Art. 74. A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri.
§ 1o Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos artigos 121, §§ 1o e 2o, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados. (Redação dada pela Lei no 263, de 23/2/1948.)
§ 2o Se, iniciado o processo perante um juiz, houver desclassificação para infração da competência de outro, a esse será remetido o processo, salvo se mais graduada for a jurisdição do primeiro, que, em tal caso, terá sua competência prorrogada.
§ 3o Se o juiz da pronúncia desclassificar a infração para outra atribuída à competência de juiz singular, observar-se-á o disposto no artigo 410; mas, se a desclassificação for feita pelo próprio Tribunal do Júri, a seu presidente caberá proferir a sentença (artigo 492, § 2o).
Leis de organização judiciária
Leis de organização judiciária e competência pela natureza da infração: Pelo presente dispositivo, as leis de organização judiciária estão autorizadas a estabelecer normas de competência tendo em conta a natureza da infração, ou seja, o tipo de delito, o tema do delito. Essas normas podem criar varas especializadas para o processo e julgamento de determinados delitos, por exemplo, violência doméstica, delitos de trânsito, crimes contra o sistema financeiro, organização criminosa, drogas, crimes financeiros, crimes contra menores, crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.
Vara privativa criada por lei estadual não altera lei de processual: “A existência de vara privativa, instituída por lei estadual, não altera a competência territorial resultante das leis de processo” – Súmula no 206 do STJ. Assim, dando exemplo, a criação de vara especializada em drogas na comarca da capital do estado não subtrai a competência das demais comarcas para processar e julgar esses delitos quando ocorrerem em suas jurisdições.
Jurisprudência
Validade da interceptação telefônica decretada pelo Juízo da Vara Central de Inquéritos: É válida a interceptação telefônica decretada pelo Juízo da Vara Central de Inquéritos Criminais, mesmo que não venha a ser competente para apreciar futura ação penal (HC 126.536, rel. min. Teori Zavascki, julgamento em 1º-3-2016, DJE de 28-3-2016 – Informativo 816, Segunda Turma).
Competência privativa do Tribunal do Júri
Ressalva à competência privativa do Tribunal do Júri: As leis de organização judiciária podem regular a competência pela natureza da infração, porém fica ressalvada a competência privativa do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, estipulados nos artigos 121, §§ 1o e 2o, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal (homicídio doloso, induzimento, instigação ou auxílio por terceiro a suicídio, infanticídio, aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante, aborto provocado com o consentimento da gestante).
Estado puerperal no banco do réu: Há ocasiões em que o legislador penal revela um obscurantismo ilimitado. O estado puerperal é aquele que ocorre quando a criança está nascendo, momento em que a mãe passa por intensas alterações psicológicas. Há queda drástica de níveis hormonais, alterações químicas a nível cerebral que não raro subtraem a razão da parturiente, total ou parcialmente. Se a mãe nessas condições tira a vida do filho, isso é fato para ser julgado por juízes leigos? Mais: é fato para ser submetido à publicidade máxima do julgamento popular do Tribunal do Júri? É um tema que precisa ser revisto pelo legislador.
Aborto com consentimento da gestante julgada pelo povo: Nenhuma mulher se orgulha de abortar. Ao contrário, boa parte das mulheres que passam por essa experiência traumática sentem culpa e sofrem por isso. São julgadas por elas próprias. Submetê-las a novo julgamento é uma perversidade e mais ainda se for de forma pública, vexatória e humilhante. Números do Ministério da Saúde mostram que as internações por complicações em razão da interrupção da gravidez chegaram a 123.312 no ano de 2016 (Estadão, 17 de dezembro de 2016). Morrem principalmente as mulheres pobres, que não têm condições de recorrer a clínicas particulares de aborto e que não podem se socorrer do Sistema Único de Saúde para realizar a intervenção. Morrem porque não podem ser atendidas decentemente. Morrem porque é crime abortar. Um problema de saúde pública é tratado pela segurança pública. Mais um equívoco legislativo. Quem socorrer o legislador é o policial, pois aquele que exerce essa profissão costuma amealhar uma larga e rica experiência de vida. O policial sabe onde não ver.
Tribunal do Júri Federal: A Justiça Federal também é dotada de Tribunal do Júri. Dispõe o Decreto-lei no 253, de 28 de fevereiro de 1967, em seu artigo 4o, que nos crimes de competência da Justiça Federal a serem julgados pelo Tribunal do Júri será obedecido o disposto na legislação processual, cabendo a sua presidência ao juiz a que competir o processamento da respectiva ação penal. Nas seções judiciárias onde houver mais de uma vara competente em matéria criminal, a lista dos jurados será organizada anualmente por um dos juízes mediante rodízio, observada a ordem numérica. Haverá competência do Tribunal do Júri Federal em se tratando, por exemplo, de crime doloso contra a vida praticado por servidor público federal ou contra ele, sempre no exercício da função. Exemplo um: agente de polícia federal mata um foragido em perseguição. Exemplo dois: servidor público encarregado de sindicância administrativa é morto em razão das investigações que realizava.
