda não tiver sido oferecido, nada impede sua formalização, desde que preenchidos os requisitos legais.

Em fase recursal – O réu pode manifestar seu interesse no ANPP durante a fase recursal. Caso o MP entenda viável, apresenta proposta. Se inviável, nega o pedido apresentando fundamentação. Se for aceita a proposta com a apresentação por escrito da confissão, os autos baixam para a audiência e homologação.

A audiência de custódia não é um momento apropriado para a proposta do ANPP, pois a confissão, além da confissão estar vedada nesse ato, não se pode considerar voluntária a adesão ao acordo por um investigado que está sob coação da privação de liberdade.

A lei n. 8.038/90, que institui normas procedimentais para os processos perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, prevê a possibilidade do acordo em seu artigo 1⁠º, parágrafo 3⁠º.

Preclusão do direito ao acordo

O ANPP só pode ser proposto uma única vez. Se o investigado recusar a proposta, não terá direito a uma nova oportunidade posteriormente.

Essa limitação decorre da necessidade de evitar sucessivas interrupções no curso da investigação e do processo, o que comprometeria a celeridade processual e a efetividade da persecução penal.

Recusa do Ministério Público e possibilidade de revisão

Caso o Ministério Público se recuse a propor o ANPP, o investigado pode requerer a remessa dos autos para revisão hierárquica, nos termos do artigo 28 do Código de Processo Penal. No Ministério Público Estadual, a revisão cabe ao Procurador-Geral de Justiça. No Ministério Público Federal, a competência é das Câmaras de Coordenação e Revisão (art. 62, IV, da LC nº 75/1993), salvo nos casos de competência originária do Procurador-Geral.

Nos termos do §4º do artigo 28-A do CPP, o investigado e seu defensor, assim como o juiz, devem ser intimados da decisão de arquivamento.

Por aplicação do artigo 28, ao qual o artigo 28A, parágrafo IV, remete, o investigado ou seu defensor, além do juiz deverão ser intimados. Dessa maneira, o investigado poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão com apresentação de razões.

A necessidade de intimação do juiz decorre de decisão proferida na ADI n. 6.298 que determina a intimação do juiz no caso de arquivamento do inquérito, podendo, por igual o juiz, apresentar razões buscando a revisão da decisão do promotor.

Os recursos não suspendem a prescrição. A suspensão da prescrição só começa a correr a partir do início do cumprimento do acordo (artigo 116, inciso IV do Código Penal).

Jurisprudência

O juiz não pode impedir a remessa ao órgão superior no MP: Não se tratando de hipótese de manifesta inadmissibilidade do ANPP, a defesa pode requerer o reexame de sua negativa, nos termos do art. 28-A, § 14, do Código de Processo Penal (CPP) (2), não sendo legítimo, em regra, que o Judiciário controle o ato de recusa, quanto ao mérito, a fim de impedir a remessa ao órgão superior no MP. Isso porque a redação do art. 28-A, § 14, do CPP determina a iniciativa da defesa para requerer a sua aplicação (HC 194677/SP, relator Min. Gilmar Mendes, julgamento em 11.5.2021).

Suspensão da prescrição enquanto vigente o acordo

Conforme o artigo 116, inciso IV do Código Penal,  antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo de não persecução penal.

Negativa de homologação do acordo pelo juiz

Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, os autos serão devolvidos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.

O juiz poderá recusar homologação do acordo quando ele não atender aos requisitos legais, ou quando não for realizada a adequação a que se refere o parágrafo 5º do presente dispositivo.

Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações, oferecimento da denúncia ou arquivamento.

Ambas as partes, MP e defesa, podem interpor recurso em sentido estrito da decisão que recusar homologação (artigo 581 inciso XXV).

Homologação do acordo e audiência

Para a homologação do Acordo de Não Persecução Penal, será realizada audiência na qual o juiz verificará a voluntariedade do investigado e a legalidade do acordo. A voluntariedade significa que o investigado adere ao acordo de forma espontânea, sem coação.

Além da legalidade e da proporcionalidade das condições estabelecidas, o juiz ouvirá o promotor, que poderá se manifestar oralmente ou apresentar um memorial resumido com os indícios que caracterizam a justa causa. Em seguida, o defensor do investigado poderá se manifestar, garantindo o contraditório e evitando que o juiz analise as provas de forma isolada.

O acordo será formalizado por escrito e assinado pelo promotor, pelo investigado e por seu defensor.

Após a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que o acordo seja executado perante o juízo da execução penal. A vítima será intimada tanto da homologação quanto de eventual descumprimento do acordo.

A celebração e o cumprimento do acordo não constarão na certidão de antecedentes criminais, salvo para impedir que o investigado celebre novo acordo dentro do prazo de cinco anos.

Revogação do acordo de não persecução penal

Se o investigado descumprir as condições do acordo, o Ministério Público comunicará o juízo para que o acordo seja rescindido e a denúncia oferecida.

O juiz competente para decidir sobre a rescisão do acordo não é o juiz da execução penal, mas sim o juiz das garantias ou o juiz da instrução e julgamento. Como foi quem acompanhou a formalização do acordo, ele tem melhores condições de avaliar se houve descumprimento e se o prosseguimento da ação penal é necessário.

O investigado deve ser notificado da rescisão para que possa exercer seu direito ao contraditório e à ampla defesa. Se houver necessidade de prova testemunhal para esclarecer os fatos, o juiz designará audiência.

O descumprimento do acordo pode ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para não conceder a suspensão condicional do processo caso essa medida seja posteriormente cogitada.

Cumprimento do acordo e certidão de antecedentes criminais

Se o acordo for integralmente cumprido, o juízo competente decretará a extinção da punibilidade.

A celebração e o cumprimento do acordo não devem constar na certidão de antecedentes criminais, salvo para impedir um novo acordo no período de cinco anos.

Crimes tributários e acordo de não persecução penal

Nos crimes tributários, o pagamento do débito extingue a punibilidade. Se o tributo for quitado, o crime deixa de existir e o acordo se torna desnecessário.

Se o investigado não tiver condições de pagar, isso não impede a formalização do acordo. O artigo 28-A prevê que a reparação do dano ou a restituição do bem só é exigível se houver possibilidade de fazê-lo.

Caso o investigado tenha condições de pagar apenas parte do tributo devido, nada impede que seja realizado um pagamento parcial, com abatimento proporcional do valor remanescente.

Retroatividade da lei e limites do acordo de não persecução penal

A norma que substitui a pena pelo cumprimento de determinadas condições tem natureza de direito material, pois trata do poder punitivo do Estado. Sendo mais benéfica, aplica-se de forma retroativa. A propósito da diferenciação entre normas penais e processuais penais, ver Capítulo 12 da Teoria Geral de nossa Breve Teoria Geral do Processo.

