Art. 474-A. Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas: (Incluído pela Lei nº 14.245, de 2021)
I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; (Incluído pela Lei nº 14.245, de 2021)
II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas. (Incluído pela Lei nº 14.245, de 2021)
Proteção da vítima e da testemunha e o confronto com o direito de defesa
Proteção da vítima e da testemunha
Os sujeitos processuais devem, invariavelmente, garantir que as manifestações realizadas estejam estritamente vinculadas aos fatos objeto de apuração, vedando-se qualquer alusão a circunstâncias que extrapolem os limites relativos à imputação criminal. O dispositivo, portanto, não só preserva a dignidade da vítima como também previne a reiteração do trauma vivenciado. A dignidade da testemunha está igualmente protegida, conforme o inciso II deste dispositivo, que faz referência expressa a ela, em combinação com a expressão ‘em especial’ contida no caput.
O dispositivo legal em questão exige interpretação sistemática e restritiva.
Salvaguarda dos Direitos Fundamentais
Uma leitura literal, desatenta ao contexto normativo e constitucional, poderia suscitar riscos aos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito, em especial, aos princípios da ampla defesa e da segurança jurídica. Um zelo excessivo pela proteção da vítima, sem a devida ponderação dos direitos do réu, poderia resultar em cerceamento de defesa, acarretando nulidade absoluta do processo.
A proteção da vítima, embora imprescindível no contexto processual penal, não pode servir de pretexto para a realização de injustiças que prejudiquem a liberdade de inocentes. Vale ressaltar que as maiores fontes de erro judiciário se encontram, frequentemente, nos delitos que envolvem acusações de crimes contra a dignidade sexual. Tais acusações, pela sua natureza delicada e emocionalmente carregada, demandam um exame rigoroso, a fim de evitar que a proteção legítima à vítima resulte em condenações indevidas.
O processo penal, enquanto instrumento de garantia dos direitos fundamentais, não pode se afastar de uma de suas finalidades primordiais: a máxima aproximação da verdade real. A veracidade das acusações deve ser aferida com a devida cautela, assegurando-se que o direito de defesa não seja sacrificado em nome de uma proteção exacerbada da vítima. A justiça, para ser plena, deve equilibrar a proteção à vítima com a garantia de que a verdade prevaleça e que inocentes não sejam injustamente condenados.
ADPF 1107. Exame crítico.
Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, com efeito vinculante, ficou decidido: i) conferir interpretação conforme à Constituição à expressão elementos alheios aos fatos objeto de apuração posta no art. 400-A do Código de Processo Penal, para excluir a possibilidade de invocação, pelas partes ou procuradores, de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento, nos termos dos arts. 563 a 573 do Código de Processo Penal; ii) vedar o reconhecimento da nulidade referida no item anterior na hipótese de a defesa invocar o modo de vida da vítima ou a questionar quanto a vivência sexual pregressa com essa finalidade, considerando a impossibilidade do acusado se beneficiar da própria torpeza; iii) conferir interpretação conforme ao art. 59 do Código Penal, para assentar ser vedado ao magistrado, na fixação da pena em crimes sexuais, valorar a vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida; e iv) assentar ser dever do magistrado julgador atuar no sentido de impedir essa prática inconstitucional, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal. Por fim, determinou o encaminhamento do acórdão deste julgamento a todos os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais do país, para que sejam adotadas as diretrizes determinadas nesta arguição. Tudo nos termos do voto da Relatora. Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário, 23.5.2024.
As decisões vinculantes são constituídas por palavras, que, assim como as leis, são símbolos. Esses símbolos carregam significados que, inevitavelmente, tal como ocorre com as demais normas jurídicas — sendo as decisões judiciais também normas jurídicas —, necessitam de interpretação. Assim como na interpretação do dispositivo em exame, a interpretação dessa decisão deve ser restritiva, ou seja, aplicável apenas a circunstâncias que não estejam relacionadas ao fato imputado objeto da acusação e a avaliação da prova.
A realidade fática não é um fenômeno isolado, mas sim a culminação de uma série de eventos antecedentes — as concausas — que frequentemente possuem íntima relação com o fato delituoso. Não há presente sem vínculos no passado. Cada segundo do presente é um espelho que reflete as sombras do passado. Se o histórico pregresso da vítima ou da testemunha suscita dúvidas razoáveis quanto à veracidade de suas declarações, esses elementos devem ser objeto de exame no processo. A defesa tem o direito, garantido constitucionalmente, de investigar e produzir provas que elucidem tais questões e, também, referir tais provas no curso do processo.
Um dos papéis fundamentais das partes no processo penal, sob pena de comprometer princípios essenciais, é o direito de produzir e avaliar provas. Em determinados casos, essa avaliação pode incluir, ainda que de forma não determinante, informações sobre a dignidade da vítima ou da testemunha. Portanto, quando tais informações forem pertinentes, estiverem relacionadas ao fato em apuração e forem relevantes para a avaliação das provas, o inciso II não se aplica.