Ainda sobre o Tribunal do Júri: Ver os subtítulos Competência mínima e crimes conexos, Competência do Tribunal do Júri quando a vítima for civil e o acusado for militar do estado, Competência para o julgamento de latrocínio, O Tribunal do Júri e o foro por prerrogativa de função, todos no título Tribunal do Júri, em comentários ao artigo 69 do CPP.
Tribunal do Júri e delitos conexos: Ver o título Tribunal do Júri e conexão ou continência em comentários ao artigo 78.
Desclassificação pela pronúncia e pelos jurados
Desclassificação pela pronúncia, providências e delitos conexos: Com a sentença de pronúncia, o acusado é enviado a julgamento pelo júri popular. Essa sentença representa uma aceitação da viabilidade ou da razoabilidade da tese acusatória, não mais que isso. Finaliza a primeira fase do procedimento do júri (fase instrutória) e dá início à segunda (prévia ao julgamento). Nessa decisão, o magistrado pode desclassificar a infração imputada, ou seja, decidir que não se trata de crime contra a vida, e, por conseguinte, a competência para o julgamento é deslocada do Tribunal do Júri para o juiz singular. Nos termos do artigo 419 do CPP, isso significa que o juiz se convence da existência de crime diverso dos referidos no § 1o do art. 74 (crimes dolosos contra a vida) e, não sendo competente para o julgamento, remete os autos ao juiz que o seja, juntamente com os autos dos delitos conexos (se houver). Assinale-se que a referência feita ao artigo 410 no parágrafo 3o do presente artigo 74 encontra-se desatualizada e deve ser entendida como sendo ao artigo 419 do CPP.
Desclassificação pelo Tribunal do Júri, providências e delitos conexos: Se os jurados, em votação secreta, desclassificarem a infração penal (entenderem não haver delito doloso contra a vida), o presidente do tribunal, ao contrário do que se verifica quando a desclassificação se dá na fase da pronúncia, está autorizado a proferir sentença. Havendo delitos conexos, o presidente deverá julgá-los também (artigo 492, parágrafo 2o). Mas, note-se bem, isso quando a desclassificação é realizada pelos jurados. Caso os jurados, em vez de desclassificar o crime doloso contra a vida, lancem uma decisão absolutória em relação a esse delito, deverão prosseguir julgando os delitos conexos (artigo 78 do CPP).
Doutrina:
Ludmila Antunes Resende: A absolvição sumária na primeira fase do júri. Âmbito Jurídico. O juiz somente desclassificará a infração penal, cuja denúncia foi recebida como delito doloso contra a vida, se a certeza for cristalina quanto à ocorrência de crime diverso daqueles previstos no art. 74, § 1º, do CPP. Registra-se que, mesmo que magistrado do sumário decida pronunciar o réu, levando-o a plenário para julgamento pelo conselho de sentença ainda existe a possibilidade da desclassificação. Isso se dá quando os jurados, em plenário, através de votos, entenderem que o crime em análise não é doloso contra a vida, atestando, assim, a incompetência do Tribunal do Júri para julgamento.
Jurisdição mais graduada
Jurisdição mais graduada e perpetuação da competência: Sobre o tema, Renato Brasileiro Lima, em comentários ao presente dispositivo, afirma com razão: “O art. 74, §2°, do CPP, autoriza, pelo menos em tese, a perpetuação da competência da jurisdição mais graduada. Ocorre que não há, no ordenamento jurídico atual, nenhuma hipótese de fixação da competência da jurisdição mais graduada levando-se em consideração a natureza da infração penal. Como observam Demercian e Maluly (Curso de processo penal, op. cit. p. 191-192), ‘a prorrogação de competência não tem aplicabilidade no Brasil quando for fixada em razão da matéria. De fato, não existe em nossas Leis de Organização Judiciária determinação da competência em razão da matéria entre juízes de diferentes graus de jurisdição, ou seja, não há qualquer lei que diga, por exemplo, incumbir originariamente ao Tribunal de Justiça do Estado o julgamento de crimes contra a fé pública, patrimônio, administração etc. A competência originária dos juízes de maior graduação dá-se, sempre, em razão da pessoa, ou por prerrogativa de função”(Lima, Renato Brasileiro. Código de Processo Penal Comentado. 2ª. Ed. Editora Juspodivm: 2017).