A Constituição Federal estabelece que a lei penal mais benéfica retroage em favor do réu (art. 5º, inciso XL da CF). O Código Penal (artigo 2º, parágrafo único) reforça esse princípio ao determinar que a norma favorável se aplica mesmo a fatos já julgados.

O acordo pode ser proposto ou requerido tanto na fase investigatória quanto em processos já em andamento ou até mesmo depois de findos. Se o acordo for formalizado após o trânsito em julgado, a eficácia da sentença condenatória fica suspensa até o seu cumprimento. Se o investigado descumprir o acordo, os efeitos da sentença voltam a ser aplicados.

Inicialmente, a jurisprudência limitava o acordo ao período anterior ao oferecimento da denúncia. Com o tempo, passou a admiti-lo também na fase recursal, mas ainda há resistência à sua concessão após o trânsito em julgado.

Essa restrição não se justifica. A ser aplicada, dois réus que cometeram o mesmo crime na mesma data podem receber tratamentos distintos apenas porque um teve seu processo julgado mais rapidamente. A sorte de um não pode ser usada como critério jurídico para negar um direito ao outro.

O trânsito em julgado de uma condenação penal não é imutável. A revisão criminal pode ser interposta a qualquer tempo, inclusive após o cumprimento da pena. A Lei de Execução Penal determina que o juiz da execução deve aplicar a lei posterior mais benéfica a processos já julgados.

A tese da irretroatividade, diante da barreira do trânsito e julgado, vai em sentido contrário à despenalização e a ressocialização do condenado: O artigo 66 da Lei 7.210/84 prescreve que compete ao Juiz da execução aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado.

Logo, o entendimento de que a retroatividade da possibilidade acordo não ultrapassa o trânsito em julgado contraria quatro disposições legais expressas: art. 5º, inciso XL da CF e seu caput (todos são iguais perante a lei), artigo 2º, parágrafo único do CP e o artigo 66 da Lei 7.210/84. Além disso, ignora a lógica do sistema penal, que prioriza a ressocialização e a adequação da pena às novas normas mais justas.

Se a lei mais benéfica pode retroagir para reduzir penas e até extinguir condenações já transitadas em julgado, não há razão para que o mesmo raciocínio não se aplique ao acordo de não persecução penal.

A circunstância do dispositivo legal estatuir por meio de norma processual momento para a o exercício do direito (Não sendo caso de arquivamento…) não subtrai a hierarquia superior da norma da retroatividade penal. O princípio da aplicação imediata é norma que objetiva a simplificação do processo de forma a que processos em tramitação não sigam normas distintas. É simples norma que visa organizar, simplificar. Já a norma da que prevê a retroatividade da norma penal mais benigna resulta de comandos constitucionais pertencentes à categoria dos direitos e garantias individuais. Há, portanto, supremacia da norma da garantia individual sobre a norma de categoria procedimental.

Tráfico de drogas privilegiado e acordo de não persecução:

No caso do tráfico de drogas (artigo 33, §1º, e seus incisos da Lei nº 11.343/2006), a pena pode ser reduzida de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, possua bons antecedentes, não se dedique a atividades criminosas nem integre organização criminosa (artigo 33, §4º, da mesma lei).

Com essa redução, a pena pode ser inferior a quatro anos, o que possibilita a aplicação do acordo de não persecução penal. Essa medida pode não apenas reduzir a superlotação do sistema prisional, mas também evitar a destruição precoce e desnecessária da saúde física e mental de milhares de jovens brasileiros. Em 2019, dos 773 mil presos no país, 163 mil estavam detidos por tráfico de drogas – a maior causa de encarceramento no Brasil. Em segundo lugar, figurava o roubo, com 115 mil presos.

Acordo de não persecução criminal e o caput do artigo 33 da Lei n. 11.343/2006

Quando a conduta do investigado se enquadra no caput do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006, o acordo de não persecução penal torna-se inviável.

Há, no entanto, necessidade de reformulação legislativa para permitir que o infrator do caput do artigo 33 também possa ser beneficiado com esse mecanismo. Defendemos que, por meio do processo legislativo, a pena mínima prevista para o delito seja reduzida, de modo que possa ser aplicada dentro do limite exigido para a concessão do acordo. Nos tópicos seguintes, apresentamos as razões que fundamentam esse entendimento.

Considerações de Guilherme Fernandez Silva sobre a repressão do comércio de drogas:

Em interessante artigo publicado na Revista Conjur, intitulado Considerações sobre o acordo de não persecução penal no tráfico privilegiado, o Promotor de Justiça Guilherme Roedel Fernandez Silva examina a possibilidade de realização do acordo de não persecução no tráfico privilegiado. Escreve que “o constituinte de 1988 internalizou a política de guerra às drogas, capitaneada internacionalmente pelos Estados Unidos, e estabeleceu que ‘a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e os definidos como hediondos’. A evolução legislativa e jurisprudencial sobre o tema, marcada pela construção no imaginário da sociedade e dos atores do sistema de Justiça Criminal da figura do traficante como um ser violento e perigoso, etiquetou o comércio de determinadas substâncias entorpecentes como crime hediondo (…). Enviaram milhares de jovens para longas temporadas em prisões, por terem vendido um baseado ou um papelote de cocaína para alguém que voluntariamente se interessou por alterar seu estado mental com uso da substância tornada ilícita por ato do Poder Executivo. (…) Ocorre que em 2016, no HC 118.153, o STF decidiu que o chamado tráfico privilegiado não tem natureza hedionda. O STJ, então, no julgamento do Tema 600, estabeleceu que o ‘tráfico ilícito de drogas na sua forma privilegiada não é crime equiparado a hediondo’. (…) O argumento que sustenta a tese de que o traficante do aglomerado necessariamente integra organização criminosa porque dependeria de autorização do dono do morro para praticar o comércio, além de revelar odioso preconceito de classe e reforçar a criminalização da pobreza, é falso (…). Infelizmente, com a devida vênia, parece que o principal obstáculo para promotores firmarem acordo de não persecução penal no tráfico privilegiado decorre da ausência de reflexão sobre o bem jurídico efetivamente tutelado nos crimes relacionados às drogas e especialmente sobre o principal motivo pelo qual o comércio de algumas drogas pode se tornar extremamente violento: a própria criminalização!”.

A Criminalização das Drogas: Tabus, História e Inconsistências

São pertinentes as considerações do Promotor de Justiça Guilherme Roedel Fernandez Silva. Estamos destruindo a vida de milhares de jovens, empilhados em presídios – uma situação sustentada por tabus e crenças infundadas.

A linguagem, a propaganda e a mídia possuem o poder de carregar certas expressões com um peso pejorativo. “Traficantes de drogas” – mas o que são eles, em essência? Comerciantes.

