Flavio Meirelles Medeiros

Código de Processo Penal Comentado | Flavio Meirelles Medeiros

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Edição 2024

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Introdução e Teoria Geral – Breve Teoria Geral do Processo Penal

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INTRODUÇÃO

Nossa Breve Teoria Geral do Processo Penal, prefaciada pelo professor Celso Delmanto, antecedida por uma trilogia lançada em 1984, foi publicada unificada em 1987 pela Editora AIDE com o título Manual do Processo Penal. Antes do lançamento da trilogia, publicamos pela Editora Síntese o livro Nulidades do Processo Penal, escrito durante o último ano da Faculdade de Direito. Foi o estudo da teoria geral do processo que nos proporcionou conhecimentos suficientes para melhor compreender e interpretar a norma processual penal. Sem o conhecimento da TGPP é impossível interpretar satisfatoriamente a lei processual penal. Aquele que centraliza seus estudos em cursos de direito processual penal ou em jurisprudência, sem se suprir com TGPP e boas obras de introdução ao estudo da ciência do direito, saberá dizer das correntes e subcorrentes jurisprudenciais, das teorias doutrinárias sobre temas diversas, mas será incapaz de criar uma tese jurídica original e bem fundamentada, por mais simples que ela possa ser, ou aparente ser. Muito nos identificamos com a frase dita por Celso Delmanto naquele prefácio: “Tratando o tema de forma elogiavelmente descomplicada, Flavio Meirelles Medeiros não só torna fácil o entendimento das noções por ele expostas, como também revela o quanto é atraente o estudo do Direito Processual Penal.” A simplicidade e a objetividade representam valores constantemente buscados em nossos textos. Schopenhauer divide as formas de escrever em três: 1. das sentenças curtas, que significam mais do que dizem; 2. a que recorre a uma torrente de palavras, com insuportável prolixidade; 3. o estilo científico e profundo, no qual o leitor é martirizado pelo efeito narcótico de períodos longos e tortuosos. Afirma que a arte de escrever consiste em resumir muitos pensamentos em poucas palavras, e não o contrário, muitas palavras comunicando poucos pensamentos. O advogado Nadir Mazloum sintetizou, em artigo publicado no CONJUR, o que pensamos sobre o assunto afirmando que os três principais defeitos da escrita são interdependentes e se mantêm reciprocamente: para ser obscuro, deve-se ser, ao mesmo tempo, pedante e prolixo; ao ser prolixo, torna-se obscuro e pedante; e, ao ser pedante, torna-se, fatalmente, prolixo e obscuro. Nosso objetivo é transmitir o que pensamos da forma mais simples possível para nos fazer entender por um maior número de pessoas. Por isso, utilizamos sentenças curtas e damos preferências às palavras conhecidas. Não dizemos, efetivamente, tudo que gostaríamos de dizer. Se tentássemos fazer isso, perderíamos, além de clareza e objetividade, nossa própria paciência. Existem ideias implícitas em certas noções que expomos, as quais o leitor pode deduzir. Se formos claros e conseguirmos contribuir para construir um sistema repressivo penal um pouco melhor do que o existente, já nos damos por satisfeitos. Talvez seja demais dizer, mas, em nossa idade, cremos, é a pretensão mais apropriada que podemos alimentar.

Prefácio do Professor Celso Delmanto

Há muitos anos, verifica-se, entre nós brasileiros, um lamentável descompasso entre as pesquisas voltadas ao Direito Processual Penal e aquelas dedicadas ao Direito Processual Civil.

Estas últimas recebem a preferência dos estudiosos, enquanto as outras ficam, ao menos sob o aspecto quantitativo, injustamente relegadas a segundo plano.

Não quero dizer com isso que inexistam processualistas penais de valor entre nós. São eles, porém, em número muito menor do que seu colegas civis, em vista, exatamente, da desproporção entre os que se dedicam ao cultivo de um e de outro desses dois campos.

Assim, temos uma literatura processual penal no Brasil que é muito pobre em número, mas dotada de vários valiosos trabalhos.

Seria fácil sugeri as mais diversas causas para tentar explicar essa desigualdade, embora, na realidade, não exista uma só que a possa, validamente, justificar.

Por isso, já seria motivo de satisfação para mim encontrar um autor, ainda jovem, totalmente dedicado ao estudo do Direito Processual Penal e sincero adepto da escola dualista.

Não é essa, porém, a razão que me leva a escrever estas linhas, à guisa de preâmbulo para o livro Noções Iniciais de Direito Processual Penal: o trabalho é sério, a linguagem é clara, a didática é objetiva.

Sem dificultar o leitor com a enumeração de sucessivas correntes e subcorrentes doutrinárias nem carregar a obra de copiosa bibliografia, o autor alcança, plenamente, o seu alvo – expresso no próprio título do livre – de transmitir as noções básicas da nobre disciplina.

Tratando o tema de forma elogiavelmente descomplicada, Flavio Meirelles Medeiros não só torna fácil o entendimento das noções por ele expostas, como também revela o quanto é atraente o estudo do Direito Processual Penal.

Por isso, espero que a leitura destas noções iniciais despertem outras vocações e atraia mais interessados para a pesquisa de uma matéria que possui tanta importância, mas que se encontra tão abandonada.

E fico com a convicção de que o jovem escritor permanecerá fiel à sua firme vocação dualista, dedicando-se, cada vez mais, ao estudo e à difusão do processo penal.

São Paulo, agosto de 1984.

Celso Delmanto*

* Filho mais velho do fundador Dante Delmanto, deu continuidade ao escritório. Durante 29 anos atuou, sempre na área criminal, em todas as Cortes do país. Dono de vasta cultura jurídica, grande poder de argumentação e escrita primorosa, seus arrazoados servem de modelo para as novas gerações. Profundo conhecedor da jurisprudência da Suprema Corte, obteve verdadeiras reviravoltas em causas aparentemente perdidas. Descobridor das lacunas de regimentos internos em favor de seus clientes, fez, em certa ocasião, com que o antigo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo alterasse o seu no ano seguinte. Foi um dos primeiros criminalistas a fazer uso do instituto da reclamação, em favor de um ex- Ministro de Estado, conseguindo com que o Supremo, por usurpação de sua competência, requisitasse o processo da 1ª Instância em que corria (http://www.delmanto.com/historia_celso_port.html).


TEORIA GERAL

Referir: MEDEIROS, Flavio Meirelles. Código de Processo Penal Comentado. https://flaviomeirellesmedeiros.com.br: 2019
ou
MEDEIROS, Flavio Meirelles. Manual do processo penal. Porto Alegre: AIDE, 1987

CAPÍTULO 1 – NOÇÕES DE DIREITO

No dia-a-dia

O despertador sacudiu-o de um sono profundo. Ficou alguns segundos olhando ao seu redor, tentando identificar na memória o eu e, no espaço, sua localização. O chuvisco monótono na rua dava ao início do dia uma promessa de paz.

Tinha de chegar no horário para bater o ponto. Preguiçosamente arrastou-se ao armário. Vestiu-se. Não muito tempo depois, na parada, esperava aquele o levaria ao local de trabalho.

Entrou no ônibus, pagou a passagem e tomou assento ao lado da janela. O veículo ia lento. Mais lento ainda em consequência das dezenas de semáforos que se sucediam. Eram as leis de trânsito que davam estabilidade à anarquia. Era o caos organizado e regulamentado.

Quando chegou na parada-destino, o suspiro que deu preencheu o espaço circundante e fez voltar para si a desaprovação de alguns e a solidariedade de outros passageiros.

Com passos rápidos, chegou ao trabalho. Esperava-o Siqueira, com um recado: “Roger, o Diretor está te chamando. Quer que vá imediatamente a seu gabinete”. Era o aviso, em um tom que não conseguia disfarçar um prazer maldoso.

Sentado em frente ao Diretor, esperava o término da conversa ao telefone, antevendo o que aconteceria. Ao final do telefonema o Diretor virou-se para ele e, com um ar reprovatório, disse:

– Novamente!
– Pois é…
– Não é possível! Que seja o último atraso!

Necessidade do direito

Onde está o homem travando relações sociais está, também, o direito. Nosso personagem acordou naquela hora em virtude das leis trabalhistas, pois não desejava ter seu salário reduzido. Vestiu-se para não sair nu à rua, ou seja, para não infringir a norma penal que tipifica “ato obsceno”. Pagou passagem em virtude de contrato civil de transporte. E chegou atrasado ao local de trabalho como decorrência dos semáforos, vale dizer, atrasou-se dado às leis de trânsito.

O homem só dispensa o direito quando isolado. Assim viveu Robinson Crusoé. Naquela ilha, ele nada devia a ninguém e de ninguém podia exigir. Não dependia de outros. Os limites de sua liberdade eram delimitados apenas pela natureza. Já em sociedade, o direito se apresenta como um requisito essencial. Onde há mais de uma pessoa, ocorrem relações. Relações econômicas, sociais, culturais, políticas. Na pluralidade, os indivíduos têm de dividir o trabalho para atingirem objetivos comuns de bem-estar e de desenvolvimento. É imprescindível uma organização com moldes estáveis. Sem estabilidade não existe segurança e sem segurança não há bem-estar. Em tempos passados, cumpria à religião assegurar a organização social. Hoje, menos devotos os homens, a função de dar estabilidade à organização pertence a um conjunto de normas impostas e cuja observância é exigida coativamente pelo Estado. Estas normas são o direito.

A expressão “direito”

A palavra direito é proveniente do verbo latino dirigere, que significa dirigir, endireitar. Etimologicamente traduz a idéia de regra, de direção, daquilo que é reto. Na França é droit, na Espanha, derecho, na Itália, diritto, e na Alemanha é recht.

Os romanos chamavam o direito de jus, e justitia representava uma qualidade de direito (GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução à ciência do direito. 7. ed. São Paulo, Forense, 1976, p. 71 ).

Na linguagem comum, direito é uma daquelas expressões a qual se concedeu inúmeras utilidades. Se presta para representar o lado do corpo normalmente mais hábil. Para adjetivar o homem e sua conduta. Homem honrado, franco, sincero. Conduta correta.

Entendido como ciência, direito é o conhecimento metódico e sistemático das normas que compõem o ordenamento jurídico.

Direito positivo é expressão utilizada para fazer frente ao direito natural. Foi criada com o advento do jusnaturalismo, para a ele se opor e dele se distinguir (GUSMÃO, Paulo Dourado de. opus cit. p. 76). O direito sob o aspecto positivo é o conjunto de normas do ordenamento jurídico e dos direitos subjetivos que delas resultam. Abrange o direito objetivo e o subjetivo.

Direito objetivo é o conjunto de normas que compõe o ordenamento jurídico e que brotam das fontes de direito. O direito objetivo, também chamado de direito normativo (norma agendi), visa regular a atividade humana em suas variadas expressões.

Direito subjetivo é um aspecto do direito objetivo. Não há direito subjetivo sem o objetivo, pois que aquele decorre deste. O direito subjetivo é a possibilidade de agir. Nasce quando ocorre no mundo material a hipótese prevista na norma.

Para melhor fixação de conceitos, e utilizando-se para isto o direito penal, já que nele estes conceitos possuem contornos mais nítidos, vejamos o que significam direito penal ciência, direito penal objetivo e direito penal subjetivo.

O conteúdo de direito penal ciência foi descrito pelo penalista Aníbal Bruno: “é aquela área do conhecimento que tem por fim a elaboração sistemática dos princípios que governam as normas penais. Ciência do direito penal é esta dogmática ou sistemática jurídico-penal que não esgota na pura indagação lógico-formal, mas que se alimenta da realidade social e dos aspectos fenomênicos do crime” (BRUNO, Aníbal. Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1978. tomo I. p. 40).

Já o direito penal objetivo é aquele complexo de normas que dão regulamentação ao direito de punir do Estado. Normas deste tipo são as que descrevem crimes, que cominam penas, que fazem previsão de causas extintivas de punibilidade, etc.

Direito penal subjetivo é ou o direito de punir do Estado ou o direito de não ser punido do cidadão. Aquele nasce com a prática de crime. Ocorrendo que “A” tire a vida de “B”, sem que sua conduta se dê em concorrência com causa excludente de antijuridicidade ou de culpa, surge para o Estado o direito penal subjetivo de punir “A”.

Por outro lado, o direito penal subjetivo de não ser punido, que sem muito rigor pode ser chamado de direito de liberdade, surge com o nascimento e subsiste enquanto o indivíduo não praticar fato definido como crime na lei penal.

O direito subjetivo supõe o direito objetivo, e vice-versa.

Dando continuidade a este estudo das formas pelas quais o direito é entendido, deparamo-nos com o chamado direito natural. A concepção de direito natural é antiga. Os romanos o entendiam como o direito comum a todos, homens e animais. Os escolásticos encontravam sua natureza na razão divina. Atualmente, o direito natural é mais comumente visto como “o conjunto de princípios impostos à legislação dos povos cultos, fundados na razão e na equidade, para que regulem e assegurem os direitos individuais, tais como os de vida, de liberdade, de honra e de todos os direitos patrimoniais, que asseguram a própria existência do homem” (PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. 4. ed. Rio de janeiro, Forense, 1975. Em Direito Natural).

Orlando Gomes, em sua obra “Introdução ao Direito Civil”, empresta ao direito natural algumas poucas linhas para dizer que ele se encontra fora das fronteiras do direito. Considera o direito natural, quando muito, um capítulo da Moral (GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1977. p. 18).

