PÁGINA EM CONSTRUÇÃO. DIREITO E REDAÇÃO SOB EXAME. Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
I – se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
II – se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
III – ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
IV – nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
A Transação nos Sistemas Jurídicos: Common Law vs. Europa
No sistema da common law, a transação é compreendida como uma negociação direta entre as partes, sem qualquer fiscalização judicial. Em contraste, no modelo europeu, existe a possibilidade de controle judicial sobre esse tipo de acordo.
Na Europa, a transação foi introduzida pelo Ministério Público na década de 1970. Atualmente, vários países adotam práticas de conciliação, incluindo Alemanha, Holanda, Espanha, Itália, Colômbia, Chile, Uruguai e Argentina. No Brasil, a conciliação foi incorporada ao ordenamento jurídico em 1995, com a promulgação da Lei n.º 9.099/1995, que regulamenta os juizados especiais. Essa legislação prevê mecanismos conciliatórios, como a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89), aplicáveis a delitos cuja pena máxima não ultrapasse dois anos.
O Acordo de Não Persecução Penal: Solução ou Ilusão?
A introdução do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) tem sido amplamente celebrada como um avanço na política criminal. No entanto, há motivos para questionar os benefícios reais desse instrumento. A principal justificativa para sua adoção reside na promessa de reduzir a sobrecarga do Judiciário, permitindo que os juízes concentrem esforços em crimes de maior gravidade, além de contribuir para a diminuição dos custos da justiça criminal.
No entanto, essa visão ignora um aspecto fundamental: o próprio processo penal, independentemente de seu desfecho, já representa uma sanção. Mesmo quando não há uma expectativa concreta de pena privativa de liberdade, a existência do processo impõe ao acusado um fardo significativo. O risco de prisão persiste enquanto o julgamento não é concluído, criando uma incerteza que, para o réu, se traduz em um estado de constante ameaça à sua liberdade.
Além disso, o desenvolvimento do procedimento criminal – com etapas como interrogatórios, inquirição de testemunhas, intimações e comparecimentos obrigatórios – gera efeitos análogos aos da pena, especialmente no que diz respeito à prevenção especial. Se o objetivo da pena é, entre outras finalidades, a ressocialização do infrator, não se pode ignorar que a longa duração do processo penal muitas vezes cumpre essa mesma função. A experiência de responder a um processo pode ter impacto pedagógico significativo sobre o réu, independentemente do resultado final.
Por essa razão, processos em que a prisão não é um desfecho provável tendem a ser relegados a segundo plano. A celeridade processual é priorizada em casos de réus presos ou quando há fortes indícios de inocência. Nos demais, a própria morosidade pode, paradoxalmente, atuar como um instrumento pedagógico. E, do ponto de vista da política criminal, não há prejuízo relevante se um processo de menor gravidade prescrever antes da condenação, desde que sua tramitação tenha produzido os efeitos esperados sobre o acusado.
A adoção do ANPP não deve ser tratada como um avanço inquestionável. A simples existência desse modelo em outros países não é argumento suficiente para sua eficácia. Nos Estados Unidos, por exemplo, o plea bargain – sistema que inspirou acordos de não persecução penal – tem demonstrado falhas graves, incluindo desigualdades no tratamento dos acusados e incentivo à confissão de crimes por medo do processo.
Outro ponto negligenciado é o risco de reincidência criminal. Um furto cometido hoje pode evoluir para um assalto amanhã. Um indivíduo que frequentemente pratica lesões corporais pode, no futuro, cometer um homicídio. Uma simples audiência para homologação de um acordo está muito aquém, em termos de impacto, quando comparada à pressão psicológica exercida por um processo penal longo e ameaçador.
Ademais, os delitos abarcados pelo sistema de acordos de não persecução não se limitam a crimes de menor gravidade. Pelo contrário, muitos delitos que exigiriam maior repressão e uma punição pedagógica rigorosa podem ser incluídos nesse modelo, como:
Crimes contra a administração pública: concussão (art. 316 do CP), corrupção ativa (art. 333 do CP), corrupção passiva (art. 317 do CP), peculato (art. 312 do CP);
Crimes contra a fé pública: falso testemunho ou falsa perícia (art. 342 do CP), falsificação de documento público (art. 297 do CP);
Crimes patrimoniais e contra a segurança pública: furto (inclusive algumas formas qualificadas – art. 155 do CP), incêndio (art. 250 do CP).
A finalidade pedagógica do processo penal tem sido negligenciada no debate sobre medidas alternativas. No entanto, trata-se de um aspecto essencial para a política criminal e que não pode ser ignorado. A pressa em buscar soluções alternativas pode, na verdade, comprometer a função repressiva e preventiva do direito penal.
Não é o excesso de processos no Judiciário que enfraquece a política criminal. O verdadeiro problema do sistema repressivo está na fase investigatória, e não no processo. A conhecida frase popular “a polícia prende e a justiça solta” não reflete a realidade. Na prática, a polícia não prende na maior parte dos casos, e não há estatísticas confiáveis no Brasil sobre a relação entre crimes cometidos e crimes solucionados. Os poucos estudos existentes se concentram no delito de homicídio (dados de 2024), mas a maioria dos crimes, especialmente fraudes e golpes virtuais, sequer chegam ao conhecimento das autoridades.
A estimativa, ainda que imprecisa, é de que mais de 90% dos crimes fiquem sem solução. Se há um problema estrutural no sistema repressivo, ele não está no processo penal, mas sim nos órgãos de investigação, que frequentemente falham em apurar delitos e garantir que os responsáveis sejam levados a julgamento.
Assim, antes de priorizar a ampliação de acordos e soluções negociadas, a política criminal deveria focar na eficiência da investigação e na garantia da punição dos verdadeiros responsáveis pelos crimes. Sem isso, a ilusão de que o ANPP representa um avanço pode apenas reforçar a impunidade e enfraquecer o impacto do Direito Penal na sociedade.
A Experiência Norte-Americana: Um Alerta
A prática do plea bargain nos Estados Unidos ilustra os potenciais perigos dessa lógica negocial. Lá, é comum que promotores utilizem estratégias agressivas de negociação, muitas vezes ameaçando réus com acusações mais severas do que os indícios realmente sustentam. Diante da perspectiva de enfrentar um julgamento com penas extremamente altas, muitos acusados aceitam acordos não necessariamente por reconhecerem sua culpa, mas por medo do pior quadro possível.
Essa realidade impacta de forma desproporcional os acusados com menos recursos financeiros, que frequentemente não podem arcar com advogados experientes e acabam dependendo da defesa pública, uma estrutura sobrecarregada e subfinanciada. Assim, a barganha penal acaba por aprofundar desigualdades sociais, tornando o resultado do processo menos dependente da verdade dos fatos e mais condicionado à capacidade do réu de negociar com o Estado.
O Diferencial Brasileiro: Garantias e Limites
No Brasil, a gratuidade da justiça para aqueles que não podem pagar por defesa é um fator diferenciador relevante em comparação com o modelo norte-americano. Aqui, o réu sem condições financeiras tem acesso à Defensoria Pública, cujos membros são selecionados por rigoroso concurso público, garantindo uma defesa qualificada. Além disso, o ordenamento jurídico brasileiro permite que o réu recorra sem custos, diferentemente dos EUA, onde o acesso à justiça tem um custo elevado, tornando o processo penal um instrumento desigual de coerção contra os economicamente vulneráveis.
Diante disso, a preservação de limites bem definidos para os acordos penais no Brasil é essencial. É fundamental evitar que o processo penal se torne uma mera barganha, onde a desigualdade de forças entre o Estado e o acusado conduza a acordos injustos. O modelo brasileiro, ao condicionar o ANPP a delitos de menor potencial ofensivo e estabelecer critérios objetivos para sua aplicação, busca um equilíbrio entre eficiência e justiça, garantindo que a negociação penal não comprometa as garantias individuais nem o princípio da verdade real.
A Resolução nº 181/2017 e a Justificativa Internacional
Para justificar a legalidade da Resolução nº 181/2017, um dos principais argumentos foi sua suposta conformidade com a Resolução nº 45/110 da Assembleia Geral das Nações Unidas, aprovada em 1990, que recomenda:
“Sempre que adequado e compatível com o sistema jurídico, a polícia, o Ministério Público ou outros serviços encarregados da Justiça Criminal podem retirar os procedimentos contra o infrator se considerarem que não é necessário recorrer a um processo judicial com vistas à proteção da sociedade, à prevenção do crime ou à promoção do respeito pela lei ou pelos direitos das vítimas.”
Entretanto, essa fundamentação não confere legitimidade à violação do princípio da obrigatoriedade, por dois motivos principais:
- Trata-se de uma mera recomendação internacional, sem força normativa obrigatória no Brasil.
- O próprio texto da Resolução da ONU condiciona sua aplicação a ser “adequada e compatível” com o sistema jurídico de cada país. No Brasil, a obrigatoriedade da ação penal pública é uma regra clara e positivada, não podendo ser afastada por uma recomendação internacional.
Além disso, a natureza da Resolução nº 181/2017 é eminentemente processual, pois versa sobre a exclusão do processo penal, e não sobre matéria administrativa. No Brasil, conforme o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, somente a União tem competência para legislar sobre Direito Processual, e uma resolução administrativa não pode inovar no ordenamento jurídico ao ponto de alterar o regime de persecução penal.
Análise da Constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal
A constitucionalidade de alguns dispositivos da Resolução nº 181/2017 foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nº 5790 e 5793, propostas pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e pelo Conselho Federal da OAB, respectivamente. Nessas ações, foram questionadas normas que tratavam da possibilidade de investigação criminal pelo Ministério Público.
O STF, ao julgar as ações improcedentes, considerou constitucionais os dispositivos que regulamentavam a atuação investigatória do MP. No entanto, não houve julgamento específico sobre os dispositivos que tratam do acordo de não persecução penal (ANPP).