Tabus geram proibições cujas razões não se baseiam em critérios científicos, mas em crenças arraigadas. Comercializar cigarros e álcool não é crime; vender maconha ou outras substâncias, sim. Mas qual o critério lógico que distingue drogas lícitas de ilícitas? A única distinção possível é meramente normativa: as lícitas são as autorizadas; as ilícitas, as proibidas – o que, na prática, significa não distinguir.

Tabus e crenças operam à margem da lógica. A crença não se sustenta em fatos, mas em narrativas destituídas de comprovação e no desejo de crer. Como bem observou Friedrich Nietzsche, uma crença forte prova apenas sua força, jamais a verdade daquilo em que se acredita (Humano, Demasiado Humano. São Paulo: Lafonte, 1918).

O Uso de Drogas ao Longo da História

O consumo de substâncias psicoativas acompanha a humanidade desde os primeiros hominídeos, surgidos há sete milhões de anos. Os sumérios, por volta de 5.000 a.C., registraram o uso do ópio para estimular a alegria. Em 600 a.C., povos da América do Sul já consumiam coca, conforme evidências arqueológicas.

Estudos citados no artigo Psychoactive Substances in Prehistoric Times: Examining the Archaeological Evidence indicam resquícios fósseis de cactos alucinógenos em cavernas peruanas, datados entre 8600 a.C. e 5600 a.C. Na região que hoje compreende o Sul do Texas e o Norte do México, sementes da leguminosa Dermatophyllum foram encontradas em sítios arqueológicos que remontam ao nono milênio a.C. Pequenas esculturas de pedra, conhecidas como “pedras de cogumelo”, descobertas na Guatemala e no México, sugerem o uso ritualístico de cogumelos alucinógenos entre 500 a.C. e 900 d.C. (Time and Mind Journal).

As drogas sempre fizeram parte da cultura humana. No entanto, a criminalização desse consumo é fenômeno recente, iniciado no século XX, impulsionado por motivações alheias à saúde pública: xenofobia, interesses da indústria farmacêutica e dogmas religiosos.

A Construção do Proibicionismo

Em 2017, a Conjur publicou uma série de reportagens do jornalista Sérgio Rodas sobre a guerra às drogas e a superlotação das prisões. Oito matérias detalharam como as drogas, longe de sempre representarem um problema, foram parte integrante de práticas culturais por milênios. Até o início do século XX, seu consumo era legal em todo o mundo.

O cenário mudou por duas razões principais. Primeiro, o preconceito contra imigrantes, que utilizavam diferentes substâncias e competiam por empregos nos Estados Unidos. Segundo, a influência da ética protestante, que promovia uma vida austera, sem vícios, prazeres intensos ou distrações que desviassem do trabalho – valores absorvidos pela nascente indústria farmacêutica.

Em 1914, os EUA promulgaram sua primeira lei federal antidrogas. Pouco depois, o álcool também foi proibido (Sérgio Rodas: Conjur publica série de reportagens sobre guerra às drogas e lotação das prisões. Conjur).

A questão que se impõe é: se o Homo sapiens viveu trezentos mil anos sem a proibição do uso e da livre circulação de drogas, o que de novo ocorreu para justificar a interdição?

Drogas: Boas ou Ruins?

Drogas, por si só, não são boas nem ruins. Seu consumo moderado pode desempenhar um papel social relevante, favorecendo interações e rituais de confraternização. Beber com amigos, por exemplo, é um costume amplamente aceito.

O abuso, por outro lado, pode acarretar sérios danos à saúde física e mental – como ocorre com qualquer substância, incluindo medicamentos. O uso excessivo de drogas lícitas, como álcool e tabaco, é responsável por milhões de mortes anualmente.

A crença de que algumas drogas são inerentemente mais perigosas que outras ignora evidências científicas. Não há comprovação de que o álcool seja menos prejudicial que a maconha ou mesmo que a cocaína. O impacto de qualquer substância depende de variáveis como contexto de uso, quantidade, frequência e predisposição individual.

Drogas lícitas também deixam um rastro de destruição. O álcool desestrutura famílias, alimenta a violência doméstica e mata milhares de pessoas no trânsito. O cigarro é um dos principais causadores de câncer de pulmão, infarto do miocárdio e outras doenças fatais.

O debate sobre drogas deve transcender tabus e se pautar em fatos. A política de criminalização não resiste a uma análise histórica, científica ou lógica.

A maioria das pessoas acredita que cigarro e álcool não precisam ser proibidos, mas que maconha, cocaína e outras substâncias devem ser. Trata-se de um dogma, um juízo moral sem embasamento racional. Acredita-se na existência de “drogas do Bem” e “drogas do Mal”. O desconhecimento sobre o tema impressiona. Entre os mitos mais caricatos, destaca-se a fábula do “bombom emaconhado” oferecido na porta das escolas. Há também a fantasia de que o traficante induz o indivíduo ao consumo, levando-o ao vício – quando, na realidade, é o próprio indivíduo quem decide experimentar a substância, geralmente influenciado pelo grupo social. Se gosta, segue consumindo, moderada ou, raramente, excessivamente.

Não é a droga que vicia o indivíduo; é o indivíduo que se vicia na droga. A maioria dos usuários não desenvolve dependência. Para que o vício se estabeleça, é necessária uma predisposição orgânica (como ocorre no alcoolismo) ou psíquica (decorrente de transtornos psicológicos).

O Mito da Organização Criminosa

Persiste a ideia de que todo traficante faz parte de uma organização criminosa ou está associado a um grupo estruturado para o tráfico. Esse equívoco decorre do desconhecimento sobre a dinâmica do comércio ilegal de drogas.

O tráfico opera em um sistema de distribuição segmentado. Traficantes de maior porte vendem para intermediários, que, por sua vez, revendem em quantidades menores. Cada fracionamento aumenta o valor do produto final. O risco da venda fracionada justifica o preço elevado: quanto maior o número de transações, maior o perigo de prisão.

Excluídos os poucos que estão no topo da cadeia de distribuição, grande parte dos envolvidos no tráfico são usuários que vendem pequenas quantidades para sustentar o próprio consumo. A realidade é que a esmagadora maioria dos vendedores de drogas não pertence a qualquer organização criminosa. Atuando de forma autônoma, adquirem o produto daquele que oferece o melhor preço e revendem a qualquer comprador, sem qualquer vínculo associativo.

A tipificação penal da associação criminosa ou organização criminosa pressupõe um núcleo estruturado, com divisão de tarefas e objetivos econômicos comuns. No tráfico internacional, essa estrutura pode ser identificada. No varejo, porém, a lógica é diferente.

A exceção ocorre em comunidades dominadas por grupos armados, onde há monopólio territorial do tráfico. Nesses casos, o controle é exercido por traficantes protegidos por milícias ou policiais corruptos, que garantem sua exclusividade na venda. Essa proteção ocorre de duas formas: milicianos eliminam concorrentes que tentam atuar no território e policiais corruptos prendem vendedores não autorizados.