Interessa, ainda, a estas sumárias “noções”, fazer algumas considerações sobre as qualidades do direito, quais sejam, sua validade, vigência e exequibilidade

Direito válido é aquele que se encontra estabelecido legalmente. Ou seja, aquele que foi elaborado conforme as normas que regulamentam sua produção.

Vigência do direito é sua existência jurídica. A vigência é o tempo em que a norma se mantém produzindo efeitos jurídicos. Cessam a eficácia e a vigência da norma com a revogação.

Exequibilidade do direito é a possibilidade de colocá-lo em prática. Os mais diversos direitos assegurados aos presos pela Lei de Execuções penais são inexequíveis, em razão do Estado não prover os meios necessários ao exercício deles. São eles os direitos a assistência material, saúde, jurídica, educacional, social e religiosa. Em se tratando de direito penitenciário, o único exequível, é o direito do Estado de executar a pena.


CAPÍTULO 2 – DIREITO PROCESSUAL PENAL COMO RAMO DO DIREITO PÚBLICO

Finalidade da distinção

O direito é dividido em dois grandes ramos: o público e o privado. Alguns autores, como Gustavo Radbruch, entendem que estas categorias são apriorísticas do direito. Outros, e estes modernamente constituem a maioria, sustentam que a divisão é aceitável, apenas, em razão do aspecto técnico e didático (GOMES, Orlando. opus cit. p. 23).

A importância da distinção, do ponto de vista técnico, está em que os princípios que inspiram um ramo são diversos dos que integram o outro. Necessário determinar se a norma é de direito público ou privado para que se possa na sua interpretação e aplicação complementá-la com os princípios que lhe são apropriados.

Critérios de distinção

A doutrina é quase pacífica quando nega a possibilidade da identificação de um critério válido capaz de distinguir com certeza um ramo do outro. Em virtude desta dificuldade, Tornaghi anota que há quem negue valor à classificação e quem desautorize qualquer diferença entre os dois ramos do direito.

Em linhas gerais, estes são os critérios de distinção comumente propostos:

1º – o do interesse;
2º – o da natureza da relação;
3º – o do poder da vontade das partes sobre a norma.

Critério do interesse

A divisão do direito em público e privado pelo critério do interesse provém dos romanos. É de Ulpiano e encontra-se expressa nas Institutas de Justiniano: “Publicum just est quod ad statum rei romanae spectat; privatum quod ad singulorum utilitatum” (CRETELLA JUNIOR, J. Curso de direito romano. 5. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1973. p. 182). É um critério teleológico. O público tem por finalidade regular a organização da república romana ou da coisa romana, e o privado, a utilidade dos particulares.

Pelo critério do interesse, o direito público é formado pelas normas de interesse público, pelas que têm por escopo regular o interesse da coletividade; e o direito privado, pelas normas que interessam aos particulares.

Um dos estudiosos que se preocupou em definir interesse público foi o jurista Paulo Dourado Gusmão. Advertindo que a questão é de difícil solução, propôs algumas definições: é o interesse do Estado e das pessoas jurídicas de direito público, bem como o interesse de todos sem ser de nenhum em particular. É o interesse do Estados e das citadas pessoas, desde que ligado às funções, especificadas por lei, aos mesmos atribuídas pela legislação; do Estado como fisco; do Estado como garantidor da ordem pública; do Estado como organização, como promotor do bem de todos e do desfrute por todos dos bens comuns, enfim – prossegue Gusmão – o vinculado às funções, aos poderes e à competência estatais, previstos em lei, que, por lei, podem ser transferidas a outras pessoas jurídicas de direito público (GUSMÃO, Paulo Dourado de. opus cit. p. 182).

Críticas ao critério do interesse

Como os outros critérios, o do interesse não está isento de críticas (MAYNEZ, Eduardo Garcia, Introduccion al estúdio del derecho. 26. ed. México, Porrúa, 1977, p. 132.). A primeira que se faz é que a distinção é vaga porque vago é o conceito de interesse público. A segunda é que é inegável a existência de interesse público em todas as normas que compõem o ordenamento jurídico. No momento em que a norma é estatuída e assegurada pelo Estado, é porque há nela interesse público. Objetando o valor do critério do interesse, Garcia Maynez, com muita perspicácia, comentou que o mais grave da teoria se deve a esta propor um critério que pretende valor objetivo utilizando-se de uma noção essencialmente subjetiva. Ter interesse em algo – escreve o professor – significa atribuir valor ou importância à sua realização e disto resulta o interesse em elemento subjetivo (MAYNEZ, Eduardo Garcia, Introduccion al estúdio del derecho. 26. ed. México, Porrúa, 1977, p. 132).

Critério da natureza da relação

Mais recente, a teoria da natureza da relação jurídica para distinguir o ramo público do privado. Segundo esta doutrina, o direito é público quando regula uma relação de subordinação em que participa obrigatoriamente o Estado como parte. Não que baste a simples presença estatal na relação jurídica, visto que o Estado é parte em relações de direito privado quando se encontra em posição de igualdade com os outros sujeitos da relação. Segundo a tese, para que a relação jurídica seja pública e público o direito que a regula, é preciso que o Estado dela participe como Estado soberano munido de “imperium”.

Crítica ao critério da natureza da relação

A deficiência desta teoria está em que ela não esclarece suficientemente quais os parâmetros que devem ser considerados para que se determine se em uma relação há ou não a participação do Estado. Existe participação do Estado naquelas relações do direito de família em que está presente claramente o interesse público? Outra falha é a falta de um critério que estabeleça se a participação do Estado em uma relação se dá com ou sem soberania.

Critério do poder dispositivo sobre a norma. Crítica

Há, ainda, os que pretenderam diferenciar os dois ramos considerando o poder dispositivo das partes sobre a norma. Segundo estes, as normas de direito privado seriam aquelas que podem ser deixadas de lado na aplicação, quando as partes assim convencionarem. As de direito público seriam irrenunciáveis. O defeito desta doutrina é que muitas normas pertencentes ao direito privado não estão à disposição da vontade das partes quando da sua aplicação. E ocorre o mesmo com as de direito público, quando algumas estão à disposição. Desta segunda hipótese é exemplo o instituto do perdão, que afasta a aplicação da lei penal em certos crimes.

Considerações

O direito público e o privado são aqueles compostos respectivamente pelas normas de direito público e de direito privado. Quando se verificam normas de direito público no interior do direito de família ou de direito privado no direito processual, o que se observa é que as normas de natureza pública, não muito raramente, invadem terrenos em que a supremacia é das normas privadas, e vice-versa. Não é a posição da norma nos textos legais que se presta para traçar sua natureza.

Inobstante as críticas de longa data dirigidas à doutrina do interesse, parece que é ela, ainda, a que se apresenta mais razoável para diferenciar a norma de natureza privada da pública e, por consequência, para estabelecer o que é direito público e o que é direito privado. Sem dúvida que em todas as normas está contido o interesse público. Mas esta circunstância não obsta a distinção dos dois ramos pelo critério do interesse, pois o que se há de investigar na norma é o interesse prevalente.

O direito processual como ramo do direito público

Antes, quando se vislumbrava o processo civil como o direito nele pleiteado em “pé de guerra”, ou seja, quando se entendia o processo como uma exteriorização do direito substancial que é discutido em juízo, pensava-se que o direito processual civil não passava de um ramo do direito privado. Quando se passou a visualizar o processo como uma relação jurídica e a ação como um direito dirigido ao Estado, distinto da relação jurídica material, possibilitou-se a visão do direito processual como ramo do direito público. Modernamente é pacífico que o processo civil é da abrangência do direito público. Mais certo ainda que o direito processual penal é direito público. E por três motivos: (1º) a tarefa de punir criminosos e garantir a liberdade dos inocentes é do interesse direto do Estado; (2º) na relação jurídica processual atua como entidade soberana o Estado, representado pelo juiz, a quem é conferida a função jurisdicional; (3º) na atividade processual atuam órgãos públicos.


CAPÍTULO 3 – NOÇÕES DE DIREITO PROCESSUAL PENAL

Aspectos históricos

Primitivamente os crimes eram reprimidos pelas mãos do ofendido, de seus familiares ou do clã a que ele pertencia. Era a fase da vingança privada. A existência, a magnitude e a forma desta reação, como escreve Alfredo Mariconde, dependiam exclusivamente da vontade dos lesados. A vingança não encontrava limites. Imperava a lei do mais forte. Delitos leves eram reprimidos severa e desproporcionalmente (MARICONDE, Alfredo Vélez. Estúdios de derecho procesal penal. Córdoba, Imprenta de la Universidad, 1956, tomo II, p. 7.). Outras vezes, em razão do poderio e da influência do agente, a consequência era a impunidade.

Organizando-se a sociedade, os chefes se aperceberam de um grande inconveniente da vingança privada: seus excessos causavam a morte de muitos, enfraquecendo o grupo. O filósofo Herbert Spencer, em sua obra “A Justiça”, no capítulo que trata dos deveres do Estado, observou que “a administração grosseira da justiça por meio de lutas privadas transformou-se em administração pública da justiça, não em razão da solicitude que o soberano sentisse pela equidade das relações sociais, mas, muito antes, para prevenir o enfraquecimento social resultante das dissensões intestinas”. O desacerto de dois indivíduos crescia para se transformar em guerra entre famílias, que se prolongava indefinidamente, movida pelo sentimento vingativo.

A vingança privada encontrou limites na lei do talião e na composição. A lei do talião, “olho por olho, dente por dente”, posto que possa parecer o contrário, significou um grande passo para a humanização da repressão criminal. O talião impunha limites à reação do ofendido. Este não podia causar mais mal ao ofensor do que aquele mal que havia sofrido. Na primeira fase, a da vingança privada, podia ocorrer de uma morte ser vingada com a dizimação de toda uma família. Com o talião, uma morte passa a ser resgatada com outra.

Também a composição se apresenta como um instituto substitutivo da vingança privada. Resolvia-se o conflito pela composição quando o ofendido ou sua família recebia bens ou dinheiro a título de indenização pelo crime sofrido.

Em uma última fase, firma-se a convicção de que a punição dos crimes é interesse geral da coletividade, e assim a justiça transforma-se em monopólio estatal. O Estado proíbe aos particulares a execução de justiça e, por consequência, assume o dever de fazê-la e distribuí-la.

Este poder de julgar do Estado precisava oferecer segurança aos cidadãos. Os crimes não podiam ser punidos de qualquer maneira. A consciência social exigia a comprovação da culpa, a possibilidade de defesa, a imparcialidade do julgador e outras garantias. Foram destas exigências coletivas que nasceram as normas de processo. São as normas que regulamentam a forma pela qual o Estado executa a justiça.

Não faz muito tempo, as normas de direito processual estavam contidas nos mesmos textos que tratavam das normas substanciais. O direito processual penal era um conjunto de normas acessórias do direito penal. Aquele pertencia a este. O primeiro Código Processual Penal entrou em vigor em 1811 (Code d’instruction criminelle), promulgado por Napoleão.

Conceitos

Direito processual penal pode ser conceituado tendo em consideração três aspectos: o científico, o objetivo e o subjetivo.

Direito processual penal ciência é o conhecimento sistemático e metódico das normas que regram o processo penal e dos princípios que as inspiram.

Direito processual penal objetivo é o conjunto de normas do ordenamento jurídico responsáveis pela regulamentação do processo penal.

Direito processual penal subjetivo é a possibilidade de agir do sujeito do processo, assegurada pela lei processual penal.

Fundamental e complementar

No direito brasileiro existe um direito processual penal fundamental e outro complementar. O primeiro está no Código de Processual Penal (Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941), o qual entrou em vigor em 1º de janeiro de 1942. Este Código é dividido em seis livros. Os livros, por sua vez, são repartidos em títulos. E estes em capítulos. Os primeiro livro trata do processo em geral. São as disposições preliminares, o inquérito policial, a ação penal, a ação civil, a competência, as questões e processos incidentes, a prova, as partes, a prisão e a liberdade provisória, as citações e intimações, a aplicação provisória de interdição de direitos, as medidas de segurança e a sentença. O segundo livro versa sobre os processos em espécie, o comum, os especiais e os de competência dos tribunais. No terceiro livro encontram-se disposições sobre as nulidades e os recursos. O quarto livro trata da execução; o quinto, das relações jurisdicionais com autoridade estrangeira, e o sexto contêm disposições gerais.

Paralelamente ao Código de Processo Penal há o direito processual penal complementar, constituído pelas leis extravagantes. Entre estas, podem ser citadas:

Lei 5.256/1967 – Prisão especial
Lei 8.137/90 – Crimes contra a ordem tributária
Lei n. 9.099/95 – Lei do Juizado Especial
Lei 9.613/98 – Crimes de lavagem de dinheiro
Lei 11.343/2006 – Entorpecentes
Lei n. 11.419/2006 – Lei do Processo Eletrônico
Lei 12.850/2013 – Organização criminosa
Lei n. 13.869/2019 – Abuso de autoridade

O Código de Processo Penal apresenta um caráter subsidiário em relação a estas leis que regulam processos especiais. Os preceitos do Código aplicam-se aos processos especiais quando estes não forem regulamentados de forma diversa. Sobre o tema, escreve Eduardo Espínola Filho: “é acentuado o caráter subsidiário da codificação, cuja observância se impõe, mas só então se justifica, quando as leis peculiares de tais processos, expressamente ressalvadas, não traçarem uma regulamentação diversa da comum, consubstanciada naquele Código” (ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal brasileiro anotado. 5. ed. Rio de Janeiro, 1976. ref. Nº 15).