A Superação da Questão pelo Legislador
A partir da Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o acordo de não persecução penal foi formalmente adotado pelo legislador, o que eliminou as discussões sobre a possibilidade de regulamentação da matéria pelo Ministério Público. Com isso, a questão foi superada em parte, pois o ANPP passou a ter previsão legal expressa.
Entretanto, como será abordado em seção própria adiante, alguns dispositivos da Resolução nº 181/2017 ainda em vigor padecem de vício de ilegalidade, pois extrapolam os limites estabelecidos pelo próprio legislador. Dessa forma, mesmo após a incorporação do ANPP ao ordenamento jurídico, persistem dúvidas sobre a legalidade de certos aspectos regulamentados pela norma administrativa.
Cabimento do acordo de não persecução penal
Nos termos do caput do artigo 28-A do Código de Processo Penal, não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado, de forma formal e circunstanciada, a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima seja inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal (ANPP), desde que tal medida se revele necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. O acordo deverá observar as condições estabelecidas nos incisos I a V do referido dispositivo, podendo ser ajustadas de forma cumulativa ou alternativa.
Para a formalização do ANPP, é imprescindível o preenchimento de quatro requisitos cumulativos e obrigatórios:
1 – Não ser caso de arquivamento das investigações (ver comentários ao artigo 395, que versa sobre a rejeição da denúncia);
2️ – Confissão da infração penal, desde que sem violência ou grave ameaça;
3 – Pena mínima inferior a quatro anos;
4 – O acordo deve ser necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.
Além disso, é essencial que o investigado aceite submeter-se às condições previstas nos incisos I a V do artigo 28-A. A ausência de qualquer um desses elementos inviabiliza a celebração do acordo.
Importante destacar que, para a aferição da pena mínima cominada ao delito, devem ser consideradas todas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto, nos termos do §1º do artigo 28-A.
De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a aplicação do ANPP tem se consolidado como instrumento de política criminal. Entre janeiro de 2020 e agosto de 2024, foram celebrados 17.853 acordos de não persecução penal em todo o país, evidenciando sua relevância prática no sistema de justiça criminal.
Justa Causa e Viabilidade do Acordo de Não Persecução Penal
Nos termos do caput do artigo 28-A do Código de Processo Penal, a celebração do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) somente é admissível se não for caso de arquivamento. Mas quando se configura a necessidade de arquivamento? Ocorre quando estão ausentes os pressupostos processuais, as condições genéricas da ação e as condições específicas exigidas para a persecução penal.
Os pressupostos processuais correspondem aos requisitos indispensáveis para a constituição válida da relação jurídica processual. Dentre eles, destacam-se:
– Inexistência de litispendência ou coisa julgada;
– Ausência de ilegitimidade das partes;
– Incompetência absoluta do juízo;
– Situações de suspeição ou impedimento do magistrado.
No que se refere às condições genéricas da ação, são três os requisitos essenciais, aplicáveis a qualquer demanda:
1 – Possibilidade jurídica do pedido;
2 – Interesse de agir;
3 – Legitimidade das partes.
Já as condições específicas da ação são exigíveis apenas em determinados casos, conforme a natureza do ilícito penal.
Para que o ANPP seja viável, o fato investigado deve configurar crime, ou seja, deve haver possibilidade jurídica do pedido. A prescrição, por exemplo, afasta essa possibilidade, inviabilizando tanto a denúncia quanto a formalização do acordo.
A ausência de interesse de agir ocorre quando não há elementos indiciários suficientes para justificar a propositura da ação penal. Em outras palavras, os indícios disponíveis devem demonstrar não apenas a existência do crime, mas também a plausibilidade de sua autoria—configurando, assim, a justa causa.
É importante assinalar que a confissão isolada, desacompanhada de outros elementos indiciários, não é suficiente para caracterizar a justa causa.
Além disso, o acordo exige a presença da legitimidade processual. Assim, o Ministério Público não possui legitimidade ativa nos crimes de ação penal privada. Da mesma forma, se o investigado for menor de 18 anos, há ilegitimidade passiva, uma vez que a apuração de atos infracionais se dá na esfera do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Exemplos de condições específicas da ação incluem representação da vítima nos crimes de ação penal pública condicionada; requisição do Ministro da Justiça nos crimes que dependem dessa formalidade; lançamento definitivo do crédito tributário, nos crimes contra a ordem tributária (art. 83 da Lei nº 9.430/1996).
Dessa forma, a celebração do ANPP é incabível nos casos em que a denúncia deva ser rejeitada ou quando a hipótese seja de absolvição sumária—matérias abordadas detalhadamente nos comentários aos artigos 395 e 397.
Aferição da Pena Mínima
Nos termos do §1º do artigo 28-A do Código de Processo Penal, para a aferição da pena mínima cominada ao delito, devem ser consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.
Nos casos de causas de aumento, adota-se o fator que menos majora a pena. Nas causas de diminuição, aplica-se o fator que mais reduz a pena.
Exemplo dessa regra ocorre nos casos de tentativa (artigo 14, inciso II, do Código Penal), em que a pena pode ser reduzida de um a dois terços. Para fins de viabilidade do acordo, aplica-se o redutor mais favorável ao réu, ou seja, a pena deve ser reduzida em dois terços.
Já em relação à habitualidade criminosa, é fundamental distinguir essa prática do crime continuado previsto no artigo 71 do Código Penal. O crime continuado caracteriza-se quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, desde que preenchidos os requisitos de tempo, lugar, modo de execução e outras circunstâncias semelhantes. A habitualidade criminosa, por outro lado, não se confunde com esse instituto e não pode ser utilizada para o cálculo da pena mínima no contexto do ANPP.
Confissão Formal e Circunstancial: Limites
A confissão formal e circunstanciada da prática da infração penal é um requisito obrigatório para a celebração do ANPP. Entretanto, essa confissão deve ser realizada dentro da formalidade do próprio acordo, não se aproveitando eventual confissão feita na fase policial.
Se houve confissão na fase policial, essa, por si só, não tem valor para fins de ANPP – é necessária nova manifestação formal no curso do acordo.
Valor Probatório da Confissão no ANPP
O reconhecimento da prática do crime no âmbito do ANPP não implica sua veracidade, pois é obtido unicamente para viabilizar a formalização do acordo. Isso porque o investigado pode optar por confessar para evitar os riscos e consequências de um processo penal, sem que isso signifique necessariamente a autoria e a materialidade do delito.
Assim, a confissão no ANPP, isoladamente considerada, não possui valor probatório. Essa mesma limitação se aplica à confissão firmada em acordos de colaboração premiada. Pelos mesmos motivos, essa confissão formal não faz prova em outros processos que tratem de outros assuntos e de outros ramos do direito.
O investigado não está obrigado a indicar coautores ou fornecer informações que possam incriminá-lo além do que já foi confessado. Caso contrário, estaríamos diante do instituto da delação premiada, e não de um ANPP.
A Confissão Como Justa Causa Para a Ação Penal
Não se pode sustentar que a confissão, isoladamente, seja suficiente para emprestar justa causa à ação penal. Se a única prova disponível for a confissão, sem quaisquer outros elementos indiciários que a corroborem, o acordo não pode ser realizado e tampouco pode servir de base para a propositura da ação penal.
Procedimento Correto Para Celebração do Acordo
Deve haver certo cuidado na produção do acordo. A sequência adequada é esta: O Ministério Público propõe o acordo, incluindo todas as cláusulas; o investigado, assistido por defensor, aceita as condições e, só então, formalizando a confissão; toda a negociação deve ser documentada, abrangendo tanto a proposta quanto o aceite e a confissão.
O investigado não deve confessar previamente sem que haja uma proposta formal do MP, pois, caso o Promotor não aceite o acordo, a confissão isolada pode ser prejudicial.
Caso o Promotor de Justiça recuse a proposta sob a alegação de que a confissão é insatisfatória, o investigado tem o direito de submeter a questão ao juiz, que decidirá sobre a validade e eficácia do acordo.
Condições Alternativas ou Cumulativas no Acordo de Não Persecução Penal
Nos termos do §2º do artigo 28-A do Código de Processo Penal, as condições impostas para a formalização do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) podem ser alternativas ou cumulativas, a depender da avaliação do Ministério Público e da adequação ao caso concreto.
As condições estabelecidas são as seguintes:
– Reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo (inciso I);
-Renúncia voluntária a bens ou direitos indicados pelo Ministério Público, quando identificados como instrumento, produto ou proveito do crime (inciso II);
– Prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, pelo período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, conforme regras do artigo 46 do Código Penal (inciso III);
– Pagamento de prestação pecuniária, nos termos do artigo 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social indicada pelo juízo da execução, preferencialmente voltada à proteção de bens jurídicos semelhantes aos atingidos pelo delito (inciso IV);
– Cumprimento de outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada (inciso V).
A imposição de outra condição pelo Ministério Público é juridicamente válida, pois não se trata de pena, mas de requisito para a formalização do acordo. Caso fosse considerada pena, incidiria o princípio da legalidade estrita (nullum crimen, nulla poena sine lege), o que tornaria tal exigência ilegal.
O prazo máximo para cumprimento dessa exigência não pode ultrapassar o período previsto para a prestação de serviço à comunidade, conforme analogia com o inciso III do artigo 28-A.
Causas Proibitivas do Acordo
A formalização do ANPP é expressamente vedada nas seguintes hipóteses:
– Crimes de competência dos Juizados Especiais Criminais, ou seja, infrações penais cujas penas não ultrapassem dois anos, nos termos da Lei nº 9.099/1995;
– Reincidência ou habitualidade criminosa, quando houver elementos probatórios indicativos de conduta criminosa reiterada ou profissional, salvo se as infrações pretéritas forem insignificantes (inciso II);
– Benefício anterior em ANPP, transação penal ou suspensão condicional do processo nos cinco anos anteriores à infração penal (inciso III);
– Crimes praticados no contexto de violência doméstica ou familiar, bem como aqueles cometidos contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, conforme descrito no artigo 7º da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006).