Contudo, mesmo nessas circunstâncias, a maioria dos vendedores de drogas não faz parte de organizações criminosas. Compram e vendem sem qualquer obrigação além da troca mercantil.

Anos de experiência na advocacia criminal permitem afirmar que mais de 90% dos acusados por tráfico não possuem vínculos associativos estruturados. Adquirem a droga de diferentes fornecedores e revendem sem qualquer compromisso fixo. Quem vende, vende para quem paga.

Quando um réu é condenado por tráfico de drogas em concurso com o crime de organização criminosa, sem que haja provas concretas de vínculos associativos, há um erro jurídico grave. Trata-se de uma insensatez que revela não apenas desconhecimento da realidade do tráfico, mas também um ativismo penal desproporcional.

O Argumento da Violência e a Falácia do Medo

Um dos argumentos mais recorrentes contra a descriminalização é a ideia de que, caso o tráfico deixasse de ser crime, traficantes passariam a cometer crimes violentos, como assaltos e homicídios. Esse argumento é frágil por várias razões.

Primeiro, porque traficante violento é exceção. O perfil dominante no tráfico varejista não é o de criminosos perigosos, mas o de pequenos comerciantes que vendem para sustentar o próprio vício ou como alternativa econômica.

Segundo, porque a imensa maioria dos vendedores de drogas tem ocupação formal ou autônoma. São trabalhadores que complementam sua renda ou consumidores que financiam o próprio uso.

Terceiro, porque a violência associada ao tráfico decorre, essencialmente, da proibição. Quando um mercado opera na ilegalidade, o uso da força se torna um mecanismo de controle. A descriminalização retiraria do crime organizado o monopólio da distribuição, eliminando a necessidade de enfrentamentos armados.

O discurso que associa drogas e violência é um produto da indústria do medo. Esse discurso é mantido não porque seja verdadeiro, mas porque serve a interesses específicos.

Os Males das Drogas

O cigarro contém 4.700 substâncias tóxicas – nenhuma delas proibida. No entanto, é a principal causa de morte evitável no mundo. O Instituto Nacional de Câncer (INCA) estima que, para cada ano do triênio 2020-2022, sejam diagnosticados no Brasil 30.200 novos casos de câncer de pulmão, sendo o tabagismo responsável por 70% desses casos. Além do câncer, o cigarro compromete a saúde cardiovascular, estreitando e enrijecendo os vasos sanguíneos, o que aumenta em 30% o risco de infarto do miocárdio.

O álcool, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mata cerca de três milhões de pessoas por ano – o que equivale a uma em cada vinte mortes no mundo. Diferentemente de outras drogas, cujos efeitos recaem majoritariamente sobre o próprio usuário, o álcool frequentemente faz vítimas indiretas. Acidentes de trânsito, violência doméstica e homicídios impulsionados pelo consumo alcoólico fazem dele uma das substâncias mais nocivas à sociedade.

A maconha tem uso documentado há milênios e um contingente expressivo de usuários. No entanto, também apresenta riscos. Embora existam estudos que atestem sua inocuidade – e há estudos para todos os gostos, principalmente para quem os financia –, a cannabis, quando fumada na adolescência, pode desencadear quadros psicóticos severos, mesmo após poucas utilizações. Esse é seu maior perigo: criar condições para o surgimento de psicoses, que, se não tratadas a tempo com a medicação adequada, podem se cronificar e resultar em esquizofrenia.

Acreditamos que a esquizofrenia não seja propriamente uma doença, mas o conjunto de sequelas geradas por surtos psicóticos não controlados. As transformações biofísicas cerebrais não são a causa da esquizofrenia, mas consequência do prolongamento desses estados psicóticos. Esse desfecho ocorre em um percentual reduzido de usuários (entre 1% e 3% dos que fumaram na puberdade).

Entre os consumidores habituais, que fumam diariamente, há um outro efeito: a síndrome amotivacional. O indivíduo perde a iniciativa, torna-se apático, preguiçoso, desenvolve déficit cognitivo e reduz sua capacidade de planejamento. Por outro lado, em alguns casos, a droga exerce um efeito sedativo e terapêutico que pode ser positivo. Quando utilizada ocasionalmente por adultos, praticamente não há riscos relevantes para a saúde. Seu consumo recreativo se equipara ao de algumas taças de vinho.

A cocaína, por sua vez, foi amplamente consumida de forma legal no Brasil e na Europa por muitos anos. Quando utilizada em excesso e de maneira prolongada, pode provocar paradas cardiorrespiratórias e desencadear transtornos mentais severos. Tem o poder tanto de agravar doenças preexistentes quanto de criar novos distúrbios. Seu efeito é passageiro e, por isso, não é uma droga com alto poder viciante. Há muitos usuários, mas poucos viciados. No entanto, aqueles que desenvolvem dependência tendem a apresentar um declínio cerebral severo e acelerado.

Outras drogas podem ser extremamente prejudiciais, especialmente quando utilizadas com frequência ou em grandes quantidades:

  • Ecstasy (MDMA): Estimula a produção excessiva de serotonina, podendo gerar lesões nas células nervosas.
  • LSD (dietilamina do ácido lisérgico): Pode induzir episódios psicóticos duradouros.
  • Crack: Produz efeitos intensos e imediatos, sendo altamente viciante, sobretudo em indivíduos predispostos a transtornos psiquiátricos.
  • Loló: Popular no Brasil, essa mistura de éter, cloreto de etila e clorofórmio é utilizada principalmente por moradores de rua devido ao seu baixo custo. Seus efeitos neurotóxicos são devastadores.
A Inutilidade da Repressão e os Males que Ela Gera

A repressão às drogas não funciona. O mito de que é o traficante quem busca o usuário, e não o contrário, faz parte da vasta coleção de equívocos sobre o tema. Aqueles que acreditam que o traficante seduz e vicia suas “vítimas” precisam, urgentemente, retornar ao mundo real.

Prender quem vende drogas é inútil. Trata-se de antipolítica criminal. Para cada traficante preso, surgem outros três dispostos a ocupar seu lugar. O encarceramento em massa apenas eleva o preço das substâncias no mercado ilegal, aumentando a margem de lucro e tornando o tráfico ainda mais atrativo.

Esse é o paradoxo da repressão: quanto mais se combate o tráfico, mais se fortalece a estrutura criminosa.

Não se trata de mera opinião. O ministro Luís Roberto Barroso, em suas anotações ao voto oral no Recurso Extraordinário nº 635.659, destacou que:

“A criminalização do comércio de drogas não produz o efeito de reduzir o consumo. Ao contrário, aumenta o consumo, pois o dependente, enquanto fomentador de um criminoso, fica à margem da lei. Mas a criminalização do tráfico produz sim alguns resultados: mais crimes (de tráfico) e os correlatos (corrupção, organização criminosa), além de fomentar milícias.”