CAPÍTULO 4 – DENOMINAÇÕES

Importância do tema

A denominação direito processual, cedida para o ramo do ordenamento jurídico composto pelas normas que regulam o início, o andamento e o fim da atividade judiciária que tem por objetivo solucionar os litígios, é relativamente recente. Cintra, Grinover e Dinamarco acentuaram que a análise dos diversos nomes propostos para aquela ciência jurídica não é irrelevante, pois eles refletem etapas diversas da evolução processualística (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Candido. Teoria geral do processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1976. p. 19).

Visão rituária

Quando o direito processual resumia-se a uma sequência de atos, quando seu conteúdo esgotava-se no aspecto exterior destes atos, quando lhe faltava a autonomia científica e o estudo dos vínculos internos que ligam os sujeitos do processo, era chamado de praxe forense, prática judicial, regimento de juízes e outros nomes que demonstram (id. ibid. p. 19) a visão meramente rituária que lhe era reservada.

A expressão “direito judiciário”

A denominação direito judiciário revelou certo progresso no sentido de uma visão científica do objeto da ciência processual (id. ibid. p. 20). Mas não firmou, pela razão de que apresenta alguns inconvenientes:

1º) revela apenas um dos sujeitos da relação processual (o juiz), quando se sabe que o processo se desenvolve com a participação de outros;

2º) o direito processual poderia ser confundido com uma modalidade de direito consuetudinário produzido ao administrar-se a justiça (CASTILLO, Niceto Alcala-Zamora: LEVENE HIJO, Ricardo. Derecho procesal penal. Buenos Aires, Guillermo Kraft, s. d. tomo I, p. 32).

Esta denominação, direito judiciário, terminou reservada para identificar aquelas normas que organizam o Poder Judiciário e disciplinam o seu funcionamento. Os regimentos internos dos tribunais contêm típicas normas de direito judiciário.

O direito judiciário integra o direito processual. Representa aquela parte estática do direito processual. O conteúdo deste é maior, não se limita à organização e ao funcionamento do Judiciário. Vai mais longe, para regular a dinâmica processual constituída pelos atos das partes e do juiz.

Outras expressões

Outras denominações foram e ainda são utilizadas para distinguir o direito processual do direito de fundo. Direito formal ou instrumental para se opor ao direito material. Direito adjetivo opondo-se ao direito substancial.

Direito formal porque regula a forma pela qual se faz valer em juízo a norma de direito material. Direito instrumental porque serve de “instrumento” para a realização do direito material.

Estas denominações, direito formal e instrumental, podem ser utilizadas por quem delas necessite, mas não de maneira definitiva, pois não têm a força de expressar todo o direito processual, o qual não estabelece apenas “formas”, mas encerra, também, direitos, deveres, relações e situações jurídicas.

Direito processual

E por que direito processual? Primeiro, porque a expressão, difundida por influência alemã (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO. opus cit. P. 20), é a mais generalizada. Mas este motivo não é suficiente. Há um segundo motivo que justifica a conveniência da expressão: sob um aspecto histórico, ela é a que melhor assinala o caráter científico da disciplina.


CAPÍTULO 5 – INSTRUMENTALIDADE

Introdução

A instrumentalidade do direito processual deriva de que suas normas servem de meio para a aplicação das normas materiais. Não que as normas materiais não sejam também instrumentais. Elas o são, como percebe Grinover, na mesma proporção em que servem de instrumento para dar solução aos litígios. Mas, o caráter instrumental da norma de processo se demonstra muito mais significativo.

Giovanni Leone

O tratadista Giovanni Leone contemplou a instrumentalidade da normas processual levando em conta nada menos que cinco aspectos: o histórico, o sistemático, o estritamente jurídico, o social e o psicológico. Vejamos como o fez pelos aspectos histórico e psicológico.

Pelo aspecto histórico há uma preexistência lógica do direito penal sobre o direito processual penal. Primeiro havia os crimes cujas penalidades eram executadas pelo ofendido ou seus familiares. Só depois institui-se o processo para a aplicação das penas.

O aspecto psicológico está em que a parte, quando pede a atuação do Poder Judiciário, não deseja a mera contemplação da atividade jurisdicional com aquela sucessão de atos que lhe é própria. Espera sim, a solução do seu pedido mediante a aplicação do direito material ao caso “sub judice” (LEONE, Giovanni. Tratado de derecho procesal penal. Buenos Aires, Jurídicas Europa-América, 1963, v. I, p. 4 e seg.).

Hélio Tornaghi

É tão significativo o caráter instrumental do processo que Hélio Tornaghi pondera que a boa lei processual penal é aquela que melhor se presta a aplicação do direito penal, ou seja, é aquela que melhor se presta a realização da justiça penal com a aplicação de pena aos culpados e absolvição dos inocentes.

Aspecto particular da instrumentalidade do direito processual penal

Na área penal, esta instrumentalidade da norma processual tem uma característica que lhe é bem particular.

Na área cível, o direito substancial pode ser exercido independentemente da intervenção judiciária. As dívidas contraídas, os deveres dos cônjuges podem ser, respectivamente, pagas e cumpridos, sem que seja necessário recorrer às normas de processo civil. Nesta área, a satisfação da pretensão substantiva não depende do processo.

A característica particular da norma processual penal, à qual nos referíamos, é a sua obrigatoriedade ou necessariedade. A instrumentalidade da norma processual penal é absolutamente necessária. O crime não pode ser punido sem a preexistência do processo. A pretensão punitiva do Estado não pode ser satisfeita, o direito subjetivo de punir estatal não pode ser exercido, o direito penal não pode ser aplicado sem aplicação de normas processuais.

Em conclusão, enquanto a norma processual civil é apenas instrumental, a processual penal é instrumental e absolutamente necessária.


CAPÍTULO 6 – NECESSIDADE E IMPORTÂNCIA

Primeiras considerações

Ficou implícito no capítulo anterior que o direito penal é tão útil sem o direito processual quando “os pés sem as pernas” (a comparação deve-se ao jurista alemão Eberhard Schmidt). Daremos aqui, visto a relevância do assunto, um capítulo próprio para a necessidade do processo.

O processualista civil Humberto Theodoro Júnior aponta como uma das características da jurisdição ser ela atividade secundária. Secundária – diz o escritor – porque, através dela, o Estado realiza coativamente uma atividade que deveria ter sido, primariamente, exercitada de maneira pacífica e espontânea, pelos próprios sujeitos da relação jurídica submetida à decisão (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de conhecimento. 2. Ed. Rio de Janeiro. Forense, 1978, tomo I, p. 45).

A secundariedade é característica da jurisdição cível. Nunca da jurisdição penal.

Nulla poena sine judicio

Na área criminal vige o princípio nulla poena sine judicio, o qual significa que a pena não pode ser aplicada sem processo anterior. Não basta para a aplicação e execução de pena uma mera atividade administrativa ou policial (MARICONDE, Alfredo Vélez. opus cit. Tomo II, p. 16). Não se admite nenhuma espécie de transação entre o agente e o Estado. Mesmo que o acusado manifeste expressamente sua culpa e seu desejo de submissão à pena, não poderá o Estado, sem o processo, executar o direito de punir.

O princípio nulla poena sine judicio, inserto na maioria dos ordenamentos jurídicos dos povos civilizados, encontra, em nossa sistemática, proteção no artigo 345 do Código Penal, que tipifica e sanciona o crime de “fazer justiça com as próprias mãos”: “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima salvo quando a lei permite”. Os romanos já puniam este delito, do que se conclui que a proteção do princípio não é recente.

Exceções ao princípio

Mas existiram e existem exceções ao princípio. Os exemplos históricos de inflição de pena sem processo sem processo nos são trazidos por Eugenio Florian: o procedimento chamado palatino, pelo qual o juiz, em caso de flagrante delito, podia impor uma pena sem procedimento; pactos sobre a pena entre o juiz e o acusado que ocorriam em Nápoles (FLORIAN, Eugenio. Elementos de derecho procesal penal. Barcelona, Bosch, 1993. P. 16).

Dos exemplos atuais de exceção ao princípio, Cintra, Grinover e Dinamarco nos lembram do caso de submissão à pena (plea of guilty) do direito inglês; transação (bargaining) no direito americano entre a acusação e a defesa para que seja imposta pena de delito de menor gravidade que o imputado ao réu (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO. opus cit. P. 13).

No sistema processual penal brasileiro, há a delação premiada que é prevista em algumas leis especiais, na qual é realizado um acordo entre o delator e o Ministério Público. O delator promete oferecer provas de participação em crimes contra pessoas que serão delatadas, e o Ministério Público oferece benefícios em termos de punição ao delator. Todas declarações do delator, enquanto isoladas, valem absolutamente nada.

Há ainda, no juizado especial, hipótese em que o MP pode, preenchidas determinadas condições, propor a aplicação imediata (antes de oferecer a denúncia) de pena restritiva de direitos ou multas.

A composição pode se realizar, por igual, mediante o acordo de não persecução penal.

Importância

Não podendo a pena ser aplicada sem processo, sendo o processo o meio pelo qual se aplica o direito penal para absolver os inocentes e condenar os culpados, sendo no processo que o acusado terá de pleitear sua liberdade, a importância do direito processual penal está em que a efetiva e correta aplicação de suas normas representa uma garantia individual do cidadão. É a garantia de que ninguém será punido sem a prévia formação da culpa em juízo. É a proteção contra o abuso. É o Estado de Direito “desconfiando de si mesmo”. Dando relevância a esta noção do processo como garantia individual estão as palavras de Ferri: “enquanto que o Código Penal é o ordenamento dos criminosos, aos quais se aplica uma vez comprovada sua participação no delito, o Código de Processo Penal é o código dos homens honrados, que podem, por erro ou maldade de alguém, ser suspeitos de um delito” (Apud RAMIREZ, Sergio Garcia. Curso de derecho procesal penal. 2. Ed. México, Porrúa, 1977. P. 13).


CAPÍTULO 7 – AUTONOMIA

Autonomia normativa

A emancipação do direito processual do direito substancial é fato relativamente recente.

Hugo Alsina narra que os romanos, frente a um caso concreto, não questionavam se tinham o direito, mas sim se tinham a ação. Direito de ação eram conceitos que não se distinguiam na doutrina romana (ALSINA, Hugo. Tratado teórico-práctico derecho procesal civil y comercial. Buenos Aires, Compañia Argentina, 1941, p. 41).

Não faz muito tempo, alguns juristas, entre os quais estão Carmignani e Carrara, na Itália, e Feuerbach e Grolman, na Alemanha, comentavam o direito processual penal dentro do estudo do direito penal (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. 3. ed. São Paulo, José Bushatsky, 1978. v. I, p. 9).

O primeiro código de processo penal só surgiu no início do século passado.

Atualmente, no Brasil, o direito processual penal dispõe de um Código próprio e é individualizado expressamente pela Constituição Federal que, no artigo 22, inciso I, resguarda a exclusiva competência da União para legislar sobre a matéria.

Entretanto, cumpre ressaltar, não são exatamente estes aspectos normativos que fundamentam a autonomia da disciplina. A razão da autonomia não está em que o direito processual penal tem um tratamento individualizado na lei maior ou em que possui um texto legal que agrupa normas. Estas circunstâncias representam apenas sintomas de uma autonomia que lhes é anterior.

Razão da autonomia

A razão da autonomia do direito processual penal reside em que esta ciência contém método e objeto próprios. O método é o técnico-jurídico e o objeto é o processo penal.

O método técnico-jurídico, como esclare Maggiore, é constituído de três momentos: a exegese, a dogmática e a crítica. No primeiro momento, o jurista interpreta a disposição legal para dela extrair os princípios que contém. A dogmática compreende a organização dos princípios extraídos com a exegese dos institutos e a coordenação sistemática destes mesmos institutos. Em uma última fase, a crítica, inquire-se o valor de certos princípios contidos no ordenamento jurídico em consideração às novas exigências do meio social, objeto das normas.

Autonomia em relação ao direito processual civil e ao direito penal

Direito processual penal e direito processual civil não se confundem. Os princípios que informam um e outro quando não são distintos, se apresentam neles com forma e intensidade diversas. Analise-se a importância das distintas consequências da indisponibilidade do processo penal e da disponibilidade do processo civil e se verificará o quanto se distanciam as duas ciências.

Se a autonomia do direito processual penal frente ao direito processual civil é facilmente percebida, mais o é ainda sua autonomia diante do direito penal. Entre direito processual penal e direito processual civil existem pontos de contato, mesmo porque são ramos de uma mesma ciência que é a ciência processual. Alguns conceitos básicos de direito processual civil são aplicáveis ao direito processual penal, tanto é que, não raro, o estudioso do processo penal recorre à doutrina processual civil e vice-versa.

Já entre o direito processual penal e o direito que lhe é substancial, estas transações não ocorrem. O direito penal torna possível a vida social, protegendo os bens jurídicos fundamentais. Delimita o direito de punir do Estado e, por consequência, resguarda o de liberdade do cidadão. O campo de atuação do direito processual penal é outro. Regula relações processuais que vinculam os sujeitos do processo. Não se preocupa com a estrutura do crime, mas com temas outros, como o da competência, o da ação, o das nulidades, o dos recursos, etc.