A reincidência penal ocorre quando o agente pratica novo crime após ter sido condenado definitivamente por outro crime, seja no Brasil ou no exterior (artigo 63 do Código Penal).
A condenação anterior não gera reincidência se, entre o cumprimento (ou extinção) da pena e a infração posterior, tiver decorrido mais de cinco anos, computado o período de prova da suspensão condicional da pena e do livramento condicional, desde que não tenha havido revogação (artigo 64, inciso I, do Código Penal).
Formalização do Acordo e Participação do Advogado
A celebração do Acordo de Não Persecução Penal deve ocorrer por escrito, com a presença obrigatória do investigado, do representante do Ministério Público e do advogado ou defensor público.
O Ministério Público deve garantir ao defensor o conhecimento prévio das provas constantes dos autos, possibilitando análise técnica adequada. O acesso aos autos é essencial para que o defensor possa avaliar a existência de indícios suficientes de autoria e materialidade, a viabilidade ou não da celebração do acordo e a proporcionalidade das condições impostas.
Caso não existam indícios mínimos de autoria ou materialidade, não há razão para firmar o acordo.
Poder-dever do Ministério Público e direito do investigado
Diferentemente do que frequentemente se presume, o poder do Ministério Público de oferecer o ANPP não é discricionário. Trata-se de um poder-dever, ou seja, preenchidos os requisitos legais, a proposta do acordo deve ser feita.
Por outro lado, o investigado possui o direito subjetivo à formalização do acordo, caso cumpra todas as exigências normativas. Assim como ocorre com outros institutos, como sursis, livramento condicional e suspensão condicional do processo, a não persecução penal também configura um direito do investigado, desde que os critérios legais estejam preenchidos. O direito ao ANPP não pode ser negado pelo Ministério Público de maneira arbitrária ou por mero capricho. A negativa injustificada viola princípios processuais fundamentais e pode ser objeto de controle judicial.
Caso o Ministério Público se recuse indevidamente a propor o acordo, o investigado poderá impugnar essa decisão por meio de habeas corpus a ser interposto no Tribunal competente.
Na hipótese de o Tribunal reconhecer a existência do direito ao acordo e, ainda assim, o Ministério Público persista na negativa, eventual denúncia não poderá ser recebida, pois o ANPP, quando cabível, passa a ser uma verdadeira condição da ação, assim como ocorre com a representação da vítima e a requisição ministerial em crimes que dependem dessas formalidades.
Acordo de não persecução penal por iniciativa da autoridade policial
Os professores Ruchester Marreiros Barbosa e Raphael Zanon da Silva, em artigo publicado na Revista Consultor Jurídico (Conjur) intitulado “Delegado de polícia deve viabilizar acordo de não persecução penal“, sustentam que é possível chegar à conclusão que cabe ao presidente do inquérito policial (…) a elaboração de minuta do acordo de não persecução penal, assumindo o formato de um protocolo de intenções (…). A adoção do citado protocolo pelo Delegado de Polícia tem por objetivo evitar a realização de meios investigativos de forma inútil, que ao final serão descartados, denotando desperdício de recursos materiais e humanos.
A sugestão apresentada é louvável, pois, se a demora no aprofundamento da investigação não impacta o resultado final, não há prejuízo na suspensão das diligências para a formalização do acordo.
Sendo a investigação de iniciativa do Ministério Público, poderia o promotor suspender seu curso para viabilizar o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP)? A resposta deve ser afirmativa, desde que essa suspensão não comprometa o prosseguimento das investigações futuras.
Se a investigação conduzida pelo Ministério Público possui a mesma natureza e finalidade daquela presidida pela autoridade policial—ou seja, a obtenção de elementos indiciários suficientes à propositura da ação penal—, não há razão para que a suspensão seja permitida ao MP e vedada ao delegado.
A otimização dos recursos policiais impõe uma racionalização dos esforços investigativos. Concentrar tempo, pessoal e material em diligências que posteriormente não serão aproveitadas é contraproducente. A gestão eficiente da persecução penal exige a priorização de delitos de maior gravidade, garantindo uma repressão criminal mais eficaz.
Oportunidade para a proposta do acordo de não persecução penal
O artigo 3o, letra B, parágrafo XVII do CPP ao afirmar que compete ao juiz das garantias decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal não significa que na fase processual o juiz de instrução esteja vedado de formalizar o acordo.
O ANPP pode ser realizado em diferentes momentos processuais, desde que presentes os requisitos legais, inclusive em sede recursal.
No curso do inquérito policial – Se já houver elementos suficientes para a propositura da ação, o Ministério Público pode oferecer o acordo. A autoridade policial, por sua vez, pode oficiar o MP sugerindo a formalização do ANPP, fundamentando sua recomendação na presença da justa causa para a ação penal.
No momento do recebimento do inquérito pelo MP – Após a análise dos autos, o Promotor pode propor o acordo antes de oferecer a denúncia.
Acordo anexo à denúncia – O MP pode apresentar a denúncia e, simultaneamente, em anexo, propor o acordo. Nesse caso, caberá à defesa decidir entre apresentar resposta à acusação ou aceitar o acordo, já incluindo a confissão formal. Se aceito, o processo é suspenso, e, após cumprido acordo, o recebimento da denúncia é revogado.
Durante a tramitação do processo – Se a ação penal já estiver em andamento e o ANPP ainda não tiver sido oferecido, nada impede sua formalização, desde que preenchidos os requisitos legais.
Em fase recursal – O réu pode manifestar seu interesse no ANPP durante a fase recursal. Caso o MP entenda viável, apresenta proposta. Se inviável, nega o pedido apresentando fundamentação. Se for aceita a proposta com a apresentação por escrito da confissão, os autos baixam para a audiência e homologação.
A audiência de custódia não é um momento apropriado para a proposta do ANPP, pois a confissão, além da confissão estar vedada nesse ato, não se pode considerar voluntária a adesão ao acordo por um investigado que está sob coação da privação de liberdade.
A lei n. 8.038/90, que institui normas procedimentais para os processos perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, prevê a possibilidade do acordo em seu artigo 1º, parágrafo 3º.
Preclusão do direito ao acordo
O ANPP só pode ser proposto uma única vez. Se o investigado recusar a proposta, não terá direito a uma nova oportunidade posteriormente.
Essa limitação decorre da necessidade de evitar sucessivas interrupções no curso da investigação e do processo, o que comprometeria a celeridade processual e a efetividade da persecução penal.
Recusa do Ministério Público e possibilidade de revisão
Caso o Ministério Público se recuse a propor o ANPP, o investigado pode requerer a remessa dos autos para revisão hierárquica, nos termos do artigo 28 do Código de Processo Penal. No Ministério Público Estadual, a revisão cabe ao Procurador-Geral de Justiça. No Ministério Público Federal, a competência é das Câmaras de Coordenação e Revisão (art. 62, IV, da LC nº 75/1993), salvo nos casos de competência originária do Procurador-Geral.
Nos termos do §4º do artigo 28-A do CPP, o investigado e seu defensor, assim como o juiz, devem ser intimados da decisão de arquivamento.
Por aplicação do artigo 28, ao qual o artigo 28A, parágrafo IV, remete, o investigado ou seu defensor, além do juiz deverão ser intimados. Dessa maneira, o investigado poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão com apresentação de razões.
A necessidade de intimação do juiz decorre de decisão proferida na ADI n. 6.298 que determina a intimação do juiz no caso de arquivamento do inquérito, podendo, por igual o juiz, apresentar razões buscando a revisão da decisão do promotor.
Os recursos não suspendem a prescrição. A suspensão da prescrição só começa a correr a partir do início do cumprimento do acordo (artigo 116, inciso IV do Código Penal).
Jurisprudência
O juiz não pode impedir a remessa ao órgão superior no MP: Não se tratando de hipótese de manifesta inadmissibilidade do ANPP, a defesa pode requerer o reexame de sua negativa, nos termos do art. 28-A, § 14, do Código de Processo Penal (CPP) (2), não sendo legítimo, em regra, que o Judiciário controle o ato de recusa, quanto ao mérito, a fim de impedir a remessa ao órgão superior no MP. Isso porque a redação do art. 28-A, § 14, do CPP determina a iniciativa da defesa para requerer a sua aplicação (HC 194677/SP, relator Min. Gilmar Mendes, julgamento em 11.5.2021).
Suspensão da prescrição enquanto vigente o acordo
Conforme o artigo 116, inciso IV do Código Penal, antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo de não persecução penal.
Negativa de homologação do acordo pelo juiz
Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, os autos serão devolvidos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.
O juiz poderá recusar homologação do acordo quando ele não atender aos requisitos legais, ou quando não for realizada a adequação a que se refere o parágrafo 5º do presente dispositivo.
Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações, oferecimento da denúncia ou arquivamento.
Ambas as partes, MP e defesa, podem interpor recurso em sentido estrito da decisão que recusar homologação (artigo 581 inciso XXV).
Homologação do acordo e audiência
Para a homologação do Acordo de Não Persecução Penal, será realizada audiência na qual o juiz verificará a voluntariedade do investigado e a legalidade do acordo. A voluntariedade significa que o investigado adere ao acordo de forma espontânea, sem coação.
Além da legalidade e da proporcionalidade das condições estabelecidas, o juiz ouvirá o promotor, que poderá se manifestar oralmente ou apresentar um memorial resumido com os indícios que caracterizam a justa causa. Em seguida, o defensor do investigado poderá se manifestar, garantindo o contraditório e evitando que o juiz analise as provas de forma isolada.
O acordo será formalizado por escrito e assinado pelo promotor, pelo investigado e por seu defensor.
Após a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que o acordo seja executado perante o juízo da execução penal. A vítima será intimada tanto da homologação quanto de eventual descumprimento do acordo.
A celebração e o cumprimento do acordo não constarão na certidão de antecedentes criminais, salvo para impedir que o investigado celebre novo acordo dentro do prazo de cinco anos.
Revogação do acordo de não persecução penal
Se o investigado descumprir as condições do acordo, o Ministério Público comunicará o juízo para que o acordo seja rescindido e a denúncia oferecida.