O proibicionismo não é uma guerra; é uma farsa. Uma luta simulada. O próprio combate ao tráfico alimenta o tráfico. Criamos o problema e, depois, nos associamos a ele.

Se o objetivo for realmente reduzir o consumo de drogas, o único combate possível não é contra o tráfico, mas contra a demanda. Mesmo que a repressão ao tráfico fosse bem-sucedida, o consumo persistiria.

Plantar maconha em casa é simples. Alucinógenos podem ser extraídos de cogumelos encontrados em qualquer pasto onde haja gado. Uísque pode ser fabricado artesanalmente com milho. Loló pode ser substituído por éter. Drogas sintéticas podem ser obtidas com receitas médicas.

A única guerra eficaz não se trava com fuzis, mas com educação e assistência médica. O controle de drogas não deveria ser responsabilidade de órgãos repressivos, mas do Ministério da Saúde.

O problema é que poucos resistem à propaganda massiva. Como disse Joseph Goebbels:

“Dê-me o controle da mídia e farei de qualquer país um rebanho de porcos.”

A propaganda tem um poder imenso. Pode fazer a população acreditar em qualquer coisa. Exemplo disso é o sucesso da Lei Seca, promovida pelo Ministério dos Transportes, e da campanha contra o tabagismo.

Se políticas de conscientização funcionaram em outros países, por que insistimos em ser os últimos a adotá-las?

A Nocividade da Repressão Criminal

A repressão criminal ao tráfico de drogas, tal como vem sendo conduzida, não é apenas inútil – é perniciosa.

Seis razões explicam essa afirmação:

O tráfico se fortalece com a repressão

A repressão encarece as drogas, pois aumenta os riscos e as dificuldades do comércio. Com preços mais elevados, os lucros se tornam ainda mais atrativos, incentivando o surgimento de novos traficantes. O ciclo se retroalimenta: quanto mais repressão, mais lucrativo o tráfico se torna.

Superlotação dos presídios e o encarceramento de jovens pobres

Os presídios estão abarrotados de pequenos vendedores de drogas, os chamados varejistas pobres. Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), de junho de 2016, indicam que 28% das pessoas privadas de liberdade no Brasil foram condenadas ou aguardam julgamento por tráfico de drogas.

Em 2020, o Brasil tinha mais de 773 mil presos para menos de 400 mil vagas. A maioria dos condenados por tráfico tem entre 18 e 26 anos. Diante do colapso do sistema, delegacias lotadas deixam presos algemados a postes. Esses jovens ocupam vagas que deveriam ser destinadas a criminosos realmente perigosos – aqueles que praticam crimes violentos.

A prisão transforma pequenos infratores em criminosos perigosos

Boa parte desses jovens nunca teve envolvimento com violência. São presos por portar pequenas quantidades de droga, que, quando vendidas, mal sustentariam uma família por um mês.

O impacto da prisão sobre esses jovens é devastador. A experiência carcerária não apenas desperdiça sua juventude, mas destrói seu futuro. O trauma psicológico, muitas vezes irreversível, os acompanha para o resto da vida.

Além disso, a prisão cria condições ideais para a profissionalização do crime. A convivência forçada com criminosos violentos faz com que jovens de baixa periculosidade saiam do cárcere transformados em delinquentes audaciosos. O Estado investe recursos para transformar pequenos vendedores em criminosos perigosos.

Conforme destacou o Ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto oral no Recurso Extraordinário nº 635.659:

“Desde a promulgação da Lei de Drogas, em 2006, o encarceramento por infrações relacionadas às drogas subiu de 9% para 27%. Aproximadamente 63% das mulheres encarceradas respondem por delitos ligados às drogas. Atualmente, um em cada dois mulheres e um em cada quatro homens presos no Brasil estão atrás das grades por tráfico de drogas (…). Além do custo elevado, há outro fenômeno associado ao encarceramento: jovens primários são presos junto a criminosos violentos e, em pouco tempo, tornam-se criminosos ainda mais perigosos. O índice de reincidência supera 70%. Como não há critério objetivo para diferenciar usuário e traficante, na prática, ricos com pequenas quantidades são usuários; pobres são traficantes.”

O custo bilionário da repressão

Manter um preso no Brasil custa cerca de R$ 4.000,00 por mês (2021) – dinheiro suficiente para fornecer auxílio básico a seis famílias carentes.

O país gasta mais de R$ 15 bilhões por ano com presídios. Além disso, há despesas com polícias, tribunais e processos judiciais.

Juízes desperdiçam tempo julgando infrações irrelevantes quando poderiam se dedicar a litígios realmente importantes. Os recursos que deveriam financiar tratamentos para dependentes químicos e campanhas preventivas são desviados para punição e destruição de seres humanos.

O estigma social do ex-presidiário

Mesmo quando um pequeno traficante sai da prisão sem ter sido cooptado pelo crime organizado, suas chances de inserção no mercado de trabalho são mínimas. Ele carrega um rótulo que limita suas oportunidades.

A repressão incentiva a corrupção e fortalece as milícias

A proibição das drogas não apenas alimenta o tráfico, mas também fomenta a corrupção policial e o crescimento das milícias.

Os Estados Unidos já passaram por um cenário semelhante. Durante a Lei Seca (1920-1933), o crime organizado americano atingiu seu auge. A proibição do álcool gerou o surgimento de redes criminosas lucrativas, que corromperam autoridades em todos os níveis. Al Capone dominava Chicago.

A repressão às drogas segue o mesmo roteiro. Policiais têm contato direto com criminosos. Inevitavelmente, parte deles cede à corrupção. Como bem pontuou o Ministro Luís Roberto Barroso, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659:

Floresce a criminalidade associada ao tráfico, que inclui, sobretudo, o tráfico de armas utilizadas nas disputas por territórios e nos confrontos com a polícia”.

A Vitória sobre o Tabagismo: O Modelo que Funciona

Prender com base em tabus e crenças é um ato de incivilidade.

Reduzir o número de traficantes não reduz o consumo – e isso deve ser enfatizado em todos os termos. O que realmente funciona é educação, não repressão.

O governo federal investiu, ao longo das últimas décadas, em campanhas maciças contra o tabagismo. O resultado foi extraordinário.

Mesmo com altos índices de dependência física e psicológica, três quartos dos homens que fumavam abandonaram o vício.

Os sintomas da abstinência do cigarro são intensos e duradouros: irritabilidade, insônia, ansiedade, apatia e fome compulsiva. Ainda assim, o número de fumantes despencou.

A eficácia das políticas públicas

Os números não deixam dúvidas:

  • Em 1989, 43,3% dos homens e 27% das mulheres fumavam.
  • Em 2006, esse percentual caiu para 15,7%.
  • Em 2019, segundo o Ministério da Saúde, apenas 9,3% da população ainda fumava.