CAPÍTULO 8 – FINALIDADES DIRETA E INDIRETA

Finalidade direta

Qual a finalidade direta do direito processual penal? Para que servem as normas de processo? A resposta não pode ser outra: as normas de processo têm por objetivo regulamentar o processo mesmo. O processo penal é um conjunto de atos cuja forma, tempo, lugar e sucessão são regulados pelo direito processual. Este sistema jurídico normativo regula tanto o processo neste seu aspecto exterior, como também, por reflexo, em seu aspecto interior, que se constitui por um complexo de direitos e obrigações contido em relações e em situações jurídicas.

Finalidade indireta

Para que serve esta regulamentação do processo? Estamos a perguntar qual a finalidade indireta do direito processual penal. Regulamenta-se o processo para que com ele possa ser aplicada a lei penal. A aplicação da lei penal é, portanto, a finalidade indireta do direito processual penal.

Certos seres não dispensam a presença de outros determinados para alcançaram seus objetivos. A finalidade do automóvel, que é de transportar, não será atingida se faltar o combustível. Ele não poderá ser aplicado e atingir seus fins sem aplicação de direito processual penal.

Forma de atingir o fim indireto

E o que se deve entender por aplicação da lei penal? Aplicar a lei penal não significa, apenas, punir o culpado, significa também absolver o inocente e garantir sua liberdade. Para que se aplique a lei penal, punindo culpados e liberando inocentes, é indispensável procurar a verdade real. Perseguir a verdade real quanto ao fato, quanto à personalidade do agente, quanto a seus antecedentes, através do processo, é indispensável para que se aplique a lei penal. A persecução da verdade real é a forma pela qual o direito processual penal atinge seu fim indireto (aplicação da lei penal).


CAPÍTULO 9 – RELAÇÕES COM O DIREITO CONSTITUCIONAL E COM OUTROS RAMOS DO DIREITO

A internação entre os ramos do direito

O corpo humano é um complexo sistema entre cujas partes há interação e conjugação para o mesmo fim que é a vida. Com o direito, o que ocorre é semelhante. O ordenamento jurídico divide-se em ramos especializados que se encontram inter-relacionados com o mesmo escopo de organizar e regular a vida social. Esta interpretação e interação, observa Gusmão, possibilita que as noções de um direito estabelecidas em um ramo do ordenamento se prestem para determinar o sentido de outro contido em ramo diverso, evitando assim repetições inúteis. Este fenômeno apresenta-se bastante claro com o direito comercial que, tendo raízes no direito civil, deste se utiliza para complementar suas noções e conceitos (GUSMÃO, Paulo Dourado de. opus cit. p. 241). Como explica Theodoro Júnior, o “direito, sem embargo de sua divisão em ramos autônomos, caracterizados por métodos, objetivos e princípios próprios, forma um conjunto maior, que tem em comum o destino de regular a convivência social, Por essa razão, por mais que sejam considerados autônomos os seus ramos, haverá sempre entre eles alguma intercomunicação, algum traço comum e até mesmo alguma dependência em certos ângulos ou assuntos” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. opus cit. p. 6).

Relações com o direito constitucional

Segundo Garcia Maynez, constituição pode ser entendida em um sentido formal e em um sentido material. “Desde el punto de vista formal la palabra constituición se aplica al documento que contiene las normas relativas a la estructura fundamental del Estado; desde el punto de vista material, em cambio, aplícase a esa misma estructura, es decir, a la organización política, a la competência de los diversos poderes y a los princípios concernientes al status de las personas” (MAYNEZ, Eduardo Garcia. opus cit. P. 137).

Direito Constitucional são as normas fundamentais que organizam a estrutura do Estado, seu governo, a função de seus órgãos e o relacionamento destes com os governados.

Composto por normas fundamentais, é chamado direito fundamental no sentido de que a validade de todas as outras normas dele decorre. É o direito maior que fundamenta o direito que se encontra em posição hierárquica inferior. Esta ideia de norma fundamental (Grundnorm) foi desenvolvida por Kelsen, e por isto entregamos a ele o exame de suas conformações. Diz o professor de Viena que “a norma reguladora da produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma cuja produção, por seu turno, é determinada por outro, e assim por diante, até chegar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. Ed. Coimbra, Arménio Amado, 1976, p. 310).

Estabelecidos que estão os significados de constituição, a definição de direito constitucional e o que ele representa perante outras normas, passa-se agora a examinar o relacionamento deste ramo da ciência normativa com o direito processual penal.

Este relacionamento não é apenas formal, é também político. Basta voltar os olhos para a história com seus incidentes e constataremos que as modificações relevantes da constituição dos Estados trazem alterações na forma de persecução penal. Quem trata deste tema com profundidade e com excepcional lucidez é o jurista alemão Eberhard Schmidt. Ensina que as “modificaciones de la estructura social y, de acuerdo a ello, del estado constitucional; câmbios de lãs relaciones entre el poder público y los particulares; transformaciones em lãs personas em cuanto al sentido del derecho y de la vida; nuevas orientaciones del pensamiento político, todo sobre la estructura del proceso penal, lo que es uma clara señal de que, em lo que se refiere al mismo, se trata de algo de caráter político preponderante”. E a seguir adverte: “Por esta importantíssima influencia del punto de vista político, el objetivo del proceso penal está em um peligro constante de ser apartado de su finalidad de verdad y de justicia, y de ser puesto al servicio de propósitos políticos autoritários. Lãs ideologias políticas y las palabras ingeniosas em ninguna matéria son tan peligrosas como en el derecho procesal penal. Ellas solo consiguem ensombrecer las experiencias psicológicas procesales hechas em el curso de la historia; sirven como máscara a los detentadores del poder político, para la erección de um simulado aparato jurídico, detrás del cual se ocultan los más danosos abusos del poder; impiden toda discución crítica, substancial y científica de los problemas procesales, tanto de lege lata como de lege ferenda; significam no solo la muerte de la justicia, sinto también de la ciência em el âmbito procesal” (SCHMIDT, Eberhard, Los fundamentos teóricos y constitucionales del derecho procesal penal. Buenos).

Não é pequena, também, a relevância do relacionamento entre o direito constitucional e o processo penal na área mais estritamente normativa. É a Constituição que traça as linhas estruturais e os princípios fundamentais (os quais não precisam estar nela expressamente) pelos quais o legislador processual ordinário terá de se guiar. A lei ordinária inconstitucional deve ter declarada sua ineficácia e inaplicabilidade para o caso sub judice. É o critério da hierarquia.

Foi com uma intuição que lhe é bem particular que Tornaghi percebeu a lei de processo como um “prolongamento e a efetivação do capítulo constitucional sobre os direitos e as garantias individuais” (TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal, 2ª Ed. São Paulo, Saraiva, 1977. v. I, p. 75). Efetivamente, os mais importantes institutos com regulamentação processual penal têm por fonte originária a Constituição. A inviolabilidade do domicílio, a legalidade da prisão e a sua comunicação, a defesa, o contraditório da instrução, o Júri, o princípio da isonomia, o direito à prestação jurisdicional, a assistência judiciária, o habeas corpus, o mandado de segurança, o princípio do juiz natural, a integridade física e moral do preso, a competência, são categorias instituídas para o processo cujos primeiros contornos são impostos pela Constituição.

Esse íntimo relacionamento normativo produz efeitos na interpretação e na aplicação da lei processual. Por esta razão, certamente, que o processualista Frederico Marques (MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 5. Ed. São Paulo, Saraiva. v. I, p. 4) referia-se expressamente à disciplina Direito Constitucional Processual, cujo objeto, segundo o estudioso, são as normas processuais contidas na Constituição.

Relações com outros ramos do direito

Das relações que o processual penal guarda com outros ramos do direito destacam-se as mantidas com o administrativo, o penal, e o processual civil.

O direito administrativo é aquele conjunto de normas que versam sobre a administração pública. Administração pública, na definição de Santi Romano, é a atividade através da qual o Estado e os sujeitos auxiliares deste procuram a satisfação dos interesses coletivos (Apud MAYNEZ, Eduardo Garcia. opus cit. p. 139).

A atividade administrativa, regulada por normas desta natureza, se dá em nível de polícia e de execução penal (BRUNO, Aníbal. Direito Penal. 3. Ed. Rio de Janeiro, Forense, 1978. Tomo I, p. 62). Na atividade de prevenção de crimes e na de execução das penas aplicadas nas sentenças dos processos intervêm órgãos executivos da administração pública.

O direito penal, definido pelo criminalista espanhol Cuello Calón como “o conjunto de normas que determinam os delitos, as penas que o Estado impõe aos delinquentes e as medidas de segurança que o mesmo estabelece para a prevenção da criminalidade” (Apud MAYNEZ, Eduardo Garcia. opus cit. p. 141). Guarda íntimo relacionamento com o direito processual penal, pois não pode sem este ser aplicado. O direito processual representa o instrumento do qual se serve o direito penal para atuar. Este, por sua vez, sanciona penalmente condutas processuais indesejadas. Um colabora na aplicação do outro. A proteção penal do processo está sediada no Título XI da parte especial do Código Penal. É o capítulo III do referido Título que prevê os Crimes contra a Administração da Justiça (art. 338 e 359). Entre outros crimes, sanciona-se ali a comunicação falsa de crime, a autoacusação falsa, o falso testemunho, a falsa perícia e a fraude processual.

Direito processual penal e o direito processual civil são ramos derivados de um mesmo tronco: o direito processual. Alguns conceitos e princípios genéricos são comuns a ambos os ramos.

Há, também, relacionamento entre o direito processual penal e direito processual civil no campo normativo.

O artigo 91 do Código Penal preceitua que um dos efeitos da condenação é o tornar certa obrigação de indenizar o dano resultante do crime.

O Código de Processo Penal possui um título próprio que trata da ação civil. Nele preceitua-se que o trânsito em julgado da sentença condenatória criminal possibilita a execução cível para a reparação do dano. Esta sentença faz coisa julgada no juízo cível na parte em que reconhece ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito (artigo 65). Não impedem a propositura da ação cível: 1º) o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de informação; 2º) a decisão que julga extinta a punibilidade; 3º) a sentença absolutória que não reconhece categoricamente a inexistência material do fato; 4º) a sentença absolutória que decide que o fato imputado não constitui crime.

Em outro título, tratando das questões prejudiciais, o Código de processo Penal volta a versar sobre a ação cível. Ali está previsto que, se a decisão sobre a existência da infração depende da solução de controvérsia séria sobre o estado civil das pessoas, o curso da ação penal fica suspenso até que, no juízo cível, seja a controvérsia dirimida por sentença passada em julgado. Sendo suspenso o processo, e tratando-se de crime de ação pública, incumbe ao Ministério Público intervir imediatamente na causa cível, para o fim de promover-lhe o rápido andamento.


CAPÍTULO 10 – CIÊNCIAS AUXILIARES

Necessidade do conhecimento

As chamadas ciências auxiliares, antes de o serem do direito penal ou do direito processual penal em particular, são ciências auxiliares da Justiça Criminal.

Denominam-se auxiliares porque colaboram para a melhor compreensão, interpretação, aplicação e até criação das leis penais substantivas e instrumentais.

Os operadores do direito não podem restringir seus conhecimentos no exclusivo estudo da lei. Não é nela que se esgota a compreensão do direito, pois este existe para atuar sobre a tumultuada vida dos homens. Não se pode desvincular o direito da atividade que ele regula. Se o interesse do jurista se restringisse ao estudo da legislação em vigor, seria o isolamento da Justiça e a estagnação do ordenamento jurídico. É de Pontes de Miranda a lição de que quem só de direito entende nem de direito entende. Não com muita pressa, para não se tornar presa fácil de modismos inconsequentes, mas a evidência é que cumpre ao direito transformar-se para acompanhar a evolução do relacionamento social.

Se é exigível um mínimo de conhecimentos extrajurídicos daqueles que tratam com o direito em geral, mais ainda o é dos que lidam com a Justiça penal, pois nesta é julgado o homem com as suas peculiaridades, acidentes, sentimentos e ilusões.

Certas ciências colaboram para que aqueles que operam com a Justiça criminal possam melhor entender os temas e problemas que ela envolve. Estas ciências são a Medicina Legal, a Psiquiatria Judiciária, a Criminologia, a Política Criminal e a Psicologia Judiciária.

Medicina Legal

Medicina Legal é ciência composta por um conjunto de conhecimentos médicos-jurídicos e tem por objetivo colaborar com a Justiça na investigação da verdade.

Foram as obras De percussionibus e De cicatribus, de Bartolo (1314-1357), que deram origem a esta ciência, e o primeiro tratado de Medicina Legal foi o Methodus dandi relationes, de Ingrassia.

A Medicina Legal presta serviços à Justiça apresentando a solução de problemas técnicos. Com ela, as noções de insanidade, morte, lesões, tóxicos, aborto e outras são esclarecidas.

Serve tanto à jurisdição cível quanto à criminal, mas mais frequentemente a esta.

Psiquiatria Judiciária

A Psiquiatria Judiciária, ou Psiquiatria Forense, integra a Medicina Legal e trata dos desvios da personalidade. Não estuda a normalidade, seu objeto é a anormalidade, a insanidade. Os conceitos de psicose, esquizofrenia, oligofrenia, neurose, paranoia, são por ela determinados. São os pareceres dos médicos psiquiatras que fornecem subsídios para o magistrado julgar naquela importante questão penal relativa à imputabilidade dos acusados.