O juiz competente para decidir sobre a rescisão do acordo não é o juiz da execução penal, mas sim o juiz das garantias ou o juiz da instrução e julgamento. Como foi quem acompanhou a formalização do acordo, ele tem melhores condições de avaliar se houve descumprimento e se o prosseguimento da ação penal é necessário.
O investigado deve ser notificado da rescisão para que possa exercer seu direito ao contraditório e à ampla defesa. Se houver necessidade de prova testemunhal para esclarecer os fatos, o juiz designará audiência.
O descumprimento do acordo pode ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para não conceder a suspensão condicional do processo caso essa medida seja posteriormente cogitada.
Cumprimento do acordo e certidão de antecedentes criminais
Se o acordo for integralmente cumprido, o juízo competente decretará a extinção da punibilidade.
A celebração e o cumprimento do acordo não devem constar na certidão de antecedentes criminais, salvo para impedir um novo acordo no período de cinco anos.
Crimes tributários e acordo de não persecução penal
Nos crimes tributários, o pagamento do débito extingue a punibilidade. Se o tributo for quitado, o crime deixa de existir e o acordo se torna desnecessário.
Se o investigado não tiver condições de pagar, isso não impede a formalização do acordo. O artigo 28-A prevê que a reparação do dano ou a restituição do bem só é exigível se houver possibilidade de fazê-lo.
Caso o investigado tenha condições de pagar apenas parte do tributo devido, nada impede que seja realizado um pagamento parcial, com abatimento proporcional do valor remanescente.
Retroatividade da lei e limites do acordo de não persecução penal
A norma que substitui a pena pelo cumprimento de determinadas condições tem natureza de direito material, pois trata do poder punitivo do Estado. Sendo mais benéfica, aplica-se de forma retroativa. A propósito da diferenciação entre normas penais e processuais penais, ver Capítulo 12 da Teoria Geral de nossa Breve Teoria Geral do Processo.
A Constituição Federal estabelece que a lei penal mais benéfica retroage em favor do réu (art. 5º, inciso XL da CF). O Código Penal (artigo 2º, parágrafo único) reforça esse princípio ao determinar que a norma favorável se aplica mesmo a fatos já julgados.
O acordo pode ser proposto ou requerido tanto na fase investigatória quanto em processos já em andamento ou até mesmo depois de findos. Se o acordo for formalizado após o trânsito em julgado, a eficácia da sentença condenatória fica suspensa até o seu cumprimento. Se o investigado descumprir o acordo, os efeitos da sentença voltam a ser aplicados.
Inicialmente, a jurisprudência limitava o acordo ao período anterior ao oferecimento da denúncia. Com o tempo, passou a admiti-lo também na fase recursal, mas ainda há resistência à sua concessão após o trânsito em julgado.
Essa restrição não se justifica. A ser aplicada, dois réus que cometeram o mesmo crime na mesma data podem receber tratamentos distintos apenas porque um teve seu processo julgado mais rapidamente. A sorte de um não pode ser usada como critério jurídico para negar um direito ao outro.
O trânsito em julgado de uma condenação penal não é imutável. A revisão criminal pode ser interposta a qualquer tempo, inclusive após o cumprimento da pena. A Lei de Execução Penal determina que o juiz da execução deve aplicar a lei posterior mais benéfica a processos já julgados.
A tese da irretroatividade, diante da barreira do trânsito e julgado, vai em sentido contrário à despenalização e a ressocialização do condenado: O artigo 66 da Lei 7.210/84 prescreve que compete ao Juiz da execução aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado.
Logo, o entendimento de que a retroatividade da possibilidade acordo não ultrapassa o trânsito em julgado contraria quatro disposições legais expressas: art. 5º, inciso XL da CF e seu caput (todos são iguais perante a lei), artigo 2º, parágrafo único do CP e o artigo 66 da Lei 7.210/84. Além disso, ignora a lógica do sistema penal, que prioriza a ressocialização e a adequação da pena às novas normas mais justas.
Se a lei mais benéfica pode retroagir para reduzir penas e até extinguir condenações já transitadas em julgado, não há razão para que o mesmo raciocínio não se aplique ao acordo de não persecução penal.
A circunstância do dispositivo legal estatuir por meio de norma processual momento para a o exercício do direito (Não sendo caso de arquivamento…) não subtrai a hierarquia superior da norma da retroatividade penal. O princípio da aplicação imediata é norma que objetiva a simplificação do processo de forma a que processos em tramitação não sigam normas distintas. É simples norma que visa organizar, simplificar. Já a norma da que prevê a retroatividade da norma penal mais benigna resulta de comandos constitucionais pertencentes à categoria dos direitos e garantias individuais. Há, portanto, supremacia da norma da garantia individual sobre a norma de categoria procedimental.
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Exame dos dispositivos da Resolução 181
Tráfico de drogas privilegiado e acordo de não persecução:
No caso do tráfico de drogas (artigo 33, parágrafo 1º e seus incisos da Lei n. 11.343/2006), a pena pode ser reduzida de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa (artigo 33, parágrafo 4º da Lei n. 11.343/2006).
Com a redução, a pena fica abaixo de quatro anos. Logo, nesse delito está autorizado o acordo de não persecução penal. Essa possibilidade pode contribuir para a redução da lotação da população carcerária e poupar a devastação precoce e estúpida da saúde física e mental de milhares de jovens brasileiros. No ano de 2019, de um total de 773 mil presos no país, 163 mil estavam detidos em razão de tráfico de drogas. O maior percentual de presos no Brasil se dá por este delito. Em segundo lugar está o roubo, com 115 mil casos.
Acordo de não persecução criminal e o caput do artigo 33 da Lei n. 11.343/2006:
Quando a conduta do investigado se insere no caput do artigo 33 da Lei n. 11.343/2006, impossibilita-se o acordo de não persecução penal.
A legislação precisa ser alterada de forma a possibilitar que o infrator do caput do artigo 33 também possa ser beneficiado com o acordo de não persecução penal. Nosso entendimento é o de que, por meio do processo legislativo, a pena mínima deve ser reduzida para que fique em um patamar abaixo de quatro anos. Nos títulos que seguem explicamos, os motivos desse entendimento.
Considerações de Guilherme Fernandez Silva sobre a repressão do comércio de drogas:
Em interessante artigo publicado na Revista Conjur, intitulado Considerações sobre o acordo de não persecução penal no tráfico privilegiado, o Promotor de Justiça Guilherme Roedel Fernandez Silva examina a possibilidade de realização do acordo de não persecução no tráfico privilegiado. Escreve que “o constituinte de 1988 internalizou a política de guerra às drogas, capitaneada internacionalmente pelos Estados Unidos, e estabeleceu que ‘a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e os definidos como hediondos’. A evolução legislativa e jurisprudencial sobre o tema, marcada pela construção no imaginário da sociedade e dos atores do sistema de Justiça Criminal da figura do traficante como um ser violento e perigoso, etiquetou o comércio de determinadas substâncias entorpecentes como crime hediondo (…). Enviaram milhares de jovens para longas temporadas em prisões, por terem vendido um baseado ou um papelote de cocaína para alguém que voluntariamente se interessou por alterar seu estado mental com uso da substância tornada ilícita por ato do Poder Executivo. (…) Ocorre que em 2016, no HC 118.153, o STF decidiu que o chamado tráfico privilegiado não tem natureza hedionda. O STJ, então, no julgamento do Tema 600, estabeleceu que o ‘tráfico ilícito de drogas na sua forma privilegiada não é crime equiparado a hediondo’. (…) O argumento que sustenta a tese de que o traficante do aglomerado necessariamente integra organização criminosa porque dependeria de autorização do dono do morro para praticar o comércio, além de revelar odioso preconceito de classe e reforçar a criminalização da pobreza, é falso (…). Infelizmente, com a devida vênia, parece que o principal obstáculo para promotores firmarem acordo de não persecução penal no tráfico privilegiado decorre da ausência de reflexão sobre o bem jurídico efetivamente tutelado nos crimes relacionados às drogas e especialmente sobre o principal motivo pelo qual o comércio de algumas drogas pode se tornar extremamente violento: a própria criminalização!”.
Drogas, tabus e crenças:
São muito oportunas as considerações do Promotor de Justiça de Guilherme Roedel Fernandez Silva. Estamos destruindo vidas de milhares de jovens, empilhadas em presídios – situação mantida por tabus e crenças infundadas.
Algumas expressões, a propaganda e a mídia possuem o poder de transformá-las em expressões repulsivas. Tráficantes de drogas… mas o que são eles? Comerciantes.
Tabus geram proibições cujas razões não são científicas. São apenas crenças. Comercializar cigarros e álcool não é proibido. Vender maconha e outras drogas é. Que diferença há entre drogas lícitas e ilícitas? Não há nenhum critério lógico para distinguir a licitude das drogas. A única diferença que pode ser feita é a de que as lícitas são as autorizadas, e as ilícitas são as proibidas – o que significa não distinguir.
Tabu e crença não fazem uso da lógica. A crença não se baseia em fatos, mas em versões sem provas e no desejo de crer. A crença é imune à razão, portanto não nos aproxima da realidade. Nos dizeres de Friedrich Nietzsche, a crença forte só prova a sua força, não a verdade daquilo em que se crê (Humano, Demasiado Humano. São Paulo: Lafonte, 1918).
A humanidade faz uso das drogas desde os primeiros hominídeos, surgidos há sete milhões de anos. Os sumérios gravaram o uso do ópio para incentivar a alegria em um ideograma datado de 5.000 a.C. Em 600 a.C., a coca já era conhecida de povos da América do Sul, consoante registros arqueológicos. Estudo que consta no artigo Psychoactive Substances in Prehistoric Times: Examining the Archaeological Evidence dá conta de resquícios fósseis de cacto alucinógeno, encontrados numa caverna do Peru, no período entre 8600 a.C. e 5600 a.C. As sementes da leguminosa Dermatophylum, encontradas na região que hoje é o Sul do Texas e Norte do México, datam do final do nono milênio a.C. até 1000 d.C. E pequenas esculturas de pedra chamadas ‘pedras de cogumelo’, encontradas na Guatemala e no México, sugerem que cogumelos alucinógenos teriam sido usados em cerimônias religiosas entre 500 a.C. e 900 d.C. (Time and Mind Journal).
