Art. 29. Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.
Ação privada nos crimes de ação pública
Hipótese legal
Se a ação penal pública (dos crimes de ação pública) não for intentada, mediante a denúncia do MP, no prazo legal (prazos do artigo 46), admite-se a propositura de ação privada através de queixa do ofendido.
Fundamento constitucional
A ação penal privada subsidiária é uma garantia constitucional. Constitui cláusula pétrea. Vem estatuída no artigo 5º, inciso LIX da CF, que admite a ação privada nos crimes de ação pública, se essa não for intentada no prazo legal.
Prazo
O ofendido ou seu representante legal decai do direito de queixa se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contando do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia (artigo 38 do CPP).
Jurisprudência
Inércia do MP e ação penal privada subsidiária: Promotor que, de posse de inquérito de indiciado preso, excede o prazo do artigo 48 do CPP, sem requerer diligência ou oferecer denúncia. Cabimento, nessa hipótese, da ação penal privada subsidiária (RHC 19091, STJ, Quinta Turma, Relator Min. Assis Toledo. Data da decisão 26.8.92, DJU 14.9.92, p.14.980).
O arquivamento do inquérito dentro ou fora do prazo legal não inviabiliza a ação privada
Arquivamento e ação penal privada
O arquivamento do inquérito policial dentro ou fora do prazo legal não inviabiliza a propositura da ação penal privada subsidiária.
No entanto, o entendimento do Supremo Tribunal Federal (ano de 2024) é de que o arquivamento ordenado pelo Ministério Público, desde que realizado dentro do prazo legal, exclui o direito de propor a ação penal privada subsidiária. Essa posição, entretanto, é questionável pelas razões que seguem.
O princípio da legalidade e a obrigatoriedade da ação penal
O princípio da legalidade, também conhecido como princípio da obrigatoriedade ou inevitabilidade da ação penal, fundamenta-se no interesse coletivo na aplicação do direito penal. Esse princípio determina que o órgão responsável pela promoção da ação penal pública não dispõe de discricionariedade. Havendo indícios suficientes da prática de crime e de autoria, o Ministério Público tem a obrigação de promover a ação penal.
O artigo 24 do Código de Processo Penal explicita essa obrigação: “nos crimes de ação pública, esta será promovida…”. Assim, o arquivamento de inquérito diante de indícios de crime e autoria configura infração à lei, e não exercício de poder discricionário. Tal irregularidade pode ser corrigida por meio da intervenção judicial com o recebimento da queixa-crime subsidiária.
Ato condicionado e controle judicial
A propositura da ação penal não é um ato discricionário, mas um ato jurídico condicionado ao preenchimento de requisitos legais previamente estabelecidos. O Ministério Público não tem a prerrogativa de escolher entre denunciar ou não quando tais requisitos estão presentes.
Ao examinar os pressupostos da ação e receber uma queixa subsidiária relativa à investigação arquivada pelo MP, o Poder Judiciário, de forma indireta, revisa e invalida eventual ato ilegal do Ministério Público. Nenhum ato que viole a lei está isento de apreciação judicial. Isso inclui atos do Ministério Público, uma vez que até atos de ministros de Estado e do Presidente da República podem ser submetidos ao controle de legalidade pelo Poder Judiciário. Ao receber a queixa subsidiária em casos de arquivamento de inquérito com indícios de crime e autoria, o Judiciário não está revisando um ato discricionário, mas sim exercendo controle de legalidade.
A definitividade do arquivamento, se admitida, conferiria jurisdição a um órgão desprovido de função judicante, contrariando o princípio constitucional da separação dos poderes. O Ministério Público não possui poder jurisdicional para decidir, de forma definitiva, sobre a aplicação da lei. Essa competência pertence ao juiz. Não se pode afastar da apreciação judicial a lesão a direito.