Criminologia

A criminologia inicia-se em 1871 com a publicação da conhecida obra L’Uomo delinquente de Lombroso.

É considerada ciência propedêutica da ciência penal, causal-explicativa, que estuda os fatores humanos (Psicologia Criminal) e sociais (Sociologia Criminal) que levam o homem a delinquir. Não aborda a delinquência no sentido jurídico da palavra. Entende por delito toda a conduta desviante, que nem sempre constitui fato típico.

Se há ciência em que não existe comum acordo em tema algum entre os estudiosos, esta é a Criminologia. Tal se deve, talvez, a influência das correntes ideológicas que nela preponderam e que lhe concedem uma angustiante relatividade de conceitos e de estruturação teórica. Henrique Forster de Freitas Lima observou que “o campo de conhecimento denominado criminologia é um conjunto de teorias diversas e, inclusive, contraditórias entre si” (LIMA, Henrique Forster de Freitas. Por uma nova criminologia. Porto Alegre, do autor, 1980. p. 9).

Política Criminal

A Política Criminal, com base nos dados emprestados pela Criminologia, aponta e sugere as reformas legislativas necessárias para promover o controle do crime.

Psicologia Judiciária

A Justiça é feita para os homens pelos homens. O processo penal não é apenas uma relação jurídica ou um conjunto coordenado de atos. É, também, um relacionamento social. Juiz e advogado, juiz e promotor público, advogado e auxiliares da Justiça… todos se relacionam. Existem cordialidades, saudações, motivos para alegrias e tristezas na atividade processual. Os que atuam sabem que os conceitos teóricos de imparcialidade, independência, sobriedade, bom senso, prudência, no dia-a-dia profissional, tornam-se mais elásticos, flexíveis e, às vezes, de contornos imprevisíveis. A emoção integra o processo como o integram seus atos. Mais ainda na causa criminal, pois ali, onde o homem e seu destino são julgados, se percebe no redor os efeitos gerados pelo ato criminoso. A vítima, no homicídio, deixa presente seu espectro. Entidade que assusta a testemunha, avultando sua imaginação, e que é capaz de vincular os corações mais habituados aos efeitos danosos dos atos antissociais. Afastando a a lembrança da vítima está o destino, não apenas do homem que está sendo julgado, mas também o da sua família, a qual, em caso de condenação, sofrerá também os efeitos da punição, e inocentemente.

Desta vida palpitante que é o processo versa a Psicologia Judiciária. O estudo da psicologia do juiz, do acusador, do defensor, do acusado, do ofendido, dos auxiliares da Justiça e, principalmente, das testemunhas, é a sua matéria. O que se passa no íntimo do magistrado quando absolve? E quando condena? Qual a credibilidade do depoimento dos menores? Dos alcoólatras? Do ofendido? Do acusado? Como e por que ocorrem as mentiras, conscientes e inconscientes? A resposta a estas questões é estudada pela Psicologia Judiciária, cujo objetivo é auxiliar a Justiça na determinação da verdade, utilizando-se para isto de elementos de técnica psicológica.

Um excelente trabalho de Psicologia Judiciária é a conhecida obra do professor da Universidade de Nápoles, Enrico Altavilla, cuja 4ª edição italiana, publicada em fins de 1955, foi traduzida para o português. É composta de dois volumes. O primeiro trata de vários temas, tais como o sexo, emoções, paixões, diferenças individuais, perturbações do processo psíquico, simulação de doenças mentais. O segundo volume versa sobre a psicologia dos que participam do processo penal: do acusado, do ofendido, do acusador, da testemunha, do juiz, do advogado, do perito e do intérprete.


CAPÍTULO 11 – A NORMA PROCESSUAL PENAL

Noções

A expressão norma origina-se do latim gnorimos e em seu sentido jurídico significa a regra de conduta imposta pela lei a ser observada.

Não é a localização da norma nos textos legais do Estado que se presta para identificar sua natureza. A norma é processual penal, não quando está contida no Código de Processo Penal (existem normas neste Código de que não têm natureza processual penal), mas quando seu objetivo é regulamentar a atividade do processo penal.

A norma processual penal, como as demais normas de direito, é dotada das características da generalidade e da bilateralidade. É geral porque não regula um caso concreto em particular, mas, sim, destina-se a regular vários casos que podem vir a ocorrer. A bilateralidade está em que ela vincula o direito de uma pessoa ao dever de outra.

A norma de processo é ainda escrita e de direito público interno. É escrita, pois o direito não-escrito (consuetudinário) não possui força normativa no direito processual. É de direito público dado o interesse social que há na solução do litígio penal contido no processo. É de direito interno (são normas nacionais), eis que regula relações jurídicas que se produzem, se modificam e se extinguem dentro das fronteiras do Estado.

Os destinatários das normas processuais são todas as pessoas que participam do processo, detendo direito e deveres (juiz, acusado, defensor, representante do Ministério Público, auxiliares da Justiça, testemunhas, etc.).

Classificação quanto à aplicabilidade e quanto à obrigatoriedade da conduta

As normas de processo podem ser classificadas, entre outros critérios, quanto à aplicabilidade e quanto à obrigatoriedade.

Pelo primeiro critério, dividem-se em taxativas e supletivas. As normas de processo, em sua maioria, são taxativas, ou seja, são normas cuja atuação independe da vontade dos sujeitos do processo. Não há como impedi-las ou afastá-las da regulamentação do caso concreto. Como define Del Vecchio, as taxativas são aquelas normas que ordenam ou imperam independentemente da vontade das partes, de maneira que não é lícito derrogá-las, nem absoluta, nem relativamente, em vista ao fim determinado que as partes de proponham a alcançar (apud MAYNEZ, Garcia. opus cit. p. 94).

Normas supletivas são aquelas cuja não aplicação pode ser consentida pelas partes. São poucas as normas deste tipo no direito processual, especialmente no processual penal. Neste ramo do direito, caso em que a parte pode consentir com a não aplicação da norma está na não arguição de nulidade relativa ao prazo conferido pela lei. Trata-se de consentimento tácito, o qual garante a eficácia dos atos praticados em desacordo com o expresso em lei. Já no direito civil, mais especificamente na área contratual, há um grande poder de disposição sobre a aplicabilidade das normas jurídicas. Na área contratual, o acordo entre as partes é capaz de afastar a aplicação de razoável fração normativa do ordenamento.

Quanto à obrigatoriedade da conduta, as normas processuais penais dividem-se em imperativas e facultativas. Imperativas são as que impõe e obrigam uma determinada conduta. Referindo-se às normas imperativas, Bullow disse que “as relações jurídicas a que se estendem estão reguladas em forma determinada, de um modo tão imediato e único que é impossível desviar-se da regulamentação jurídica traçada”. E mais adiante afirmou: “aqui o direito objetivo admite, para o estado das coisas que regula, uma regra única, por ele estabelecida com precisão” (apud CASTILLO y LEVENE HIJO. opus cit. v. I, p. 132).

Facultativas ou dispositivas são as que possibilitam mais que uma conduta. Facultam que se pratique o ato desta ou daquela maneira, que se pratique ou não, ou que se pratique de qualquer maneira. A origem do poder dispositivo processual dos sujeitos do processo está nestas normas.

Fracionamento da norma

As normas jurídicas contêm hipótese e disposição (MAYNEZ, Eduardo Garcia. opus cit. p. 170 e seg.). A hipótese são os requisitos (hipótese complexa) ou o requisito (hipótese simples) que a norma exige para que se produzam os efeitos que ela prevê. A disposição são os efeitos jurídicos (nascimento, modificação ou extinção de direitos) que se produzem quando realizada a hipótese. Com técnica, Maynez define hipótese como “o conjunto de condições de cuja realização depende a vigência da disposição” e esta, por sua vez, indica “quais as consequências normativas que se encontram determinadas pela realização da hipótese” (MAYNEZ, Eduardo Garcia. opus cit. p. 171).

Norma = hipótese + disposição

Hipótese e disposição não convivem necessariamente em um mesmo dispositivo de lei nem em uma mesma lei. A hipótese pode estar em um artigo do Código de Processo e a disposição em outro artigo. A hipótese pode estar no Código e a disposição em outra lei. Exemplo de hipótese e disposição contidas em artigos distintos da lei processual é o caso de sentença, cuja disposição é o direito de apelar.

As hipóteses podem ser complexas. Hipótese complexa significa que ela é formada por uma pluralidade de requisitos. O crime é hipótese complexa. Não basta “matar alguém” (não basta a tipicidade) para que se possa dizer que há crime de homicídio. Para que haja homicídio, além do requisito “matar alguém”, necessária é a conjugação de outros: não ter sido o ato praticado em legítima defesa, não ter sido inexigível outra conduta…

Sanção

A sanção não é um elemento novo da norma, distinto dos enunciados acima. Não passa de uma categoria especial de disposição.

Antes de ingressarmos neste tema, é interessante que a palavra seja concedida a Garcia Maynes para uma breve introdução: “A obrigação cujo descumprimento representa a hipótese jurídica (Maynes refere supuesto jurídico) da sanção, deriva por sua vez de outra hipótese, à qual logicamente corresponde o qualificativo de primária. Se as obrigações que esta condiciona são cumpridas, o secundário não se realiza e, consequentemente, a sanção não pode se impor. Assim como existem hipóteses primárias e secundárias, existem também os deveres jurídicos primários e secundários. O dever cuja inobservância determina a existência de obrigação oficial de sancionar, tem, naturalmente, caráter primário. A sanção é, pelo contrário, consequência secundária. A norma que estabelece sanção é chamada sancionadora. Esta última é secundária, relativamente à sancionada. A relação entre ambas fica claramente resumida na seguinte fórmula: Se “A” é, deve ser “B”; se “B” não é, deve ser “C”. A omissão da conduta ordenada pelo primeiro preceito constitui a hipótese jurídica do segundo” (MAYNEZ, Eduardo Garcia. opus cit. p. 295).

Em resumidas palavras, pode-se definir sanção como a disposição de uma norma prevista para o caso de descumprimento de disposição de outra norma. A atuação da norma sancionatória está condicionada à não atuação da norma sancionada.

Norma sancionada (A): hipótese A > disposição A

Norma sancionadora (B): hipótese B (disposição A não realizada) > disposição B (sanção)

No direito penal também podem ser visualizadas as normas sancionada e sancionadora. A sancionada, tomando por exemplo o crime de homicídio, é “se fores pessoa, não cometerás homicídio” e a sancionadora é “se cometeres homicídio, serás punido”. Ambas contêm hipótese e disposição, só que a disposição da segunda leva o qualificativo de sanção.

No homicídio:

Norma sancionada:
hipótese (ser alguém) > disposição = conduta exigida (obrigação de não cometer homicídio)

Norma sancionadora:
hipótese (cometer homicídio) > disposição = sanção (punição)

Na receptação:

Norma sancionada:
hipótese (apropriar-se de coisa alheia móvel) > disposição (devolver)

Norma sancionadora:
hipótese (não devolver coisa alheia móvel) > disposição = sanção (punição)

As normas que sancionam normas processuais podem pertencer ou não ao direito processual.

Sanções de normas processuais contidas em normas desta mesma natureza são as seguintes: de inadmissibilidade, de decadência, de perempção, de nulidade.

Sanções de normas processuais contidas em normas administrativas são sanções de suspensão, perda de cargo, etc.

Sanções de normas processuais contidas em normas penais são as punições previstas no Capítulo do Código Penal que tipifica os delitos contra a administração da Justiça.


CAPÍTULO 12 – NORMAS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS

Importância da diferenciação

A importância do estudo dos critérios que diferenciam as normas penais das processuais penais está, principalmente, em que estes dois ramos do ordenamento jurídico são regulados por regras distintas de direito intertemporal.

As leis se sucedem no tempo. Nesta sucessão de leis, cabe ao intérprete e ao aplicador da lei determinar, com base nas regras estabelecidas pelo direito intertemporal, qual a lei aplicável aos casos concretos, se a nova ou a anterior.

No direito penal vigora o princípio da irretroatividade in pejus e o da retroatividade in melius (exceções a eles são a imediata aplicação das normas que versam sobre medidas de segurança e a ultra-atividade das leis excepcionais ou temporárias).

O princípio da irretroatividade in pejus significa que a lei penal mais severa não produz efeitos para o passado. Se “A” pratica fato que posteriormente norma penal incriminadora passa a descrever como crime, “A” não sofrerá os efeitos dessa norma.

Se a norma posterior fixa pena mais gravosa para determinado delito, o agente que consumou este delito sob a égide da norma anterior não se submete ao novo quantitativo ou qualitativo punitivo.

Segundo o princípio da retroatividade in melius, a norma penal mais benéfica retroage para beneficiar o agente. Assim, por exemplo, se lei posterior deixa de considerar crime o fato pelo qual alguém está sendo processado ou punido, finda o processo ou a punição.

Já a norma processual penal é regida pelo princípio da aplicação imediata. Pouco importa a data do delito ou do início da atividade processual, o acusado se submete às normas processuais que estão em vigor no curso do processo. Os atos processuais praticados na vigência da lei anterior não são invalidados com o advento da nova lei processual penal.

Outra razão, não menos relevante, da importância de distinguir-se normas penais das normas processuais penais diz respeito à questão do emprego da analogia.