As drogas sempre fizeram parte da cultura da humanidade. Foi no início do século XX que surgiram os primeiros movimentos no sentido de sua criminalização, tendo por motivação a xenofobia, os interesses da indústria farmacêutica e as crenças protestantes.
A Conjur publicou, no ano de 2017, uma série de reportagens, empreendidas pelo jornalista Sérgio Rodas, sobre a guerra às drogas e lotação das prisões. Foram um total de oito reportagens. Foram escutados, entre outros, políticos, professores universitários, advogados, juristas e um procurador de justiça. Nos chamou a atenção o fato de que as drogas nem sempre foram um problema, ao contrário, foram um costume integrante da cultura. Elas eram utilizadas legalmente em todo o mundo até o início do século XX. Tudo começa a mudar nessa época por duas razões. A primeira é decorrente do preconceito contra imigrantes, os quais faziam uso de drogas diversas e competiam pelos empregos com os norte-americanos. A segunda razão, associada a interesses da indústria farmacêutica, foi a absorção da ética protestante: vida sem vícios, sem prazeres intensos, voltada para o trabalho, enquanto caminhos da salvação. Em 1914 foi publicada nos EUA a primeira lei antidrogas federal. Na sequência, o álcool foi proibido (Sérgio Rodas: Conjur publica série de reportagens sobre guerra às drogas e lotação das prisões. Conjur).
A indagação que cumpre fazer é a seguinte: se o homo sapiens viveu por trezentos mil anos sem a proibição do uso e livre circulação de drogas, o que de novo aconteceu com ele a justificar a interdição?
Drogas são boas e são ruins. Drogas usadas moderadamente cumprem um importante papel de promover a interação de indivíduos e grupos, em encontros e festividades. Beber moderadamente com alguns amigos consiste em ritual de confraternização. Usadas em excesso, todas as drogas fazem mal à saúde física e psíquica. Até remédios tomados em excesso fazem mal à saúde. Matam, inclusive.
Algumas drogas fazem mais mal que outras. Umas em curto prazo; outras, em longo. Não há qualquer evidência de que o álcool seja menos prejudicial que a maconha ou mesmo que a cocaína. Tudo é uma questão de onde se usa, como, quando e quanto. Drogas lícitas também produzem sequelas. O álcool destrói lares e mata no trânsito. O fumo provoca câncer de pulmão e enfarto do miocárdio, entre diversos outros males.
A fantasia do traficante aliciador
Acredita-se que cigarro e álcool não precisam ser proibidos. Maconha, cocaína e outras drogas, sim. É uma questão de fé. A crença é de que há drogas do Bem, distintas das drogas do Mal. O desconhecimento sobre o tema impressiona. Dentre as crendices risíveis, destaca-se a lenda do bombom emaconhado de porta de escola. Chega-se ao ponto de fantasiar que é o traficante que induz o indivíduo a experimentar a droga; que é o traficante quem vicia o indivíduo, e não o indivíduo que, livremente, comumente por influência do grupo, decide experimentar a droga e que, da qual, apreciando, passa a usar, de forma moderada ou, excepcionalmente, excessiva.
Não é a droga que vicia o indivíduo. É o indivíduo que se vicia na droga. Muitos são – a enorme maioria – os que não se viciam. Para se viciar, é preciso que haja predisposição orgânica (alcoólatras, por exemplo) ou psíquica (causada por distúrbios psicológicos).
Há o que sustentam e acreditam firmemente que o traficante seduz suas vítimas e que prendendo traficantes, existirão menos viciados. Um disparate. Tolice.
A lenda da organização criminosa
Não faltam aqueles que entreveem em todo traficante um membro de organização criminosa ou associado para o tráfico. Desconhecem como se dá o tráfico. É sistema que se desenvolve por divisão de porções cada vez menores. Traficantes maiores vendem para traficantes menores e estes para outros, sucessivamente. Uma porção de droga é comprada por alguém que, por sua vez, a divide em tantas outras porções menores. Essas menores, vendidas em separado, custam, somados seus valores, mais caro que porção comprada. O lucro está nesta diferença. A razão pela qual a porção menor é proporcionalmente mais cara que a maior está no risco que existe em fazer diversas vendas em vez de uma só. Quanto maior o número de vendas, maior o risco de ser preso. Logo, é a proibição que valoriza o produto e viabiliza o tráfico. Excluídos alguns poucos que estão no topo da pirâmide, uma parcela significativa desses indivíduos é viciado e se dedica a esse comércio para sustentar o próprio vício. Pertencer à organização criminosa é exceção.
Anos de exercício da advocacia criminal nos autorizaram a concluir que mais de noventa e oito por cento dos vendedores de drogas não fazem parte de qualquer organização. Adquirem a droga de qualquer vendedor, ou melhor, daquele que vende o melhor produto pelo melhor preço. Não há qualquer compromisso entre eles. Quem vende, vende para quem paga, pouco importa quem seja.
Associação criminosa ou organização criminosa, enquanto tipos penais, pressupõe: associação de pessoas, divisão de tarefas, objetivo econômico. Há vínculo unindo os associados por fins comuns. As organizações, ou associações, criminosas dedicadas ao tráfico são poucas. Envolvem tráfico internacional, quando se trata do andar de cima. No de baixo, há o traficante que exerce a distribuição com exclusividade em uma determinada região. Essa exclusividade é assegurada por alguns membros armados da associação, milícias e policiais corruptos. Milicianos ameaçam ou matam aquele traficante que invade o território do traficante protegido (e que paga pela proteção). Policiais corruptos prendem os desautorizados a traficar em determinadas áreas.
Esse baixo tráfico é o daqueles traficantes encastelados em comunidades carentes. Os que fazem parte da organização são muitos poucos. Basicamente, a organização se constitui do traficante, daqueles que, armados, o protegem, dos milicianos e dos policiais corruptos que asseguram o território. O traficante líder vende drogas – pessoalmente, ou por meio de seus comparsas armados próximos – para qualquer um que se disponha a pagar. Aquele que compra não tem, normalmente, outro vínculo com a organização que não seja a obrigação de pagar o preço, o que o faz mediante o recebimento do produto. Esse segundo traficante, dividindo o produto em porções, irá vender para qualquer outro que se disponha a pagar. E assim por diante. Onde queremos chegar? Na insensatez.
Quando se condena alguém por tráfico de drogas em concurso com o delito de organização criminosa, o que não é incomum, sem qualquer demonstração de reais vínculos associativos, está-se diante de um ato de insensatez. E de desconhecimento. A propósito, cumpre observar que o argumento de que, caso se descriminalizasse a venda de drogas, o traficante passaria a praticar crimes violentos – como roubo por exemplo –, é preciso ter em consideração que traficante violento é exceção. É aquele líder do morro e dos que estão intimamente ligados a ele. A imensa maioria dos vendedores de drogas é ocasional e possui seu próprio trabalho, seja como empregados ou autônomos.
O argumento que se refere ao aumento da violência mediante a descriminalização é apenas mais um industrializado e distribuído pelos interesses que existem e que constituem as causas da repressão.
Males que as drogas causam
O cigarro possui 4.700 substâncias tóxicas. Nenhuma delas é proibida. Mas ele é a principal causa de morte no mundo, dentre as que poderiam ser evitadas. O Instituto Nacional de Câncer (INCA) estima que, para cada ano do triênio 2020/2022, sejam diagnosticados no Brasil 30.200 novos casos de câncer de pulmão, sendo que em 70% dos casos o motivo é o fumo. O cigarro age sobre as células que recobrem os vasos sanguíneos, estreitando-os e os endurecendo. O fumante possui 30% mais chances de sofrer infarto do miocárdio.
Quanto ao álcool, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, ele é responsável por três milhões de mortes ao ano. De cada vinte mortes, uma está relacionada ao consumo dessa droga. Tendo em vista que – ao contrário de outras drogas que, quando matam, a vítima é o próprio usuário –, o álcool mata quem não o ingeriu, talvez ele seja uma das drogas mais perniciosas.
A maconha é usada há muitos anos. O contingente de usuários não é pequeno. A maconha também é droga que oferece riscos. Embora existam estudos que aleguem sua inocência (e há estudos e estatísticas para todos os gostos, máxime a quem se dispuser a comprá-los), a canabis, quando fumada por adolescentes, pode, mesmo que consumida em poucas ocasiões, desencadear um processo psicótico gravíssimo. Seu mal maior é este: pode criar condições para desencadear psicoses, especialmente se fumada na adolescência, que se não tratadas com medicações especiíficas a tempo, podem resultar cronificar e resulta em esquizofrenia. Queremos crer que a esquizofrenia não é própriamente uma doença, e sim o conjunto de sequelas causado por estados psicóticos que se tornaram crônicos. As transformações biofísicas cerebrais não são a causa da esquizofrenia, mas consequência dos surtos psicóticos sobre o quais não foi possível controlar a tempo. Essa consequência desastrosa ocorre com um percentual relativamente pequeno de indivíduos (algo em torno de um a três por cento dos que fumaram na puberdade). De qualquer maneira, viciados que fumam a maconha habitualmente, todos os dias, e que não são poucos, desenvolvem síndrome amotivacional. Não fazem planos, são preguiçosos, desenvolvem algum grau de déficit cognitivo. Em muitos desses viciados, a droga exerce uma função terapêutica, sedativa – possivelmente recomendável. Se eventualmente fumada por adultos, não há praticamente qualquer risco ou malefício para a saúde. É meio de interação. Tão saudável quanto beber algumas taças de vinho.