O artigo 29 do CPP
O artigo 29 do Código de Processo Penal limita-se a prescrever: será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal (…). Logo, pouco importa que tenha ou não havido arquivamento do inquérito. Se a ação não foi intentada, cabível é a ação privada. A lei não diz se não for providenciado o arquivamento no prazo legal, caberá a ação privada. Refere apenas que cabe a queixa subsidiária se a ação pública não for proposta no prazo legal. Se o MP providencia o arquivamento, não está proposta a ação e viável é a ação privada subsidiária. A interpretação restritiva do direito da vítima – e extensiva da norma jurídica – realizada pelo Supremo Tribunal Federal, negando o cabimento da queixa subsidiária em caso de arquivamento, conflita com cláusulas pétreas constitucionais, especialmente com o artigo 5º, inciso XXXV, que assegura que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, e com o artigo 5º, inciso LIX, que prevê expressamente a ação penal privada subsidiária. Alargar o significado da literalidade do dispositivo é inadmissível, visto que realiza interpretação extensiva para restringir direito fundamental.
O princípio acusatório e a natureza da ação subsidiária
O princípio acusatório exige que alguém promova a acusação no processo penal, mas não implica exclusividade do Ministério Público na propositura de ações. Segundo o artigo 129, inciso I, da Constituição Federal, é função institucional do MP promover, privativamente, a ação penal pública. Contudo, a ação privada subsidiária, por sua própria natureza, é uma ação privada e, portanto, não se submete à exclusividade do MP. Trata-se de um direito fundamental e uma cláusula pétrea.
A interpretação desse direito deve seguir o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, valorizando sua aplicação ampla e prática. Alargar norma de máxima efetividade para restringir direito fundamental constitui claro equívoco que colide com princípios da ciência da interpretação.
Incentivo ao Sistema Acusatório
Visitando a história do processo penal, é possível verificar que a acusação realizada por órgão oficial é típica do processo inquisitivo, enquanto aquela exercida por particular constitui característica do processo acusatório.
Considerado esse histórico, a viabilidade da ação penal privada nos delitos de ação pública reforça o princípio acusatório. E há, inclusive, razões práticas para isso: ninguém conhece e defende melhor os próprios interesses do que o ofendido.
Enquanto o Ministério Público desempenha funções diversificadas, inclusive na jurisdição civil, o procurador do ofendido tem como única finalidade a proteção e defesa dos direitos de seu cliente. No caso de crimes praticados contra particulares, a representação judicial é realizada por seu defensor. Nos cometidos contra a União, os Estados e Municípios, a defesa e a representação em juízo cabe àqueles que possuem como função exclusiva e especializada no exercício dos direitos desses entes: o Advogado da União, o Procurador do Estado e o Procurador do Município. Com essa especialização, é evidente que tais profissionais, públicos ou particulares, são os mais indicados para atuar na defesa dos interesses de quem representam, seja em juízo ou fora dele.
Poder Inquisitivo sem Controle
A atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que serve de guia para as decisões dos demais Tribunais e juízes de primeira instância, mantém o Ministério Público, pressupondo-o infalível, como autoridade inquisitiva das ações penais. Pressupõe sua superioridade absoluta e infalível, como se humano não fosse e sujeito a falhas que qualquer pessoa comum pratica. Interpretação equivocada do fato e suas circunstâncias, equívoco na avaliação da prova, interpretação imprópria da lei, investigação preliminar incompleta, excesso de trabalho, preconceitos particulares ou ideologia, o membro do MP está sujeito a todos esses desacertos, ou não seria um de nós.
Esse poder incontestável do Ministério Público contraria a lógica do sistema e distorce o princípio acusatório. Nada pode ser feito contra suas decisões definitivas. Ao ofendido resta a imobilidade passiva, tolhendo-lhe garantias constitucionais. Diante do erro, sofre, espera, busca, e não encontra no sistema penal uma porta aberta para seu direito.
O juiz, não concordando com o arquivamento, pode remeter os autos ao Procurador-Geral, consoante assentado na ADI 6.298/2019, que lançará decisão definitiva, ou seja, o MP é juiz de suas próprias decisões. Permitir o arquivamento definitivo sem controle judicial é conceder ao Ministério Público um poder discricionário que a lei expressamente lhe nega.