Analogia é integração, supõe falta de disposição legal regulamentadora do caso concreto. É princípio jurídico pelo qual a norma estabelecida para determinado fato a outro se aplica dada a semelhança entre ambos (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 5. Ed. Bauru, Jalovi, 1979. v. I, p. 163).

Em regra, a analogia é proibida na aplicação do direito penal. Nélson Hungria não admite nem em atenção ao critério do favorabilia amplianda, para aplicá-la sobre os preceitos referentes à exclusão de crime ou de culpabilidade, isenção ou atenuação de pena e extinção de punibilidade. Diz que contra a admissão da analogia nestes casos “há a objeção de que os preceitos a estes relativos são de caráter excepcional, e as exceções às regras da lei são rigorosamente limitadas aos casos a que se referem. Exceptiones sunt strictissimi juris. Os preceitos sobre causas descriminantes, excludentes ou atenuantes de culpabilidade ou de pena, ou extintivas de punibilidade, constituem jus singulare em relação aos preceitos incriminadores ou sancionadores, e assim não admitem extensão além dos casos taxativamente enumerados” (HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 5. Ed. Rio de Janeiro, Forense, 1977. v. I. tomo I, p. 100).

Em que pese a autoridade do eminente jurista brasileiro, prevalece hoje, entre os penalistas, o entendimento de que é viável o emprego da analogia no direito penal. Entre estes, está o professor Heleno Fragoso, sustentando que as normas eximentes de caráter geral não são excepcionais e são suscetíveis de ampliação analógica. Citando Bettiol, Heleno Fragoso afirma que somente quando a norma representa uma verdadeira e própria interrupção na projeção lógica de uma norma penal deve ser considerada de caráter excepcional, e, pois, limitada aos casos nela especificados (FRAGOSO, Heleno Cláudio, Comentários ao Código Penal. 5 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1977. v. I, tomo I, p. 230).

Enquanto que em parte do direito penal pode ser discutida a viabilidade da analogia (“em parte” porque as normas penais incriminadoras, é pacífico, não admitem analogia), no direito processual penal não ocorre o mesmo. Neste ramo jurídico ela é largamente utilizada para integrar a ordem normativa.

Distinção

Como observa Eberhard Schmidt, o direito processual e o direito substantivo se referem a diferentes campos da realidade social. “O Direito processual regula a marcha de um procedimento que tende à obtenção de uma sentença judicial e determina quais os atos das partes, como ações em acordo com o ordenamento do procedimento, dentro do setor da realidade processual, devem ser admitidos para alcançar esse objetivo. O direito material, ao contrário, não se refere com suas valorações ao interior deste setor processual, mas expressa o que é que deve ser comprovado fora do mesmo, no setor da realidade da vida social, isto é, dos interesses da vida social” (SCHMIDT, Eberhard. opus cit. p. 27).

Efetivamente, normas processuais e substanciais destinam-se a regrar dois mundos distintos. Sobre o mundo da atividade processual, no qual participam os sujeitos das relações jurídicas processuais, incide a norma de processo. Ao direito penal interessa a atividade efetivada pelos membros da coletividade na vida social.

Não é a posição da norma nos textos legais que indica sua natureza. Ideal seria que as normas de processo estivessem exclusivamente no Código de Processo e as de direito penal guardassem posição reservada no Código Penal. Porém, tal não ocorre. Existem normas processuais no Código substantivo, e o inverso, normas substantivas no Código de Processo.

Normas processuais são as que estabelecem a competência, que regulam os atos das partes, do juiz, dos auxiliares da Justiça, que fazem previsão das nulidades, que indicam os recursos, enfim, normas de processo são aquelas responsáveis pela forma, início, andamento e fim da atividade processual.

Normas de direito penal são aquelas que descrevem os fatos típicos e cominam penas, que regulam as causas que excluem a culpa e a antijuridicidade, que dispõem sobre medidas de segurança e descrevem as causas excludentes de punibilidade, ou seja, são normas que regulam o direito subjetivo de punir do Estado e, por consequência, o direito subjetivo penal de liberdade do cidadão.

A má aplicação das normas de processo dá origem ao error in procedendo (erro de procedimento – o processo conduzido por juiz impedido) e a má aplicação das normas substantivas origina o error in iudicando (erro de julgamento – a condenação de quem não praticou fato típico ou de quem agiu em legítima defesa).


CAPÍTULO 13 – FONTES

Noções

Quando se fala de fontes do direito, a alusão pode ser feita às fontes de produção ou àquelas outras, chamadas fontes de conhecimento.

As fontes de produção dividem-se em mediatas e imediatas. Fontes de produção mediatas são os valores, ideais e interesses da sociedade. É a realidade fenomênica-social constituída por fatores econômicos, religiosos, políticos, morais, históricos, etc. Fontes de produção imediatas são os órgãos legislativos encarregados de fazer a lei e o órgão judiciário que a aplica.

Fontes de conhecimento são as que manifestam, exprimem e exteriorizam o direito. São de dois tipos: vinculantes e subsidiárias.

Fonte vinculante do direito é a que obriga o juiz. É aquela à qual o juiz tem a obrigação jurídica de recorrer para dar solução a casos concretos. Fonte vinculante por excelência é a lei. Mas não só ela. Se a lei expressamente mandar aplicar o costume, a doutrina ou a jurisprudência, elas serão também fontes vinculantes do direito. Neste caso, a lei concede força jurídico-normativa a estes elementos. Como observa Kelsen, os princípios morais e políticos, as teorias jurídicas, os pareceres de especialistas, só serão juridicamente vinculantes, quando uma norma jurídica positiva delegue-lhes esta qualidade (KELSEN, Hans. opus cit. p. 323).

Fontes subsidiárias são as que auxiliam o juiz na tarefa de interpretar e aplicar a lei. Não vinculam, não são obrigatórias.

Fonte de conhecimento vinculante do direito processual penal

Fonte de conhecimento vinculante do direito processual penal é a lei processual penal. Não é a norma processual penal. A norma processual penal, ou melhor, o conjunto de normas de processo penal são o direito processual penal. Norma e lei não se confundem. Lei não é norma nem a norma é lei. A lei é o signo utilizado para expressar a norma. A lei contém e a norma está contida. A fonte é meio para expressar a norma. O assunto é tratado por Carnelutti, que esclarece: “si por derecho (objetivo) entendemos um sistema de mandatos, abstratos o concretos, fuente del Derecho no puede logicamente ser sino aquello de que el mandato deriva”. E logo adiante escreve que a lei “es una palabra cuyo significado conviene precisar. En el lenguage corriente, ley significa regla o norma; pero en el lenguage jurídico, nosotros la usamos para indicar uma fuente del mandato” (CARNELUTTI, Francisco. Sistema de derecho procesal civil. Buenos Aires, Uteha, 1944. v. I, p. 77).

Lei pode ser definida como signo escrito que contém ordem (norma) do Estado, cuja obediência é por ele assegurada.

A lei como fonte de conhecimento vinculante abrange as Constituições (a Federal e as Estaduais), tratados e convenções internacionais, as leis complementares, ordinárias, delegadas, os decretos-lei, os decretos e os regimentos internos dos tribunais.

Fontes de conhecimento subsidiárias do direito processual penal

Fontes de conhecimento subsidiárias do direito processual penal são aquelas que, sem terem força obrigatória, auxiliam na interpretação, aplicação, elaboração e reforma do direito. São elas o costume, a jurisprudência, a doutrina e os princípios do direito.

Antes da escrita, fonte vinculante do direito era o costume. Depois, o costume foi substituído pela lei, capaz de oferecer maior segurança, necessária ao direito.

Na definição de Orlando Gomes, o costume é o uso geral constante e notório, observado na convicção de corresponder a uma necessidade jurídica (GOMES, Orlando. opus cit. p. 58).

Segundo antiga doutrina, são dois os elementos do costume: o objetivo e o subjetivo. O elemento objetivo é o uso por largo tempo, e o subjetivo é a convicção de sua necessidade jurídica.

Bobbio arrola como cinco os elementos do costume: 1º) generalidade (deve ser observado por um grupo de pessoas); 2º) uniformidade (repetição de forma semelhante); 3º) continuidade (não podem haver interrupções); 4º) durabilidade; 5º) publicidade (não pode ser secreto) (apud GUSMÃO, Paulo Dourado de. opus cit. p. 148).

Normalmente o costume é divido em três tipos: secundum legem, praeter legem e contra legem.

Orlando Gomes escreve que costume secundum legem é o que se acha expressamente referido na lei. Costume praeter legem é o que serve de complemento à lei, preenchendo suas lacunas. Costume contra legem é o que se forma em oposição a uma disposição legal (GOMES, Orlando. opus cit. p. 60).

Os costumes possuem grande influência sobre a conduta social. Esta força dos costumes foi ironicamente descrita por Montaigne quando escreveu: “Parece-me haver muito bem compreendido a força do costume quem primeiro inventou essa história de uma mulher que, tendo-se habituado a acariciar e carregar nos braços um bezerro, desde o nascimento, e o fazendo diariamente, chegou pela força do hábito a carregá-lo ainda quando já se tinha tornado boi. Porque o costume é efetivamente um pérfido e tirânico professor. Pouco a pouco, às escondidas, ganha autoridade sobre nós, a princípio terno e humilde, implanta-se com o decorrer do tempo, e se afirma, mostrando-nos de repente uma expressão imperativa para a qual não ousamos sequer erguer os olhos”. A seguir Montaigne conta: “certo fidalgo francês, famoso pelo seu espírito, assoava com os dedos o nariz, coisa contrária aos nossos usos. Defendendo sua maneira de se conduzir, perguntou-me por que motivo tão sujo excremento merecia que tomássemos de um lenço delicado para recebê-lo. E o que é pior, para com isso fazer um embrulho e guardá-lo preciosamente. Era por certo mais repugnante esse hábito do que se desembaraçar de qualquer maneira como procedemos com as demais sujidades” (MONTAIGNE, Michel de. opus cit. p. 61 e seg).

O costume, no processo, é representado por aqueles usos que chamamos de prática forense. É fonte do direito processual, enquanto não dispuser de forma contrária à lei. A prática forense que se realiza em conformidade com a lei processual é fonte do direito, pois auxilia o intérprete e o aplicador e fornece subsídios ao legislador na elaboração de leis. Note-se, para que o costume esteja em conformidade com a lei, não é necessário que esta faça expressa referência à conduta costumeira, basta que o costume não viole, não seja contrário às normas processuais. Já o costume contra a lei não é fonte de direito, mas do arbítrio e da ilegalidade.

Jurisprudência já foi expressão empregada com o significado de Ciência do Direito.

Hoje, a expressão é empregada em dois sentidos. Por um deles entende-se jurisprudência o conjunto de decisões judiciais, e pelo outro, que parece mais científico, significa o conjunto de princípios, teorias e doutrinas estabelecidas pelas decisões judiciais.

No sistema brasileiro, a jurisprudência não vincula, salvo em hipóteses legais excepcionais, com obrigatoriedade as decisões dos juízes (na ação direta de inconstitucionalidade, na ação declaratória de constitucionalidade, na arguição de preceito fundamental, a súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas). O fato de que a um determinado caso seja dada, reiteradamente, a mesma solução pelos tribunais, não obriga a que o juiz decida de acordo com aquela solução. Pode o magistrado, interpretando a lei, chegar à decisão diversa da que é normalmente acatada na jurisprudência pacífica ou dominante, sem que se possa dizer que sua decisão seja injusta ou contrária ao direito.

A jurisprudência é, portanto, fonte subsidiária do direito. As decisões anteriores auxiliam na tarefa de interpretação da lei. Colaboram para a integração e aplicação do direito e contribuem para a elaboração e reforma das leis. Esta contribuição que a jurisprudência presta para a elaboração da lei pode ser vista, inclusive, pelo ponto de vista histórico pois, como escreve Giuseppe Chiovenda, “o juiz aparece, no princípio, livre em seu julgamento, conquanto orientado pelo senso comum jurídico ou pelo costume: é graças à obra dos juízes que se forma lentamente a legislação”.

Como foi dito, a jurisprudência concede subsídios para a interpretação e aplicação do direito. Mas só isso. Quando o juiz encontra razões interpretativas para dar outro sentido à lei, diverso do encontrado pelas decisões anteriores, há de fazê-lo prevalecer. Sobre os magistrados que se prendem à jurisprudência como se fosse fonte vinculante do direito, as palavras de Nélson Hungria: “Da mesma tribo do juiz técnico-apriorístico é o juiz fetichista da jurisprudência. Esse é o juiz burocrata, o juiz de fichário e catálogo, o juiz que se põe genuflexo diante dos repertórios jurisprudenciais como se fossem livros sagrados de alguma religião cabalística. Para ele, a jurisprudência é o direito imutável e eterno: segrega-se dentro dela como anacoreta na sua gruta, indiferente às aventuras do mundo. Será inútil tentar demovê-lo dos seus ângulos habituais. Contra a própria evidência do erro, ele antepõe, enfileirados cronologicamente, uma dúzia ou mais de acórdãos, e tranquilo, sem fisgadas de consciência, repete o ominoso brocado: error communis facit jus. À força de se impregnar de doutrina e jurisprudência, o juiz despersonaliza-se. Reduz sua função ao humilde papel de esponja, que só restitui a água que absorve. Constrói no seus espírito uma parede de apriorismos e preconceitos jurídicos, que lhe tapam as janelas para a vida. Suas decisões semelham, pela ausência de espontaneidade, às declarações de amor decoradas no Conselheiro dos Namorados. Enquadrado o seu pensamento nos esquemas fechados do teorismo científico ou do casuísmo curial, sua alma se estiola e resseca, impassível aos dramas que vêm epilogar-se nas salas dos tribunais. Não sente o direito, que ele só conhece e declara dentro de fórmulas invariáveis e hirtas. Exerce a função tão fria e impessoalmente como o empregado de aduana ao classificar mercadorias sob as rubricas da tabela tarifária” (HUNGRIA, Nélson. opus cit. v. I, tomo I, p. 77 e seg.).