A cocaína, por sua vez, por muitos anos foi droga liberada, no Brasil e na Europa. Cheirada em excesso, pode provocar parada cardiorrespiratória. Quando há excesso e que persiste no decorrer dos tempos, ela se transforma em poderoso estímulo de distúrbios mentais. Dispõe do poder criá-los e de agravá-los. Consumida eventual e socialmente, com bastante moderação, assim como álcool e a maconha, não é capaz de provocar danos à saúde. Não é uma droga com alto poder viciante. Seus efeitos duram poucos minutos. Não são muitos os viciados em cocaína. Há muitos usuários, poucos viciados. Todavia, alguns indivíduos se viciam nela de uma maneira extremamente intensa. Nesses casos, a decadência cerebral é extremamente significativa.
Outras drogas podem ser bastante prejudiciais, especialmente se usadas em excesso ou com frequência. A bala (ecstasy), cujo princípio ativo é o MDMA (metilenodioximetanfetamina), produz serotonina em excesso, o que pode provocar lesões em células nervosas.
O doce (LSD – dietilamina do ácido lisérgico) pode provocar quadros psicóticos.
O crack (uma mistura de cloridrato de cocaína com bicarbonato de sódio) produz efeito forte e rápido. Difunde-se com facilidade em indivíduos predispostos em razão de problema psíquicos.
Outra droga bastante difundida no Brasil é o loló (mistura de substâncias constituída basicamente por éter, cloreto de etila e clorofórmio). Assim como o crack, o loló é utilizado por alguns moradores de rua, tendo em vista que ambas as drogas não custam caro.
Inutilidade da repressão e os males que ela provoca
A repressão das drogas tem se demonstrado inútil. A ideia de que é o traficante quem corre atrás do viciado, e não o contrário, faz parte da coleção de sandices sobre o tema. Aqueles que creem que o traficante alicia o indivíduo e o introduz no vício precisam urgentemente retornar ao mundo.
Prender quem comercializa drogas é inútil. É fazer antipolítica criminal. Preso um, sempre haverá três outros indivíduos livres dispostos a lucrar com a venda de drogas. A prisão de um produz o efeito de prevenção geral. Mas no sentido inverso. Quanto maior a repressão, mais o preço do produto sobe. O lucro aumenta. É incentivo para novos traficantes.
Assim são algumas crenças. Inúteis. Estava certo o ministro Luís Roberto Barroso, quando, em suas anotações ao voto oral do recurso extraordinário n. 635.659, apontou que “a criminalização do comércio de drogas não produz o efeito de reduzir o consumo. A contrário, aumenta o consumo, pois o dependente, enquanto fomentador de um criminoso, fica à margem da lei. Mas a criminalização do tráfico produz sim alguns resultados: mais crimes (de tráfico) e os correlatos (corrupção, organização criminosa), além de fomentar milícias”.
Não existe luta ou guerra quando a vitória é impossível. É uma luta falsa, forjada. Quanto mais se combate o tráfico, mais a droga adquire valor. Isso não é luta. Isso é criar o fenômeno e, a seguir, se associar a ele.
Para reduzir o consumo de drogas, só uma guerra é possível: aquela que combate o consumo. Mesmo que a repressão extinguisse o tráfico, o consumo persistiria. Maconha se planta em casa, alucinógenos se obtêm recolhendo cogumelos em qualquer campo onde tenha gado, uísque se fabrica com milho, loló pode ser substituído por éter, e drogas de laboratórios se obtêm com receita médica.
Essa guerra não se trava com fuzis, e sim com pedagogia e assistência médica. Diz respeito à saúde e à educação. O controle de drogas do Estado está onde jamais deveria ter se situado, nos órgãos de repressão. O lugar dele é no Ministério da Saúde.
Poucos são os que resistem à propaganda maciça. A respeito da efetividade da propaganda, há uma frase atribuída a Joseph Goebbels: Dê-me o controle da mídia e farei de qualquer país um rebanho de porcos. Com propaganda maciça, até passar a mugir a população é capaz. Há alguns exemplos atuais dessa força: a campanha de Lei Seca promovida pelo Ministério dos Transportes e a campanha contra o cigarro. Esse é o caminho. Se foi adotado em outros países? Precisamos ser sempre os últimos?
Nocividade da repressão criminal
A repressão criminal ao tráfico de drogas, como vem sendo feita, indiscriminadamente, não é apenas inútil. É nociva e perniciosa.
Seis motivos:
Primeiro: A repressão aumenta o preço da droga na medida em que crescem as dificuldades e riscos do comércio. Esse aumento de preços torna o tráfico mais lucrativo, o que serve de incentivo para o surgimento de novos traficantes.
Segundo: Os presídios estão abarrotados de vendedores de drogas, varejistas pobres. De acordo com dados divulgados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), em junho de 2016, o crime por tráfico de drogas apareceu em 28% das incidências penais pelas quais as pessoas privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento no país. O Brasil tem mais de 773 mil presos (ano 2020) para um total inferior a 400 mil vagas. Traficantes são jovens com idades entre 18 a 26 anos. Eis o caos prisional total. Com as delegacias lotadas, presos em flagrante são algemados em postes nas ruas. Esses jovens estão tirando a vaga de criminosos realmente perigosos, aqueles que agem com violência contra a pessoa.
Terceiro: Boa parte desses jovens traficantes desconhece a violência. Não são delinquentes dados à violência. São presos com quantidades de droga que, quando vendidas, mal dá para sustentar uma família por mais de um mês. A prisão do jovem, em face de sua imaturidade, aniquila seu futuro. Não se discute se a experiência prisional pode ser traumática, e sim, qual a gravidade do trauma e a intensidade das sequelas. O desequilíbrio emocional que ocasiona, sem tratamento, perdura por toda a vida. A experiência da prisão, além de representar desperdício da juventude, cria condições para a formação de verdadeiros e novos criminosos. São sangue novo, matéria-prima para as gangues. O Estado investe e gasta para transformar indivíduos de escassa ou nenhuma periculosidade em audaciosos delinquentes. Prisão estraga quem é bom e piora quem é ruim. Onde não havia rancor, nele é plantado. Traficante, uma vez preso, se torna um indivíduo pior. Investir em finalidade contraproducente leva o nome de desperdício de dinheiro público. “Da promulgação da lei de drogas, em 2006, até hoje, houve um aumento do encarceramento por infrações relacionadas às drogas de 9% para 27%. Aproximadamente, 63% das mulheres que se encontram encarceradas o foram por delitos relacionados às drogas. Vale dizer: atualmente, 1 em cada 2 mulheres e 1 em cada 4 homens presos no país estão atrás das grades por tráfico de drogas (…) Além do custo elevado, há outro fenômeno associado ao encarceramento: jovens primários são presos juntamente com bandidos ferozes e se tornam, em pouco tempo, em criminosos mais perigosos. Ao voltarem para a rua, são mais ameaçadores para a sociedade, sendo que o índice de reincidência é acima de 70%. Por fim, há um outro problema: como não há critério objetivo para distinguir consumo de tráfico, no mundo real, a consequência prática mais comum, como noticiam, dentre muitos, Pedro Abramovay e Ilona Szabó, é que ‘ricos com pequenas quantidades são usuários, pobres são traficantes’ (Ministro Luís Roberto Barroso – anotações ao voto oral do recurso extraordinário n. 635.659).
Quarto: Custa caro manter alguém preso. Gasta-se, no Brasil, mais de 15 bilhões ao ano com presídios. Cada preso possui um custo de R$ 4.000,00 ao mês (ano de 2021), o suficiente para prestar auxílio básico para seis famílias carentes. Para a repressão são gastos vultosos recursos. Não se trata somente de presídios, são despesas com polícias e com o judiciário. Os juízes ficam instruindo e julgando inutilidades, quando poderiam estar se dedicando a solucionar litígios realmente relevantes. Todo esse dinheiro, que deveria estar sendo direcionado para o tratamento de viciados e prevenção por meio de campanhas educativas, é gasto em repressão, punição e destruição de seres humanos.
Quinto: Quando o traficante, uma vez solto, não tendo sido aliciado pelo crime não se tornan um delinquente violento, suas oportunidades de conseguir atividade lícita são reduzidas consideravelmente, pois fica estigmatizado.
Sexto: A repressão às drogas constitui incentivo à corrupção policial e ao fortalecimento e crescimento de milícias. A certa altura de sua história, o povo norte-americano, cujo direito penal em alguns Estados, é um mistifório de pecado, religião, moral evangélica pentecostal e punições – entre elas, a de pena de morte, e onde o Estado, literalmente, assassina o condenado – passou a crer que os males todos possuíam uma causa: a embriaguez. Do ano de 1920 ao ano de 1933 vigorou a Lei Seca, com a proibição de produção e venda de bebidas alcoólicas. Esse período representou o auge do crime organizado estadunidense. Diversas organizações criminosas de tráfico de bebidas alcoólicas foram formadas. A corrupção policial atingiu níveis máximos. A Cosa Nostra Americana cresceu e ganhou força. Al Capone dominava Chicago. A interface entre a sociedade e a criminalidade é realizada pelo contingente policial. A polícia está em contato próximo e direto com criminosos. É natural, esperado e inevitável, que alguns policiais terminem por se corromper. A propósito, é uma das razões pelas quais entendemos que só excepcionalmente o Ministério Público pode investigar, pois quem senta ao lado direito do juiz, um lugar de confiança, não pode fazer interface com o crime. A proibição das drogas torna o seu comércio lucrativo. E onde há crime e dinheiro, irremediavelmente, a corrupção diz presente. Outra consequência da repressão das drogas é que ela constitui importante fonte de renda para milícias, que não apenas as vendem como também cobram de gangues pelo monopólio de “territórios”. O Ministro Luís Barroso foi feliz ao afirmar, no seu voto oral em plenário, por ocasião do julgamento do recurso extraordinário n. 635.659, que, paralelamente ao tráfico “floresce a criminalidade associada ao tráfico, que inclui, sobretudo, o tráfico de armas utilizadas nas disputas por territórios e nos confrontos com a polícia”.