A evolução legislativa e o contexto constitucional
Embora a parte geral do Código Penal tenha sido reformada pela Lei n.º 7.209/1984, a redação do §3º do artigo 100 do CP manteve praticamente a mesma essência do artigo 29 do CPP: “a ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal”.
A Constituição de 1988, ao consagrar o inciso LIX do artigo 5º, reproduziu essa previsão. O texto constitucional poderia ter optado por estabelecer que a ação privada seria cabível apenas quando o arquivamento não fosse providenciado, mas manteve a ausência de denúncia como o ponto central, conforme dispositivos legais anteriores.
Concluindo
Novos argumentos e fundamentos poderiam ser examinados com mais profundidade. Contudo, para não alongar em demasia a exposição, é necessário destacar alguns pontos adicionais que reforçam a possibilidade de ação penal privada subsidiária, mesmo em casos de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público no prazo da lei.
Os princípios da transparência e da imparcialidade determinam que o arquivamento de inquérito, mesmo dentro do prazo legal, seja passível de controle. Essa medida garante a transparência e evita decisões arbitrárias ou influenciadas por fatores externos, como erros de avaliação. A possibilidade da queixa subsidiária restaura o equilíbrio e fortalece o sistema acusatório. Além disso, o controle exercido pelo Judiciário, ao admitir a queixa-crime subsidiária, reforça a legalidade das ações do Ministério Público.
A negativa de ação subsidiária em casos de arquivamento priva a vítima de acesso à justiça, comprometendo a proteção de seus direitos individuais. Por outro lado, o controle judicial não enfraquece o Ministério Público; ao contrário, protege a integridade do sistema penal, evita injustiças e assegura a harmonização entre os poderes.
Por fim, como já afirmado, a ação penal privada subsidiária, garantida pelo artigo 5º, inciso LIX, da Constituição, representa uma manifestação do direito fundamental de acesso à justiça. Uma interpretação restritiva desse direito, ampliando a norma respectiva, ao excluir situações de arquivamento, compromete sua plena efetividade. Contraria o princípio constitucional previsto no artigo 5º, inciso XXXV, que garante que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Conclui-se que a ação penal privada subsidiária é cabível mesmo diante do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público dentro do prazo legal. Uma interpretação restritiva afronta dispositivos constitucionais e legais, comprometendo a efetividade dos direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica.
Denúncia omissa quanto a fatos ou indiciados:
Se o promotor denuncia sem incluir alguns indiciados ou sem imputar determinados fatos, cabe, em relação aos indiciados e fatos omitidos, ação privada subsidiária? Entendemos que não. A omissão se equipara a pedido de arquivamento em relação aos indiciados e fatos omitidos (pedido de arquivamento implícito).
Doutrina
Márcio Adriano Anselmo: Reflexões sobre a (in)ação penal e a ação subsidiária. Conjur.
Meirelles Medeiros. Flavio e Luciano, Pablo Bezerra: Queixa subsidiária e controle do arquivamento de inquéritos no STF. Conjur.
Perdão, perempção, renúncia e decadência
Inadmissibilidade do perdão e da perempção
O perdão e a perempção não são admissíveis na ação penal privada subsidiária, pois que esses dois institutos só se aplicam aos crimes em que somente se procede mediante queixa (artigos 105 do CP e 60 do CPP).
Admissibilidade da renúncia
O artigo 104 do CP diz que o direito de queixa não pode ser exercido quando renunciado. Como o artigo 104 do CP não distingue a queixa proposta nos crimes de ação privada da ofertada nos crimes de ação pública, a renúncia se aplica a ambos os casos.
Admissibilidade da decadência
O ofendido ou seu representante decai do direito de queixa se não o exercer no prazo de seis meses contado do dia em que se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia (artigo 38 do CPP).
O Ministério Público e a queixa subsidiária
A atuação do MP
Oferecida a queixa subsidiária, cabe ao MP aditá-la, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.
O não aditamento. Consequências
O não aditamento por parte do MP significa apenas que ele nada tem a retificar ou complementar. O silêncio, sem o repúdio, significa que o MP concorda com os termos da queixa oferecida.