E a paridade de armas?
A proibição de mencionar fatos que questionem a dignidade da vítima viola o princípio da paridade de armas. Se a dignidade da vítima é considerada inviolável, a do acusado, em favor de quem milita o princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, também deve ser protegida. Se a defesa não dispõe do direito de produzir provas e fazer alegações relativas à dignidade da vítima, e da testemunha para valorar a prova, a acusação não possui, por igual, o direito de fazer o mesmo em relação ao acusado. Para ser mantida a congruência, a acusação não pode referir atos antecedentes praticados pelo acusado que sejam ofensivos à sua dignidade, qualquer histórico de sua indignidade fica vedado, seus antecedentes criminais ficam proibidos de serem referidos. É apenas paridade de armas, ora.
A verdade não pode ser repartida para fins de conhecimento dos julgadores. É sabido que há crimes em que comportamentos indignos da vítima, e não necessariamente relacionados com sexualidade, contribuem para a realização da ação criminosa, o que pode, dependendo das circunstância, minorar a responsabilidade do acusado, o que influencia na aplicação da pena. A participação da vítima do delito é fato que não pode ser excluído do mundo e da história.
Um dos papéis fundamentais das partes no processo penal, sob pena de comprometer princípios essenciais, é o direito de produzir e avaliar provas. Em determinados casos, essa avaliação pode incluir, ainda que de forma não determinante, informações sobre a dignidade da vítima ou da testemunha. Portanto, quando tais informações forem pertinentes, estiverem relacionadas ao fato em apuração e forem relevantes para a avaliação das provas, não podem ser relegadas ao desconhecimento.
A proibição de mencionar fatos que questionem a dignidade da vítima viola o princípio da paridade de armas. Se a dignidade da vítima é considerada inviolável, a do acusado, em favor de quem milita o princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, também deve ser protegida. Se a defesa não dispõe do direito de produzir provas e fazer alegações relativas à dignidade da vítima, a acusação não possui, por igual, o direito de fazer o mesmo em relação ao acusado. A ser mantida a congruência, a acusação não pode referir atos antecedentes praticados pelo acusado que sejam ofensivos à sua dignidade, qualquer histórico de sua indignidade fica vedado, seus antecedentes criminais ficam proibidos de serem referidos. É apenas paridade de armas, ora.
O direito de defesa deve ser respeitado, em virtude de que ele deve ser exercido com a amplitude constitucional. Todos os fatos relacionados ao crime imputado na denúncia, sejam diretos ou indiretos, sobre os quais possa incidir a lei penal, são de interesse do processo, inclusive aqueles que afetam a credibilidade dos depoimentos, visto que o processo é uma reconstituição histórica que depende da reconstrução dos fatos passados por meio de provas, reconstituição essa sobre a qual incidirá, ao final, a lei penal. A avaliação das provas não é livre quando se impõe a parcialidade em seu exame. A produção de provas é um direito fundamental de ambas as partes, refletindo um compromisso com os direitos humanos e com o Estado de Direito. O moralismo e o populismo, quando inseridos no processo, comprometem o contraditório e a ampla defesa, assegurados pela Constituição Federal do Brasil (artigo 5º, incisos LIV e LV, da CF). Nenhuma das partes pode ser colocada em desvantagem injusta. Acusado, vítima e testemunha não devem ser ofendidos? Sim. Fatos essenciais ao julgamento da causa e a avaliação da prova estão proibidos de serem investigados, examinados e referidos? Não.
O direito de defesa deve ser respeitado, em virtude de que ele deve ser exercido com a amplitude constitucional. Todos os fatos relacionados ao crime imputado na denúncia, sejam diretos ou indiretos, sobre os quais possa incidir a lei penal, são de interesse do processo, inclusive aqueles que afetam a credibilidade dos depoimentos, visto que o processo é uma reconstituição histórica que depende da reconstrução dos fatos passados por meio de provas, reconstituição essa sobre a qual incidirá, ao final, a lei penal. A avaliação das provas não é livre quando se impõe a parcialidade em seu exame. A produção de provas é um direito fundamental de ambas as partes, refletindo um compromisso com os direitos humanos e com o Estado de Direito. O moralismo e o populismo, quando inseridos no processo, comprometem o contraditório e a ampla defesa, assegurados pela Constituição Federal do Brasil (artigo 5º, incisos LIV e LV). Nenhuma das partes pode ser colocada em desvantagem injusta. Acusado, vítima e testemunha não devem ser ofendidos? Sim. Fatos essenciais ao julgamento da causa e a avaliação da prova estão proibidos de serem investigados, examinados e referidos? Não