A redução foi resultado de campanhas educativas, tributação elevada e políticas de restrição ao consumo – não da repressão penal.

Se funcionou para o cigarro, por que insistimos em ignorar essa estratégia para outras drogas?

Descriminalizar e educar

Para o problema da droga, a melhor solução é descriminalizar. Educar para que não seja usada. Regular a venda em farmácias, sob prescrição e acompanhamento médico. Da tributação das drogas, sai o financiamento de campanhas educativas, a exemplo das realizadas contra o tabagismo.

O mundo jamais abandonará as drogas. Elas têm um aspecto social e, muitas vezes, terapêutico. Povos indígenas realizam rituais sob efeito de substâncias psicoativas para fortalecer vínculos grupais. O carnaval brasileiro, assim como festividades em outras culturas, tem nas drogas um elemento de interação.

Uma noite de celebração com amigos pode ter mais efeito positivo sobre a psique do que meses de ansiolíticos, antidepressivos e estabilizadores de humor. Algumas drogas desinibem, facilitam a aproximação, promovem a comunhão e fortalecem os laços sociais.

Até o início do século XX, a humanidade utilizava drogas livremente. O que se deve evitar não é o uso, mas o abuso. Criminalizar a venda é pura inutilidade. O Ministro Luís Roberto Barroso, embora sem discutir a legalidade do tráfico, foi certeiro ao afirmar que, para o problema das drogas, só há uma solução: acabar com a ilegalidade e regular a produção e a distribuição (anotações ao voto oral no recurso extraordinário 635.659). Uma declaração corajosa.

É importantíssimo dizer, descriminalizar simplesmente, sem que se faça acompanhar de campanhas governamentais de advertências de riscos, resultaria em aumento de casos de doenças mentais.

A Descriminalização das Drogas e o Impacto na Saúde Mental

É fundamental que a descriminalização seja acompanhada de políticas públicas que minimizem seus potenciais riscos.

A liberação do uso de certas substâncias em alguns países tem sido acompanhada por um aumento nas internações psiquiátricas. Um exemplo é o caso do Canadá e de algumas regiões dos Estados Unidos, onde a legalização da cannabis levou a um crescimento significativo de episódios de psicose induzida por substâncias tóxicas, especialmente entre jovens. Portugal, que descriminalizou o uso de drogas em 2001, apresenta uma experiência distinta, pois sua política foi acompanhada de um forte investimento em campanhas educativas e em serviços de saúde para tratamento de dependentes, reduzindo danos sociais e sanitários.

Sem um programa abrangente de educação e prevenção, a simples descriminalização pode resultar em um aumento do consumo, o que, por sua vez, levaria a um crescimento dos casos de esquizofrenia, transtornos de ansiedade, depressão severa e outras condições psiquiátricas. Campanhas governamentais que informem sobre os riscos do uso de substâncias psicoativas são, portanto, essenciais para que a sociedade compreenda os perigos do consumo, evitando que a descriminalização tenha efeitos colaterais nocivos.

A liberação e regulação das drogas deve ser acompanhada de medidas preventivas, incluindo o fortalecimento da rede de saúde mental, o monitoramento de impactos sociais e a educação da população. Caso contrário, corremos o risco de transformar uma tentativa de redução de danos em um problema de saúde pública ainda maior.

Toda a repressão às drogas é inútil e cara

Nenhuma repressão ao tráfico reduzirá o consumo. Não adianta prender produtores ou distribuidores. Onde há demanda, haverá oferta. Se cem plantadores de maconha forem presos, outros ocuparão seu lugar. A repressão, em vez de extinguir o tráfico, o fortalece.

A demanda por drogas não pode ser encarcerada. É impossível impedir que pessoas dispostas a consumir o façam. Além disso, cada prisão reduz a oferta, elevando os riscos do comércio e, consequentemente, aumentando os preços. Com lucros mais altos, o tráfico se torna ainda mais atrativo.

Isso significa que o problema do tráfico e do consumo não tem solução? Não. Mas a solução enfrenta resistências de setores que se beneficiam da repressão. E ela é simples: campanhas educativas.

Acreditar que a repressão ao tráfico reduzirá o consumo é ilusório. O tráfico não gera consumo; o consumo gera tráfico. Enquanto houver demanda, a oferta existirá. A única solução eficaz é reduzir o consumo. E isso não é difícil. A campanha brasileira contra o tabagismo reduziu o percentual de fumantes de 35% em 1989 para 9,3% em 2019, segundo dados do Ministério da Saúde. Campanhas de esclarecimento funcionam. A conclusão não é uma opinião. É um fato.

A questão sobre criminalizar ou não o uso de drogas lembra a célebre frase de Salo de Carvalho, professor de direito penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro: da pele para dentro, eu constituo um Estado soberano. E remete a Shakespeare: choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes.

No recurso extraordinário 635.659, o STF decidiu, com efeito vinculante, que portar droga para consumo próprio não constitui crime.

Isso nos leva a imaginar um país inexistente. Nele, era proibido às mulheres usarem calça. Apenas vestidos eram permitidos. Mas, em determinado momento, o uso da calça passou a ser aceito – apenas o uso, pois a venda permaneceu proibida. Mulheres podiam vesti-las, sem cometer crime. Mas quem vendesse calças para que elas exercessem esse direito continuava criminoso. O mistério estava em decifrar a lógica desse raciocínio.

O mesmo se aplica às drogas. Beber é permitido. Mas vender para quem quer beber, não. Proíbe-se a venda daquilo cujo uso é permitido.

Solução paliativa. Necessidade de alteração da pena mínima do tráfico

Há interesses de grande vulto em jogo, e enfrentá-los pode ter pouca utilidade. A descriminalização das drogas esbarra em pressões internacionais.

É preciso, no entanto, encontrar uma solução provisória para o encarceramento em massa da juventude. O tráfico de drogas tem pena que varia de cinco a quinze anos (artigo 33 da Lei 11.343/2006). O acordo de não persecução penal só pode ser aplicado a crimes com pena mínima inferior a quatro anos. A saída imediata para amenizar o problema do encarceramento é reduzir a pena mínima do tráfico, possibilitando a aplicação do acordo.

Se nada for feito, o caos no sistema prisional persistirá. Tabus e crenças, sustentados pela irracionalidade, continuarão encarcerando,a maioria, jovens não violentos.

Razões de ordem psíquica da proibição

Além dos interesses de grupos nacionais e estrangeiros na proibição das drogas, existem duas outras explicações para sua vedação e persecução penal. Uma é de natureza psíquica, outra de ordem sociológica. Nenhuma delas, no entanto, constitui razão lógica para a proibição. Daí ser a criminalização um simples credo, desprovido de fundamento racional, ainda que sustentado por interesses específicos.