Doutrina são as pesquisas, monografias e tratados dos estudiosos do direito. São as opiniões dos juristas sobre como devem ser dadas as soluções jurídicas, como devem ser interpretadas as normas e os sistemas e noções que elaboram.

A doutrina, como fonte subsidiária, auxilia para a interpretação, aplicação e elaboração das leis. Sua importância está em sistematizar metodicamente a matéria jurídica, estabelecer as noções e princípios básicos, facilitando assim o estudo do direito.

A doutrina é fonte subsidiária, não vincula. Porém, não foi sempre assim. Na realeza romana, escreve Cretella Júnior, as fontes do direito resumiam-se à lei e ao costume. Na república romana, além destas duas fontes, do plebiscito e dos editos dos magistrados, aparece a interpretação dos prudentes. A interpretação dos prudentes, que era chamada pelos romanos de jurisprudência, equivale, hoje, ao que chamamos de doutrina: os comentários que os estudiosos fazem à lei. Mas, nesta época, a interpretatio prudentium ainda não adquirira força obrigatória. A força dos pareceres nasce com o jus publice respondenti (o direito de responder oficialmente às consultas) dos prudentes oficializado por Augusto. Antes de Augusto, as responsa eram dadas sem autorização do Estado. É ele quem determina que as consultas sejam dadas escritas e assinadas (CRETELLA JÚNIOR, J. opus cit. v. I, tomo I, p. 77 e seg.).

Os princípios de direito como fonte de direito são aquelas normas elementares ou diretrizes que, por terem conduzido a tarefa de legislar, integram o ordenamento jurídico, formando seu alicerce.

Na busca da solução jurídica para as questões legais, Giovanni Leone sugere recorrer aos princípios gerais do ordenamento jurídico processual penal (ampla defesa, oficialidade, in dubio pro reo, etc.). Não se encontrando neles a solução, recorre-se aos princípios do ordenamento processual em geral; depois aos princípios do direito público e, por último, aos princípios do ordenamento jurídico como um todo (LEONE, Giovanni. opus cit. v. I, p. 64).


CAPÍTULO 14 – CONCEITO DE PROCESSO

O termo “processo”

O termo processo tem ascendência medieval italiana (processus iudicii). Antes se usava a expressão originária do direito romano “iudicium” que deriva de “iudicare” (declarar o direito). A inconveniência do termo juízo, suja origem é “iudicium”, resulta de duas razões. A primeira é que ele não tem força para compreender as fases instrutória e a executória do processo penal (TORNAGHI, Hélio. opus cit. v. I, p. 308). A segunda razão da inconveniência é que a expressão parece limitar a autoria dos atos processuais ao juiz quando, sabe-se, participam do processo outros sujeitos.

Mas a superioridade do termo processo sobre o juízo não está somente nas deficiências deste último. Está também em que a palavra processo, inclusive em suas origens, reflete, como nota Wach (apud CATILLO, Niceto Alcala-Zamora, LEVENE HIJO, Ricardo. opus cit. v. I, p. 16) a ideia de marcha, ou movimento, dirigida para uma meta ou finalidade.

É o que representa o processo penal: um movimento dirigido ao fim de aplicar a lei penal.

Visão externa e interna

Visualizando o aspecto exterior do processo estaremos nos deparando com o seu procedimento.

Procedimento é a forma de agir. Existem procedimentos para a inscrição no vestibular, para a decolagem de uma aeronave, para dirigir um automóvel e, também, para comer à mesa.

O procedimento do processo é aquele conjunto de atos que se sucedem em uma sequência coordenada. É, ainda, a forma de cada um destes atos.

Mas o processo não é só sua ritualidade e suas conformações. Há nele um aspecto interior. Neste estão os direitos, obrigações, relações e situações jurídicas. Os direitos e as obrigações dos sujeitos processuais compõem as relações jurídicas. Os feixes ou conjuntos de relações jurídicas que se sucedem na medida em que se desenvolve o processo formam as situações jurídicas.

Processo e procedimento

Os praxistas não distinguiam processo de procedimento. Tal se deve a que, naquele tempo, ainda não se havia estudado cientificamente a natureza do processo para revelar do que se constitui seu interior.

Atualmente, processo e procedimento não são confundidos. O processo é mais que procedimento. O procedimento é apenas um dos elementos do processo. Pode haver procedimento sem processo, porém, não há processo sem procedimento. O processo, além de procedimento, envolve um conjunto de relações jurídicas.

Conceito

Iniciaremos descrevendo e comentando os elementos que integram o conceito de processo penal para, após, enunciá-lo.

O processo penal não pode ser realizado do lado de fora das portas do Poder Judiciário. A interferência de órgãos da jurisdição penal não pode ser substituída por árbitros. Mesmo que as partes assim o desejem. É o princípio do segundo o qual inexiste pena sem que seja aplicada pelo juiz. Para que com o processo se possa aplicar a lei penal, imprescindível é a decisão jurisdicional. Mas, observe-se, nele não atuam somente os órgãos de jurisdição. Muitos atos são realizados com a colaboração das partes. Ministério Público e defesa prestam auxílio à atividade processual para que seja esclarecida a verdade real sobre a qual incidirá a lei penal. Aqui, o primeiro elemento do conceito de processo penal: atividade em que atuam órgãos jurisdicionais e as partes.

Esta atividade não é realizada a bel-prazer de quem quer que seja. A forma, o tempo e o lugar dos atos são regulamentados pela lei. Mais especificamente pela lei processual penal.

O processo é constituído por um conjunto de atos com sucessão e formas preestabelecidas. É o aspecto exterior (o procedimento) do processo que não pode ser posto de lado na conceituação.

Constituído também por um conjunto de relações e situações jurídicas. As relações jurídicas no processo nascem, modificam-se e, extinguem-se na medida em que ocorrem os fatos jurídicos. Os feixes de relações jurídicas formam as situações jurídicas.

A finalidade desta atividade e deste conjunto de relações jurídicas processuais não é apenas chegar à sentença definitiva. O processo penal não termina com o trânsito em julgado da sentença. A res judicata é apenas meio caminho andado. Há ainda a execução, fase do procedimento que não escapa dos limites do processo.

O processo visa aplicar a lei penal a casos concretos. Aplicar a lei penal é determinar, através da sentença, qual a relação jurídica substancial penal que vincula o Estado ao acusado e executá-la.

Aplicar a lei penal a casos concretos, pois o processo não tem fins teóricos, acadêmicos. Seus fins são práticos.

Diante destas considerações, conceituamos o processo penal como a atividade, regulada por lei, que tem por fim aplicar a lei penal a casos concretos, através da atuação de órgãos jurisdicionais e partes, sendo constituída por um conjunto de atos com sucessão e formas preestabelecidas e por relações e situações jurídicas.


CAPÍTULO 15 – PROCESSO PENAL E PROCESSO CIVIL

Semelhanças

Processo penal e processo civil possuem semelhanças e diferenças. Estas e aquelas serão abordadas neste capítulo para que, ao final, se verifique quais as consequências que delas decorrem para o estudo do direito processual.

Processo penal e processo civil, na essência, são instituições idênticas. São reguladas, diz Carnelutti, por ramos do direito (processual penal e processual civil) que se prendem a um mesmo tronco: o direito processual (apud CINTRA, Antonio Carlos de Araujo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Candido. opus cit. p. 21). Ambos são sucessões de atos coordenados, regulamentados por lei. Em ambos há atuação jurisdicional. Ambos são formados por relações e situações jurídicas, vale dizer, possuem a mesma natureza. Ambos têm a mesma finalidade, que é de aplicar a lei substantiva. Ambos são regulados por direito público, têm caráter instrumental e estão condicionados ao exercício da ação.

Em favor da identidade essencial dos dois processos acrescente-se o elemento histórico. Se, nos tempos primitivos, observa Florian (FLORIAN, Eugenio. opus cit. p. 22), o processo era único, foi paulatinamente e cada vez com mais intensidade acusando diferenças, até adotar a dupla forma, civil e penal.

Diferenças

Se é inegável a identidade essencial do processo penal e do processo civil, inegável também o é que circunstancialmente eles apresentam diferenças.

O processo penal contém sempre uma relação jurídica substancial regulada pelo direito penal que vincula o Estado e acusado. Procura-se, com a decisão jurisdicional, determinar o sujeito ativo desta relação de direito penal. O interesse público que existe na correta aplicação da lei penal faz com que se investigue, na jurisdição criminal, a verdade dos fatos. O processo penal, para atingir sua finalidade de aplicação da lei de fundo, busca a verdade material. O processo civil normalmente se contenta com a verdade formal, aquela que é levada ao julgador pelas partes.

Enquanto o processo penal, é absolutamente necessário para a atuação da lei substantiva, o civil não, nele a obrigação substantiva pode ser realizada sem processo. A revelia, naquele, pouco significa; neste, falta de contestação implica confissão. Naquele, a ação, exercida normalmente por um órgão público, é obrigatória e, no processo civil, a ação, de legitimidade geralmente de particulares, é facultativa. No processo penal não pode haver desistência, transação, conciliação (salvo no caso de delação premiada e nos métodos de composição do juizado especial); no processo civil estes institutos estão autorizados.

Consequências das diferenças circunstanciais

Quanto à consequência das diferenças dos processos, Leone é convincente quando sustenta que estas “devem ser consideradas a fim de confirmar a diversidade das regulamentações processuais, as quais não se prestam a fáceis aproximações” (LEONE, Giovanni. opus cit. v. I, p. 15).

Pertence ao passado a regulamentação única do processo. Hoje, a ciência processual penal é autônoma em relação à processual civil. Os princípios do direito processual, numa e noutra área, adquiriram conformação e intensidade próprias. Um código único deixaria o intérprete confuso, pois transbordaria de exceções a regras e de exceções a exceções. Haveria prejuízo para a segurança que se exige do direito. São as razões pelas quais possuímos uma regulamentação própria para o processo civil e outra para o processo penal.


CAPÍTULO 16 – FASES

Noções

O processo, assinala Calamandrei, apresenta uma série de fases, cada uma das quais constitui uma etapa do processo em sua totalidade (apud LEONE, Giovanni. opus cit. v. I, p. 14).

Giovanni Leone pondera que as fases em que se divide o processo têm uma função e, portanto, também uma estrutura, nas quais se observam notáveis diferenças. As fases do processo – prossegue – têm, todas elas, uma mesma finalidade; mas cada uma tem uma certa configuração particular, que reflete uma finalidade que lhe é própria e que, não somente está dissociada da finalidade do processo em seu conjunto, como está em conexão com ela (LEONE, Giovanni. opus cit. v. I, p. 14).

As fases

O processo penal pode ser dividido em seis fases, que são a postulatória, a probatória, a de razões, a decisória, a recursal e a executória. As cinco primeiras reunidas constituem a chamada fase declaratória, na qual se procura individuar a relação jurídica de direito penal.

Postulatória é a fase inicial do processo. É nela que a acusação, com a denúncia ou queixa, pede ao juiz a aplicação do direito penal a um caso concreto.

A fase probatória ou instrutória tem por objeto o recolhimento de material para determinar, pelo menos aproximadamente, se o fato delituoso foi cometido, quem é seu autor e qual a sua culpabilidade (FLORIAN, Eugenio. opus cit. p. 138).

Na fase de razões, também chamada fase de alegações ou de debates, as partes, cada uma à sua maneira e segundo o interesse que representam, fornecem ao julgador a interpretação que consideram deva ser dada à prova.

É na fase decisória que o julgador decide sobre a procedência ou não do pedido do autor, condenando ou absolvendo o acusado. Fase de razões e fase decisória, juntas, formam uma fase maior chamada juízo.

Na fase recursal, a parte descontente requer à instância superior que seja alterada a decisão.

Na última fase, executória, o Estado faz valer a relação jurídica substancial declarada na sentença. Há quem pense que esta fase não faz parte do processo. Este entendimento pode estar correto para o processo civil pois, como diz Couture, “a execução civil não é obrigatória, já que muitos são os processos que não geram, nem necessitam de execução coativa” (COUTURE, Eduardo. Introdução ao estudo do processo civil. Rio de Janeiro, José Konfino, 1951. p. 59). Para o processo penal não vale o entendimento. Nesta área, a execução não é um novo processo, mas sua continuação. A finalidade do processo é a aplicação da lei penal. A fase declarativa termina com a aplicação em tese da lei e a executiva cumpre a aplicação prática, real, da lei. Não é possível sustentar que o processo penal finda com o trânsito em julgado da sentença, pois tal implicaria na ideia de um processo que não cumpre toda a sua finalidade. Seria um processo que declararia a lei penal mas não a executaria. Se é certo que a finalidade do processo é a de aplicar a lei penal, necessário é que a execução o integre. Não se pode falar em aplicação sem execução.