Resumindo, o atual sistema de repressão às drogas é inútil, pois reduzir o número de traficantes não implica na diminuição de viciados. Não é o tráfico que produz o consumo. É o inverso. E é nocivo, pois: 1 – Aumenta o preço da droga, tornando o negócio mais lucrativo, o que resulta em mais tráfico. 2 – Contribui para a superlotação dos presídios, faltando vagas para delinquentes perigosos. 3 – Transforma pessoas pacíficas em perigosos delinquentes. 4 – Gera gastos públicos inúteis. 5 – Estigmatiza aquele que não piora. 6 – Incentiva a corrupção policial e o fortalecimento das milícias.
A vitória sobre o tabagismo
Prender com fundamento em tabu e crença é incivilidade. O que deveria ser feito em relação à política de drogas não é prender. Reduzir o número de traficantes, que isso seja ressaltado em todos seus termos, não reduz o consumo. É a inutilidade da prisão.
O governo federal fez, nas últimas décadas, maciço investimento em propaganda esclarecedora dos males do tabagismo. Campanha educativa. O resultado é impressionante. Três quartos dos homens que fumavam deixaram o vício. A dificuldade do viciado em abandonar o tabagismo é enorme. Os sintomas de abstinência, que duram mais de um mês, envolvem dor de cabeça, irritabilidade, dificuldade de concentração, alteração do sono, sudorese, mãos frias, fome compulsiva, alterações de humor, ansiedade e apatia. A vontade de voltar a fumar é intensa nos primeiros meses. Em alguns fumantes, ela persiste por anos.
As políticas públicas e pedagógicas, inclusive políticas de tributação, revelaram-se um sucesso. Conforme o Instituto Nacional do Câncer, em 1989, 43,3% dos homens e 27% das mulheres fumavam. Em 2006, o percentual de fumantes no Brasil caiu para 15,7%. Segundo dados do Ministério da Saúde, no ano de 2019, apenas 9,3% da população entrevistada declarou que ainda fumava.
Descriminalizar e educar
Para o problema da droga, a melhor solução é descriminalizar. Educar para que não seja usada. Venda regular em farmácias e com receita médica (com acompanhamento médico). Da tributação das drogas, sai o custeio de campanhas de esclarecimento semelhantes às realizadas com o tabagismo.
O mundo jamais abandonará as drogas. Há, nelas, um aspecto saudável e desejável: interação social. Indígenas fazem, drogados, periodicamente, festas de interação grupal. Brasileiros e outros povos também, como é o caso do carnaval.
Uma noite de libação com amigos tem, para muitos, valor superior a meses de ansiolíticos, antidepressivos e estabilizadores de humor. Algumas drogas desinibem, propiciando a aproximação de pessoas, a comunhão e a união do grupo.
Até o início do século XX, a humanidade utilizava drogas livremente, não se cogitava proibi-la. O abuso é que deve ser evitado. Prender comerciantes é completa inutilidade. Ressalvando que não era a legalidade do tráfico que estava em discussão, o Ministro Luís Roberto Barroso acertou no alvo ao dizer que para o problema das drogas “só há uma solução: acabar com a ilegalidade das drogas e regular a produção e a distribuição” (anotações ao voto oral do recurso extraordinário n. 635.659). Corajosa declaração do Ministro.
Toda a repressão às drogas é inútil e cara
Nenhuma repressão que se faça ao tráfico de drogas irá reduzir seu consumo. De nada adianta prender o produtor de drogas ou o atacadista. Outros produtores e atacadistas os substituem. Onde há demanda, a oferta nunca deixará de existir. Se prenderem cem plantadores de maconha no país, outros tantos o substituirão. A uma, porque a demanda não pode ser segregada em presídios. É impossível fazer com que pessoas que queiram se drogar, deixem de fazê-lo. A duas, em razão de que a cada prisão há redução da oferta, o que acarreta aumento do risco do comércio. Maior risco, aumento de preço atraindo mais indivíduos à produção e ao comércio.
Esse entendimento implica reconhecer que não há solução para o tráfico e consumo de drogas? Não, não significa. Solução há. Porém é difícil de implementá-la em razão da resistência da parte de alguns setores. A solução é singela e já referimos: campanha pedagógica.
Constitui objetivo impossível, inexequível e ilusório reduzir o consumo reprimindo o tráfico. A iniciar que o tráfico não é pai do consumo, ao contrário. Enquanto existir procura por drogas, sempre haverá oferta. O remédio, consequentemente, é manifesto: redução do consumo. Não é difícil de atingir esse objetivo. A campanha do governo brasileiro contra o tabagismo reduziu o percentual de fumantes de 35% em 1989 para 9,3% em 2019. São dados do Ministério da Saúde. Campanhas de esclarecimento funcionam, possuem efetividade. A conclusão não é nossa. É das estatísticas.
A propósito especificamente de se considerar o uso de droga crime ou não, essa discussão nos faz lembrar uma frase do professor de direito penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Salo de Carvalho, que afirmou: Da pele para dentro eu constituo um Estado soberano. Faz-nos recordar, também, Shakespeare, quando escreveu que choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes.
No recurso extraordinário 635659, o STF………………………. está por decidir se o porte de droga para consumo próprio constitui, ou não, crime. Muito provavelmente, no julgamento deste recurso extraordinário, será decidido, em mora jurisdicional, que porte para uso próprio de droga não é delito.
Nos faz pensar em um país que não existe. Nele, era proibido às mulheres usarem calça. Só podiam usar vestido. A venda de calça era severamente punida. Com o passar dos tempos, foi permitido. Mas vender calças persistiu proibido. Passaram a usar, sem que estivessem praticando qualquer delito. Mas continuou sendo crime vender para o livre uso. O mistério ficou por conta de decifrar a lógica do acontecimento. Todos têm o direito de beber. Mas ninguém pode vender para quem quiser exercer seu direito. Proíbe-se a venda daquilo que se possui o direito de uso.
Solução paliativa. Necessidade de alteração da pena mínima do tráfico
Há interesses, aqueles de vulto, aos quais confrontar, reconhecemos, possui pouca utilidade. A descriminalização das drogas cumpre importante papel que diz respeito a interesses internacionais.
É preciso encontrar uma solução, ainda que provisória, para o encarceramento em massa da juventude. Ao tráfico de drogas se aplica pena que varia de cinco a quinze anos (artigo 33 da Lei n. 11.343/2006). O acordo de não persecução criminal está autorizado aos delitos com pena mínima inferior a quatro anos. É preciso reduzir a pena mínima do tráfico de drogas de forma a possibilitar a realização do acordo de não persecução penal.
Enfim, a continuar as coisas como estão, prosseguirá o caos instalado no sistema prisional, onde, a confirmar que tabu e crença têm por principal fundamento a irracionalidade, o maior percentual de presidiários são indivíduos não violentos, e jovens.
Razões de ordem psíquica da proibição …………………………………… atualizar
Além de haver interesse de grupos nacionais e estrangeiros na proibição de drogas, existem duas outras explicações para a sua vedação e persecução penal. Uma é psíquica, outra é sociológica. Tanto uma como a outra não constituem razão lógica para a proibição. Daí ser a proibição simples credo sem fundamento racional, embora fomentada por interesses.
Quando algo que produz prazer é bom, mas quando praticado excessivamente, é ruim, seja para o indivíduo, seja para a coletividade, tende-se a proibi-lo parcialmente. Proibido apenas parcialmente porque, quando praticado moderadamente, é bom; quando em excesso, é ruim.
Sexo sem limites é sexo com infidelidade (porque põe em risco a família), é sexo com diversos parceiros (porque coloca em risco a saúde), é sexo incestuoso (porque é geneticamente pernicioso). Mas sexo é bom. É indispensável. Sem ele, a espécie se extingue. Sendo praticado moderadamente, é bom. Ilimidamente e sem freios, é ruim. Precisa ser parcialmente proibido.
Em algumas regiões onde predomina o islamismo, as mulheres estão proibidas de mostrar o rosto (tapam-se os lábios, que são mucosas, onde estão as principais fontes do prazer sexual). No Ocidente, as mulheres cobrem o sexo e os mamilos. Vale dizer, proíbe-se parte, libera-se outra. A parcialidade da proibição encontra representação na anatomia. A moderação do prazer é simbolizada pela vedação parcial da exposição corporal.
Qual a relação disso com drogas? Com drogas se dá o mesmo. A necessidade de sinalizar que o excesso está proibido se manifesta permitindo o uso de certas drogas e proibindo o de outras. A proibição parcial é efetivada por meio de processo de deslocamento.
Por que a proibição é parcial? Porque drogas fazem bem e, também, fazem mal. Fazem bem porque favorecem a integração individual e grupal. Fazem mal porque, se utilizadas em excesso, provocam transtornos individuais e sociais. Para sinalizar que o excesso não é bem quisto, proíbem-se algumas, autorizam-se outras.
Deslocamento da proibição do excesso. Com a liberaão parcial obtém-se a sensação de que o excesso e mal estão afastados. No entanto, não justifica a proibição legal na medida em que a proibição de algumas drogas não tem o poder evitar o excesso.
A Guerra Cultural: Entre a Filogenética e a Sociedade Contemporânea
A razão sociológica da proibição das drogas antecede qualquer sistema político ou ideológico moderno. Não é uma construção recente, mas um traço inscrito na memória filogenética. Durante milhões de anos, as diversas espécies de hominídeos que vagavam pelas savanas, organizadas em pequenas tribos de trinta a quarenta indivíduos, já apresentavam uma estrutura social composta por dois grupos essenciais para a sobrevivência da espécie.
O primeiro grupo era formado pelos guardiões dos genes, aqueles que compreendiam que a preservação da espécie exigia uma rede de interdependência. A diversidade genética assegurava a adaptação ao ambiente, e essa visão os levava a defender que todos eram responsáveis por cada um. O segundo grupo estava focado na sobrevivência imediata da tribo, priorizando a caça, a proteção e os desafios do presente.