Quando algo que proporciona prazer é benéfico em certa medida, mas prejudicial quando praticado em excesso – seja para o indivíduo, seja para a coletividade –, tende-se a restringi-lo parcialmente. A proibição é parcial porque, quando moderado, o comportamento é desejável; quando ilimitado, torna-se nocivo.

O sexo ilustra bem esse mecanismo. Sem limites, pode se transformar em infidelidade (colocando em risco a estabilidade familiar), em promiscuidade descontrolada (expondo à transmissão de doenças) ou em incesto (com suas consequências genéticas e sociais). Mas o sexo, em si, é indispensável. Sem ele, a espécie se extingue. Sendo praticado com moderação, é um bem; quando desregrado, um risco. Por isso, historicamente, ele é parcialmente proibido.

Esse controle se manifesta de diferentes formas nas culturas. Em algumas regiões islâmicas, mulheres devem cobrir o rosto – ocultando os lábios, uma das principais zonas erógenas do corpo. No Ocidente, a interdição recai sobre os órgãos genitais e os mamilos femininos. Em ambas as culturas, há uma vedação parcial do corpo, simbolizando a necessidade de moderação do prazer.

A mesma lógica se aplica às drogas. Assim como o sexo, elas promovem integração individual e social. Também como o sexo, quando consumidas sem freios, podem gerar problemas de ordem individual e coletiva. Para sinalizar que o excesso não é desejável, proíbem-se algumas substâncias e liberam-se outras.

Esse fenômeno pode ser compreendido à luz da psicanálise, especialmente pelo conceito de deslocamento, descrito por Freud. O deslocamento ocorre quando um desejo ou um impulso reprimido é transferido para um objeto substituto, redirecionando sua carga emocional. No caso das drogas, o problema do excesso é deslocado para a distinção entre substâncias lícitas e ilícitas. A proibição parcial oferece a sensação de que o excesso foi afastado, sem, no entanto, impedir que ele ocorra.

A interdição de certas drogas não evita seu consumo desmedido. O álcool, por exemplo, é permitido, ainda que seja uma das substâncias que mais causem transtornos sociais e de saúde pública. A regulação moral e legal recai sobre um critério arbitrário, onde algumas substâncias são aceitas e outras criminalizadas – não com base em seu real impacto, mas como um ritual de controle simbólico do prazer e do excesso.

A psicanálise nos ensina que a repressão de um desejo não o elimina – apenas o empurra para outros territórios, frequentemente mais destrutivos. Assim, a interdição parcial das drogas não impede o abuso, mas transfere a carga de sua proibição para um campo irracional, onde a distinção entre permitido e proibido se torna um simulacro de controle social.

A Guerra Cultural: Entre a Filogenética e a Sociedade Contemporânea

A razão sociológica da proibição das drogas antecede qualquer sistema político ou ideológico moderno. Não é uma construção recente, mas um traço inscrito na memória filogenética. Durante milhões de anos, as diversas espécies de hominídeos que vagavam pelas savanas, organizadas em pequenas tribos de trinta a quarenta indivíduos, já apresentavam uma estrutura social composta por dois grupos essenciais para a sobrevivência da espécie.

O primeiro grupo era formado pelos guardiões dos genes, aqueles que compreendiam que a preservação da espécie exigia uma rede de interdependência. A diversidade genética assegurava a adaptação ao ambiente, e essa visão os levava a defender que todos eram responsáveis por cada um. O segundo grupo estava focado na sobrevivência imediata da tribo, priorizando a caça, a proteção e os desafios do presente.

Entre essas forças opostas, surgia o líder — um papel que hoje é desempenhado pelo Estado. Sua função era manter a coesão do grupo, administrando as tensões e buscando um equilíbrio entre a necessidade de progresso e a urgência da sobrevivência. Essa dialética entre forças em oposição moldou não apenas a organização social primitiva, mas continua a influenciar as sociedades contemporâneas.

O que chamamos de tendência constitucional do indivíduo — uma inclinação ideológica que precede o nascimento, mas pode sofrer influências do histórico pessoal — é uma explicação para os desvios motivacionais que levam ao fenômeno da cognição motivada e da dissonância cognitiva, que abordo em outro trecho desta obra – ver subtítulo Cognição motivada, dissonância cognitiva e convicção no título A busca da imparcialidade, em comentários ao artigo 3º-B. Essa tendência não é apenas fruto do meio ou da educação, mas um reflexo da ancestralidade biológica do pensamento humano.

Direita e Esquerda: Uma Perspectiva Filogenética

A dicotomia política que hoje chamamos de direita e esquerda não é um produto artificial da modernidade, mas a manifestação contemporânea dessas duas forças que sempre estiveram presentes na evolução social da espécie. Nos agrupamentos primitivos, aqueles que se destacavam na caça, na coleta e na guerra formavam a ala conservadora. Os demais, que priorizavam a coesão social e a redistribuição dos recursos, compunham a ala progressista.

O líder, por sua vez, precisava encontrar um ponto de equilíbrio. Sua função era distribuir os recursos sem desestimular os caçadores, mas também sem negligenciar aqueles que garantiam a continuidade da tribo em novas gerações. Essa lógica persiste no papel dos governos modernos: é necessário tributar a produção para financiar políticas de bem-estar social, mas sem minar o estímulo econômico e produtivo.

Desde as tribos nômades até os impérios modernos, a humanidade tem oscilado entre esses dois polos. A direita cuida do presente, garantindo a ordem, a segurança e a produtividade. A esquerda olha para o futuro, buscando garantir a perpetuação da espécie por meio de mecanismos de cooperação e inclusão.

Afinal, se a tribo negligenciasse os mais fracos, a longo prazo se extinguiria. Por outro lado, sem os caçadores, a fome levaria a uma ruína imediata. Essa dialética, descrita de maneira rudimentar, é o que estrutura o pensamento político até hoje.

A Persistência da Guerra Cultural

As expressões esquerda e direita surgiram no contexto da Revolução Francesa, quando os defensores da aristocracia se sentavam à direita do parlamento e os partidários da burguesia à esquerda. No entanto, essas divisões já existiam há milhares de anos, com outras nomenclaturas e sob diferentes formatos.

A disputa entre essas forças nunca se deu apenas no campo econômico ou social, mas também no campo dos valores, da cultura e da moralidade.

Em sociedades arcaicas, a guerra cultural se resumia à divisão da caça. Nos dias de hoje, a arena do conflito se expandiu para temas como aborto, feminismo, direitos das minorias, globalização, livre mercado, identidade nacional e até a regulamentação das drogas.

A direita entende que o Estado deve ser reduzido ao mínimo necessário, garantindo apenas a segurança e a ordem. A esquerda defende que o Estado tem um papel ativo na promoção do bem-estar social. Esse embate se reflete na política tributária, na regulação da economia e no papel do governo na redistribuição de recursos.