O repúdio. Consequências
No caso de repúdio à queixa subsidiária por parte do MP, tem-se defendido que a ação não pode ter sequência, salvo se for aplicado, por extensão, o preceito do artigo 28, e outro promotor for designado para oficiar no feito. Não concordamos com essa posição. Essa concepção transforma em letra morta a regra do presente artigo 29 do CPP, segundo a qual cabe ação privada nos crimes de ação pública quando não for intentada no prazo legal. Se o MP expressamente repudia, sem oferecer denúncia substitutiva – e, no caso de repúdio, ele não está obrigado a oferecer denúncia substitutiva –, compete ao juiz decidir se recebe ou não a queixa.
Oferecimento de denúncia substitutiva
Repudiando a queixa substitutiva, o MP pode oferecer ou não a denúncia substitutiva. Não oferecerá se entender que não estão presentes os pressupostos do poder-dever de denunciar. Oferecerá se entender que sim, que estão presentes os pressupostos do poder-dever de denunciar, e a queixa-crime, por razões diversas, não atende a requisitos de peça acusatória inicial de processo criminal. Caberá ao magistrado decidir se recebe a queixa-crime ou a denúncia substitutiva. Consoante a tese 811, com repercussão geral, proferida no processo ARE 859251, o ajuizamento da ação penal privada pode ocorrer após o decurso do prazo legal, sem que seja oferecida denúncia, ou promovido o arquivamento, ou requisitadas diligências externas ao Ministério Público. Diligências internas à instituição são irrelevantes; II – A conduta do Ministério Público posterior ao surgimento do direito de queixa não prejudica sua propositura. Assim, o oferecimento de denúncia, a promoção do arquivamento ou a requisição de diligências externas ao Ministério Público, posterior ao decurso do prazo legal para a propositura da ação penal não afastam o direito de queixa. Nem mesmo a ciência da vítima ou da família quanto a tais diligências afasta esse direito, por não representar concordância com a falta de iniciativa da ação penal pública. Segundo referida tese, o oferecimento da denúncia não afasta o direito de queixa. Significa que está correto o entendimento de que o juiz está livre para decidir entre a queixa e a denúncia, tendo em conta que o direito de queixa persiste existindo mesmo com o oferecimento posterior da denúncia. Optando pelo recebimento da denúncia quer nos parecer que o acusador privado passa a figurar nos autos como assistente da acusação, se assim o desejar.
Em resumo
Se o MP silencia (não aditando), é porque concorda com os termos da queixa; se adita, é porque concorda, completando ou retificando parcialmente a queixa; se repudia, sem oferecer denúncia substitutiva, é porque não concorda com a propositura da ação penal – repúdio esse que não vincula o juiz, e que decidirá se recebe ou não a queixa -; se repudia e oferece denúncia substitutiva, é porque concorda com a propositura da ação penal, mas não se satisfaz com os termos da queixa-crime, sendo que, neste caso, não há norma que tolha a liberdade do juiz de decidir qual inicial acusatória receberá.
Nulidade
A intervenção do MP em todos os termos da ação intentada pela parte ofendida nos crimes de ação pública (ação privada subsidiária) é obrigatória, sob pena de nulidade (artigo 564, inciso III, letra d).
Retomando a ação como parte principal
Na ação penal iniciada mediante queixa substitutiva, o Ministério Público só retoma a ação como parte principal no caso de negligência do querelante (fato esse que depende de reconhecimento judicial a requerimento do MP).
Jurisprudência
Pedido de arquivamento: Diante do arquivamento judicial levado a efeito a requerimento do MP não cabe queixa subsidiária (RT 597/421). No mesmo sentido : STF, RT 653/398.
Denúncia omissa: Se a denúncia, inobstante oferecida e recebida, acolhe apenas em parte a representação, sem pleitear, fundamentadamente, seu arquivamento quanto às demais infrações nela inseridas, cabível é a queixa-crime por parte do representante (RT 627/316).
Requerimento de diligência desnecessária: Não oferecida a denúncia no prazo legal, em virtude de requerimento de diligência desnecessária, cabível é a ação penal privada (TASP, RT 643/306).