Entre essas forças opostas, surgia o líder — um papel que hoje é desempenhado pelo Estado. Sua função era manter a coesão do grupo, administrando as tensões e buscando um equilíbrio entre a necessidade de progresso e a urgência da sobrevivência. Essa dialética entre forças em oposição moldou não apenas a organização social primitiva, mas continua a influenciar as sociedades contemporâneas.
O que chamamos de tendência constitucional do indivíduo — uma inclinação ideológica que precede o nascimento, mas pode sofrer influências do histórico pessoal — é uma explicação para os desvios motivacionais que levam ao fenômeno da cognição motivada e da dissonância cognitiva, que abordo em outro trecho desta obra – ver subtítulo Cognição motivada, dissonância cognitiva e convicção no título A busca da imparcialidade, em comentários ao artigo 3º-B. Essa tendência não é apenas fruto do meio ou da educação, mas um reflexo da ancestralidade biológica do pensamento humano.
Direita e Esquerda: Uma Perspectiva Filogenética
A dicotomia política que hoje chamamos de direita e esquerda não é um produto artificial da modernidade, mas a manifestação contemporânea dessas duas forças que sempre estiveram presentes na evolução social da espécie. Nos agrupamentos primitivos, aqueles que se destacavam na caça, na coleta e na guerra formavam a ala conservadora. Os demais, que priorizavam a coesão social e a redistribuição dos recursos, compunham a ala progressista.
O líder, por sua vez, precisava encontrar um ponto de equilíbrio. Sua função era distribuir os recursos sem desestimular os caçadores, mas também sem negligenciar aqueles que garantiam a continuidade da tribo em novas gerações. Essa lógica persiste no papel dos governos modernos: é necessário tributar a produção para financiar políticas de bem-estar social, mas sem minar o estímulo econômico e produtivo.
Desde as tribos nômades até os impérios modernos, a humanidade tem oscilado entre esses dois polos. A direita cuida do presente, garantindo a ordem, a segurança e a produtividade. A esquerda olha para o futuro, buscando garantir a perpetuação da espécie por meio de mecanismos de cooperação e inclusão.
Afinal, se a tribo negligenciasse os mais fracos, a longo prazo se extinguiria. Por outro lado, sem os caçadores, a fome levaria a uma ruína imediata. Essa dialética, descrita de maneira rudimentar, é o que estrutura o pensamento político até hoje.
A Persistência da Guerra Cultural
As expressões esquerda e direita surgiram no contexto da Revolução Francesa, quando os defensores da aristocracia se sentavam à direita do parlamento e os partidários da burguesia à esquerda. No entanto, essas divisões já existiam há milhares de anos, com outras nomenclaturas e sob diferentes formatos.
A disputa entre essas forças nunca se deu apenas no campo econômico ou social, mas também no campo dos valores, da cultura e da moralidade.
Em sociedades arcaicas, a guerra cultural se resumia à divisão da caça. Nos dias de hoje, a arena do conflito se expandiu para temas como aborto, feminismo, direitos das minorias, globalização, livre mercado, identidade nacional e até a regulamentação das drogas.
A direita entende que o Estado deve ser reduzido ao mínimo necessário, garantindo apenas a segurança e a ordem. A esquerda defende que o Estado tem um papel ativo na promoção do bem-estar social. Esse embate se reflete na política tributária, na regulação da economia e no papel do governo na redistribuição de recursos.
Contudo, essa disputa não se limita a um plano racional. O que vemos hoje, em tempos de redes sociais e hiperconectividade, é a radicalização de posturas que, em alguns indivíduos, chega a um nível de distorção cognitiva.
A Radicalização e a Psicologia das Massas
Foi Gustave Le Bom quem primeiro descreveu como os indivíduos, ao se agruparem em multidões, perdem parte de sua racionalidade e passam a agir de forma impulsiva e emocional (LE BON, Gustave. Psicologia das Multidões. França: Delraux, 1980). Esse fenômeno, que era observado em manifestações, levantes populares e assembleias, hoje se manifesta de forma amplificada nas redes sociais (ver artigo O operador de direito, justiça e a multidão).
As redes conectam indivíduos que compartilham uma mesma visão de mundo, reforçando crenças e excluindo a exposição a visões contrárias. Esse efeito, que Cass Sunstein, constitucionalista norte-americano, chamou de “câmaras de eco“, intensifica a polarização e torna o debate público mais emocional e irracional.
Quando percebemos que pessoas inteligentes chegavam ao ponto de se tornar reféns de narrativas absurdas e desprovidas de qualquer base factual, desconfiamos que não se tratava apenas de ideologia, repetição ou influência algorítmica. A explicação deveria estar em algo mais intenso e profundo, mais primitivo.
A tese que propomos é que a guerra cultural não é apenas um embate de ideias, mas um reflexo de uma predisposição biológica herdada ao longo da evolução da espécie. A radicalização política não é um fenômeno meramente social, mas um resquício da estrutura tribal dos primeiros agrupamentos humanos.
É por isso que mesmo indivíduos intelectualmente sofisticados podem se tornar reféns das teses mais insanas. Não é apenas uma questão de falta de informação ou doutrinação ideológica, mas sim um resquício da própria constituição do pensamento humano.
O Papel das Drogas na Guerra Cultural
Dentro desse contexto, a questão das drogas surge como um ponto de tensão entre essas duas visões de mundo. Para a direita, as drogas representam um desapreço à ordem, uma ameaça às tradições e à estabilidade social. São um elemento de desagregação e de descontrole, incompatíveis com a necessidade de preservação da segurança e do patrimônio.
Para a esquerda, a abordagem é diferente. O consumo de substâncias psicoativas é um comportamento que deve ser tratado sob uma ótica de saúde pública e não de repressão. A dependência química não pode ser simplesmente punida, mas deve ser compreendida dentro de uma conjuntura mais ampla.
Essa divergência reflete mais uma vez o embate entre presente e futuro. A direita busca o controle imediato, enquanto a esquerda tenta enxergar a longo prazo.
A criminalização das drogas, portanto, não é apenas uma questão jurídica, mas um reflexo da guerra cultural que se intensificou nos últimos anos.
Em conclusão, a guerra cultural não é um fenômeno passageiro. Ela tem raízes profundas, que remontam aos primeiros agrupamentos humanos. O embate entre forças opostas moldou a civilização e continuará influindo na política, na economia e na moralidade por gerações.
O grande problema da contemporaneidade é impedir que essa disputa, essencial para a sobrevivência da espécie, se transforme em um entrave para a racionalidade e o progresso.
Se não compreendermos a origem desse embate, estaremos condenados a repetir os mesmos ciclos de hostilidade e irracionalidade, sem nunca alcançar um verdadeiro equilíbrio social.
Descriminalização. Se ocorrer, irá demorar
O início da grande investida contra o tráfico iniciou nos EUA durante o governo de Richard Nixon, na década de 1970, quando foi decidido que o grande mal que afligia aquela nação era o consumo de drogas. Foi criado e organizado um complexo sistema de repressão. Na sequência, esse sistema foi exportado para países latino-americanos.
É do interesse dos EUA interagir com órgãos de repressão de outros países. A integração da repressão – com transferências de recursos, materiais, tecnologias, conhecimentos e informações – é o método mais eficiente para manter controle e domínio, vale dizer, supremacia.
Uma das formas da integração da repressão é a cooperação internacional contra a corrupção que, mal utilizada, sem controle, se presta para eliminar a concorrência. A nação mais fraca deve sempre estar atenta à colaboração oferecida pela mais forte. Lobos não pastoreiam ovelhas. Preferem comê-las.
Aliando-se à propaganda contra o mal, há o interesse de órgãos da repressão no recebimento de recursos materiais e financeiros. Os repressores operam maximizando sua própria importância. Como a repressão depende da droga, ela – a repressão – é a primeira viciada. O problema é criado e aumentado, objetivando justificar estruturas, materiais, pessoal e gastos. A dificuldade de adoção de solução racional para a questão drogas encontra barreira nesses interesses.
A mídia, sem deixar de cobrar seu preço, faz a sua parte. Em tempos de redes virtuais, nunca foi tão fácil dar ordens às mentes. A desinteligência, as concepções superficiais, a ressignificação de conceitos elementares se disseminam rápida e eficientemente. Alguns indivíduos eram mais inteligentes quando nada tinham na cabeça.
A internet nos ludibriou. Quebrou todas as expectativas. Imaginava-se que proporcionaria mais conhecimento à humanidade. O efeito foi o contrário. Quem não lia passou a ler, e mentes vazias não distinguem a verdade da mentira. Acreditam na mentira, pois esta impressiona mais, é mais interessante. A proibição de determinadas drogas não dispõe de lógica. A crença é nutrida pelos seguintes ingredientes: o interesse da indústria farmacêutica e dos órgãos de repressão, o imperialismo, a ética protestante, o deslocamento psíquico da proibição do excesso, a ideologia conservadora, a propaganda e a falta de conhecimento da população.
Há, também, enquanto condimento final, o interesse do maior interessado, o próprio traficante: sem a proibição, ele não teria lucro nem fonte de renda. É um banquete pesado, forte, de onde se conclui que tão cedo o imbróglio das drogas não será resolvido. E o genocídio persistirá por anos.
Redução do poder repressivo das polícias
Há outro aspecto, particular, pelo qual a descriminalização das drogas não interessa a alguns setores de órgãos diretamente relacionados à repressão penal: reduziria seu poder de prender.
Para condenar um traficante de drogas, são suficientes – é entendimento jurisprudencial – dois elementos de prova: a droga e o testemunho de dois, no máximo três, policiais (testemunhas de prisão em flagrante). Ora, com essa prova, policiais desonestos que buscam burlar a lei penal podem prender praticamente qualquer pessoa. Basta encaminhar uma porção de droga à perícia, suficiente para caracterizar o tráfico – a qual pode ser facilmente obtida mediante subtração de outra apreensão – e dois ou três policiais dispostos a mentir. Podem ser policiais civis, federais, militares ou da rodoviária federal.
Que repressor abriria mão de tamanha liberdade para prender?