Contudo, essa disputa não se limita a um plano racional. O que vemos hoje, em tempos de redes sociais e hiperconectividade, é a radicalização de posturas que, em alguns indivíduos, chega a um nível de distorção cognitiva.

A Radicalização e a Psicologia das Massas

Foi Gustave Le Bom quem primeiro descreveu como os indivíduos, ao se agruparem em multidões, perdem parte de sua racionalidade e passam a agir de forma impulsiva e emocional (LE BON, Gustave. Psicologia das Multidões. França: Delraux, 1980). Esse fenômeno, que era observado em manifestações, levantes populares e assembleias, hoje se manifesta de forma amplificada nas redes sociais (ver artigo O operador de direito, justiça e a multidão).

As redes conectam indivíduos que compartilham uma mesma visão de mundo, reforçando crenças e excluindo a exposição a visões contrárias. Esse efeito, que Cass Sunstein, constitucionalista norte-americano, chamou de “câmaras de eco“, intensifica a polarização e torna o debate público mais emocional e irracional.

Quando percebemos que pessoas inteligentes chegavam ao ponto de se tornar reféns de narrativas absurdas e desprovidas de qualquer base factual, desconfiamos que não se tratava apenas de ideologia, repetição ou influência algorítmica. A explicação deveria estar em algo mais intenso e profundo, mais primitivo.

A tese que propomos é que a guerra cultural não é apenas um embate de ideias, mas um reflexo de uma predisposição biológica herdada ao longo da evolução da espécie. A radicalização política não é um fenômeno meramente social, mas um resquício da estrutura tribal dos primeiros agrupamentos humanos.

É por isso que mesmo indivíduos intelectualmente sofisticados podem se tornar reféns das teses mais insanas. Não é apenas uma questão de falta de informação ou doutrinação ideológica, mas sim um resquício da própria constituição do pensamento humano.

O Papel das Drogas na Guerra Cultural

Dentro desse contexto, a questão das drogas surge como um ponto de tensão entre essas duas visões de mundo. Para a direita, as drogas representam um desapreço à ordem, uma ameaça às tradições e à estabilidade social. São um elemento de desagregação e de descontrole, incompatíveis com a necessidade de preservação da segurança e do patrimônio.

Para a esquerda, a abordagem é diferente. O consumo de substâncias psicoativas é um comportamento que deve ser tratado sob uma ótica de saúde pública e não de repressão. A dependência química não pode ser simplesmente punida, mas deve ser compreendida dentro de uma conjuntura mais ampla.

Essa divergência reflete mais uma vez o embate entre presente e futuro. A direita busca o controle imediato, enquanto a esquerda tenta enxergar a longo prazo.

A criminalização das drogas, portanto, não é apenas uma questão jurídica, mas um reflexo da guerra cultural que se intensificou nos últimos anos.

Em conclusão, a guerra cultural não é um fenômeno passageiro. Ela tem raízes profundas, que remontam aos primeiros agrupamentos humanos. O embate entre forças opostas moldou a civilização e continuará influindo na política, na economia e na moralidade por gerações.

O grande problema da contemporaneidade é impedir que essa disputa, essencial para a sobrevivência da espécie, se transforme em um entrave para a racionalidade e o progresso.

Se não compreendermos a origem desse embate, estaremos condenados a repetir os mesmos ciclos de hostilidade e irracionalidade, sem nunca alcançar um verdadeiro equilíbrio social.

Descriminalização. Se ocorrer, irá demorar

O início da grande investida contra o tráfico iniciou nos EUA durante o governo de Richard Nixon, na década de 1970, quando foi decidido que o grande mal que afligia aquela nação era o consumo de drogas. Foi criado e organizado um complexo sistema de repressão. Na sequência, esse sistema foi exportado para países latino-americanos.

É do interesse dos EUA interagir com órgãos de repressão de outros países. A integração da repressão – com transferências de recursos, materiais, tecnologias, conhecimentos e informações – é o método mais eficiente para manter controle e domínio, vale dizer, supremacia.

Uma das formas da integração da repressão é a cooperação internacional contra a corrupção que, mal utilizada, sem controle, se presta para eliminar a concorrência. A nação mais fraca deve sempre estar atenta à colaboração oferecida pela mais forte. Lobos não pastoreiam ovelhas. Preferem comê-las.

Aliando-se à propaganda contra o mal, há o interesse de órgãos da repressão no recebimento de recursos materiais e financeiros. Os repressores operam maximizando sua própria importância. Como a repressão depende da droga, ela – a repressão – é a primeira viciada. O problema é criado e aumentado, objetivando justificar estruturas, materiais, pessoal e gastos. A dificuldade de adoção de solução racional para a questão drogas encontra barreira nesses interesses.

A mídia, sem deixar de cobrar seu preço, faz a sua parte. Em tempos de redes virtuais, nunca foi tão fácil dar ordens às mentes. A desinteligência, as concepções superficiais, a ressignificação de conceitos elementares se disseminam rápida e eficientemente. Alguns indivíduos eram mais inteligentes quando nada tinham na cabeça.

A internet nos ludibriou. Quebrou todas as expectativas. Imaginava-se que proporcionaria mais conhecimento à humanidade. O efeito foi o contrário. Quem não lia passou a ler, e mentes vazias não distinguem a verdade da mentira. Acreditam na mentira, pois esta impressiona mais, é mais interessante. A proibição de determinadas drogas não dispõe de lógica. A crença é nutrida pelos seguintes ingredientes: o interesse da indústria farmacêutica e dos órgãos de repressão, o imperialismo, a ética protestante, o deslocamento psíquico da proibição do excesso, a ideologia conservadora, a propaganda e a falta de conhecimento da população.

Há, também, enquanto condimento final, o interesse do maior interessado, o próprio traficante: sem a proibição, ele não teria lucro nem fonte de renda. É um banquete pesado, forte, de onde se conclui que tão cedo o imbróglio das drogas não será resolvido. E o genocídio persistirá por anos.

Redução do poder repressivo das polícias

Há outro aspecto, particular, pelo qual a descriminalização das drogas não interessa a alguns setores de órgãos diretamente relacionados à repressão penal: reduziria seu poder de prender.

Para condenar um traficante de drogas, são suficientes – é entendimento jurisprudencial – dois elementos de prova: a droga e o testemunho de dois, no máximo três, policiais (testemunhas de prisão em flagrante). Ora, com essa prova, policiais desonestos que buscam burlar a lei penal podem prender praticamente qualquer pessoa. Basta encaminhar uma porção de droga à perícia, suficiente para caracterizar o tráfico – a qual pode ser facilmente obtida mediante subtração de outra apreensão – e dois ou três policiais dispostos a mentir. Podem ser policiais civis, federais, militares ou da rodoviária federal.

Que repressor abriria mão de tamanha liberdade para prender?

Fim

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