Na fase processual de execução atua a jurisdição auxiliada pela administração. Nesta etapa haverá pedidos e decisões judiciais versando sobre suspensão condicional da pena, livramento condicional, indulto, regime de prisão, etc.

Saliente-se, ainda, como o fez Zamora (CASTILLO, Niceto Alcala-Zamora; LEVENE HIJO, Ricardo – opus cit. v. I, p. 29), que a execução não é apenas da condenação. Também existe execução de sentença absolutória. É o caso da liberdade para o preso preventivamente.

Observação

Estas fases que compõe o processo não possuem limites rígidos. Atos próprios de uma fase são realizados em outras. Na fase recursal há sempre postulação e, às vezes, instrução. Existem recursos na fase instrutória. As razões ou alegações são uma constante em toda a atividade processual. São frequentes as decisões na fase instrutória. E execução na instrução? Não existe. Há apenas a aparência de execução na instrução no caso de prisão preventiva.

Localização do inquérito policial

O inquérito policial não encontra lugar no interior de nenhuma destas fases do processo. Situa-se fora do processo. Só se admite o inquérito como integrante do processo se empregarmos a palavra processo em consideração ao seu aspecto exterior, como conjunto de atos (como procedimento). Pondera Tornaghi que “não há erro, como por vezes se afirma, em chamar processo ao inquérito. Deve subentender-se que a palavra não está sendo usada para significar relação processual que, em regra, se inicia com a acusação” (TORNAGHI, Hélio. opus cit. v. I, p. 308). Entendido o processo como conjunto de relações jurídicas regulamentadas pela lei processual, inquérito não é processo. E a razão disto está em que as normas que versam sobre o inquérito policial, contidas no texto do Código de Processo, inobstante sua localização e eventual implicação com o processo, são normas de direito administrativo pois disciplinam a atividade de polícia, que é órgão da administração pública.


CAPÍTULO 17 – OBJETIVOS DO PROCESSO

Finalidade direta

Finalidade direta do direito processual penal é a regulamentação do processo penal e, indireta, a aplicação da lei penal.

Pois bem, a finalidade direta do processo penal coincide com a indireta do direito que o regulamenta: a aplicação da lei penal.

A aplicação da lei penal no processo se dá tanto no momento declarativo como no executivo e é expressão que pode ser interpretada em quatro sentidos, dois deles derivados do primeiro momento e, os outros dois, do segundo.

Aplicar a lei penal, portanto, como finalidade imediata do processo, pode significar:

1º) a absolvição do acusado que não praticou fato previsto como crime ou daquele que não teve provada suficientemente sua culpa;

2º) a condenação, pela sentença, do acusado infrator da lei penal e a determinação das consequências cabíveis (pena, etc.);

3º) a execução da sentença absolutória. Deve o Estado assegurar a liberdade de ir e vir do absolvido;

4º) a execução da sentença condenatória. O processo penal, aplicando a lei penal, também executa a pena da condenação. Daí por que a inclusão que fizemos da fase executória penal no processo.

Finalidade indireta

Sendo a finalidade direta do processo penal aplicar a lei penal, a indireta não pode ser outra senão a mesma que a do direito penal. Como escreve Florian, o fim indireto do processo penal “se identifica com o do direito penal enquanto está dirigido para a realização do mesmo”( FLORIAN, Eugenio. opus cit. p. 58).

Finalidade indireta ou remota do processo penal é portando a defesa social contra o crime (id.ibid.inf.), resguardar a ordem jurídica e a paz social (THEODORO JÚNIOR. opus cit. v. I, p. 9), a defesa da sociedade (BRUNO, Aníbal. Direito Penal. opus cit. v. I, tomo I, p. 2), proteger a ordem jurídico-social (MARICONDE, Alfredo Velez. opus cit. v. II, p. 45), restaurar a ordem jurídica perturbada (CASTILLO, Niceto Alcala-Zamora; LEVENE HIJO, Ricardo. opus cit. v. I, p. 29).

É interessante ressaltar que o processo não atinge seu objetivo apenas naquelas etapas declarativa e executória. A própria atividade judiciária contribui para este fim na medida em que, como nota Schmidt, a realização do direito penal com o processo demonstra a seriedade das sanções penais e contribui para o reforço de seus efeitos preventivos (SCHMIDT, Eberhard. opus cit. p. 23).

Outra finalidade

Pode ainda ser acrescentada outra finalidade do processo penal, a qual nasceu de uma necessidade histórica. É a de prevenir ou a de substituir a vingança privada. A atividade persecutória estatal que se desenvolve com o processo penal produz no ofendido pelo crime (ou nos seus familiares) o efeito psicológico de refrear seu impulso e seu sentimento de vingança.


CAPÍTULO 18 – OBJETO

A posição clássica

Na posição doutrinária clássica, o objeto do processo era visto como a relação jurídica de direito penal (a relação jurídica substantiva ou material) que, nascida da prática de fato previsto como crime, vinculava o Estado, ao acusado, aquele detendo o direito de punir e esse com a obrigação de sujeitar-se à pena.

A crítica

Esse entendimento passou a sofrer severas críticas. A mais importante delas foi realizada com a seguinte argumentação: o objeto do processo não é a relação jurídica substancial, pois quando ocorrer de o fato imputado não constituir crime ou o acusado não ser o seu autor, dar-se-á o absurdo de um processo sem objeto.

Novas posições

A crítica formulada pareceu instransponível à doutrina e, em conseqüência, passou-se a perquirir por um novo objeto para o processo para tomar o lugar da relação jurídica material.

O jurista italiano Giovanni Leone vê no interior da atividade processual penal uma oposição entre o direito subjetivo de punir e o direito de liberdade do indivíduo. Partindo daí, conclui: “o objeto genérico do processo penal é o conflito entre o direito subjetivo do Estado de castigar e o direito de liberdade do cidadão; objeto específico é o conflito entre esses mesmos direitos em relação a uma imputação determinada” (LEONE, Giovanni. opus cit: v. I, p. 246).

Já outros estudiosos sustentam que o objeto do processo é o pedido de tutela jurisdicional. Entre estes, está o José Frederico Marques, que pondera: “uma vez que a relação jurídico-material em que se consubstancia o direito reclamado pelo autor pode não ter existência seria desacerto apontá-la como conteúdo ou objeto material do processo, pois ter-se-ia de admitir que, em algumas hipóteses, o processo ficaria sem objeto” (MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1977, v. I, p. 116).

Para Alfredo Mariconde, objeto do processo “es la representación conceptual de um asunto concreto de la vida en torno del qual gira el proceso: es decir, la hipótesis de un acontecimiento histórico, de um hecho determinado que se presume cometido y de considera desde el punto de vista del derecho penal: un asunto hipotético o algo pensado como contrario a uma norma penal del qual surge uma pretención repressiva”. E, a seguir, procura demonstrar a vantagem de sua identificação de objeto: “de modo que si el julgador llega a comprobar, después de constituída la relación, que esse acontecimiento no existió, es decir, que el hecho imputado no fue cometido, no puede decirse, ciertamente, que aquella careció de objeto antes de esa comprobación” (MARICONDE, Alfredo Velez. opus cit: v. II, p. 62).

Não convencem nem o objeto genérico nem o específico sugeridos Giovanni Leone. O genérico não convence porque no ordenamento jurídico (no direito objetivo), inexistem conflitos entre direitos. Pretender que dois direitos conflitem em abstrato é desejar transformar o ordenamento no “desordenamento” jurídico. Os direitos à inviolabilidade de domicílio e o de entrar no domicílio sem a permissão do proprietário convivem em perfeita harmonia na esfera normativa. Um está sujeito a certas condições de fato preestabelecidas e o outro a condições de mesma natureza (de fato e preestabelecidas), porém diversas.

Se o direito de punir não esgrima com o de liberdade no plano abstrato, o mesmo acontece em nível de relacionamento concreto. Não existe conflito entre o direito de liberdade e o de punir frente a uma imputação determinada. Frente a condições de fato, concretas, o oficial de justiça não pode ter o direito de entrar no domicílio concomitantemente ao direito do morador de não ter invadido seu domicílio (ou existe ou não existe a ordem da autoridade competente). “A” não pode ter o direito de exigir dada conduta de “B” ao mesmo tempo em que este tem o de não realizar esta conduta. Ou um ou outro! Nem os direitos de ação e exceção encontram-se em linha de choque no processo, pois não se dirigem de um titular ao outro, mas a uma pessoa distinta que é o juiz.

O que se passa no processo penal é que nele existe ou um ou o outro direito. Ou encerra o direito de liberdade ou o direito de punir, pois houve ou não crime, e o acusado é ou não seu autor. A existência concomitante de ambos é ideia desprovida de lógica.

Também não é o pedido de tutela jurisdicional o objeto do processo. É verdade que tanto no início como na continuação da atividade desenvolvida no processo, autor e réu reclamam jurisdição. Porém, nem sempre as relações jurídicas que compõe o processo têm por objeto a prestação de jurisdição, como é exemplo aquela que vincula o juiz à testemunha, o primeiro com o direito e esta com o dever ao comparecimento.

Objeto do processo não é a jurisdição ou o pedido de jurisdição. Jurisdição pode ser, sim, objeto da ação. Processo é ação. Processo é exceção. Processo é jurisdição. Não se pode considerar objeto do processo um dos elementos que o compõe (a jurisdição). Ademais, deve-se ter por objeto do processo “a matéria ou o tema sobre o qual se discute no processo mesmo e se decide pelo juiz (FLORIAN, Eugenio – opus cit. p. 49 ) e a prestação jurisdicional não é objeto de debate, ela é devida.

O processo é ação, a jurisdição e a relação (jurídica) entre a ação e a jurisdição. Estes são os três elementos do processo. A ação, isolada, é distinta do processo. Jurisdição também. Mas ação e jurisdição relacionadas (juridicamente) são o processo. O processo é relação jurídica que vincula as partes ao juiz, ou seja, a ação (e exceção é ação) à jurisdição).

Jurisdição é o poder de dizer o direito. Comumente é entendida como o poder de dizer o direito substancial. Daí afirmar-se que o processo é instrumento da jurisdição. Porém, o conceito de jurisdição não se esgota no poder de dizer o direito substancial. Jurisdição é também o direito de dizer e impor o direito adjetivo. É neste sentido que a jurisdição se apresenta como um dos elementos do processo – a ação é o outro. Quando se afirma que o conceito de processo é completamente distinto dos conceitos de ação e jurisdição, é porque reserva-se a expressão jurisdição o sentido de poder de dizer o direito material. O processo enquanto definida a jurisdição como poder de dizer o direito adjetivo -o magistrado conduzindo o processo e decidindo questões de natureza formal -, é jurisdição (relacionada com a ação através da lei processual).

Alfredo Mariconde propõe para objeto do processo a hipótese fática contida na acusação, sobre a qual versa o processo. Está correta essa posição. No processo, o que se discute, basicamente, é se o acusado praticou ou não o fato descrito na denúncia. Com o processo, se procura descobrir não se o fato descrito na denúncia é verdadeiro, pois que isso é impossível, já que a verdade escapa ao conhecimento humano. O que se procura estabelecer, perseguindo (persegue-se buscando se aproximar) a verdade através do acusatório/contraditório processual (e antes com o procedimento preponderantemente inquisitivo policial), é se há prova de que o fato descrito na denúncia ocorreu. Note-se: existir prova é distinto de estabelecer se é verdade. Prova é o indício ou o conjunto de indícios capazes de autorizar a convicção de que um fato existe, existiu ou existirá. Ver título Indícios, convicção e prova, em nossos comentário ao artigo 155.

Complementando a nova posição doutrinária com atualização da posição clássica

Objeto do processo é a hipótese delitiva contida na peça acusatória inicial. Essa ideia merece complementação.

Objeto imediato do processo é a hipótese delitiva. Mediato é a relação jurídica substancial.

A relação jurídica substancial é regulada pelo direito penal. O direito penal objetivo não contém apenas o direito subjetivo de punir. Naqueles vácuos situados entre os tipos situados entres as normas incriminadoras, brota o direito subjetivo da liberdade. Há um aspecto do processo que é absolutamente certo: ou o acusado é inocente ou é culpado. Não há espaço para alternativa. Ou cometeu ou não cometeu um crime, vale dizer, ou existe o direito subjetivo de punir ou existe o direito subjetivo de não ser punido. Em conclusão, há, no processo:

a) ou uma posição jurídica de direito penal em que o Estado ocupa a posição de sujeito ativo e o direito subjetivo é o de punir com a obrigação do acusado de sujeitar-se à pena;

b) ou uma relação jurídica de direito penal em que o acusado ocupa a posição de sujeito ativo e o direito subjetivo é o de liberdade com a obrigação do Estado de respeitá-lo e assegurá-lo.

Assim, concluímos:

Objeto imediato do processo penal hipótese delitiva contida na inicial acusatória.

Objeto mediato é a individualização da relação jurídica substancial, a qual pode conter ou o direito de punir do Estado ou o direito de liberdade do acusado.

Visto sobre outro ângulo, o objeto do processo, a identificação da relação jurídica material, se exterioriza na hipótese delitiva contida na inicial acusatória, na determinação dela ser ou não verdadeira. Aquele é o objeto do processo do ponto de vista interno, este do externo.


CAPÍTULO 19 – O LITÍGIO

Há conflito de interesses no processo penal?

Carnelutti define litígio como o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos interessados e pela resistência do outro (CARNELUTTI, Francisco. opus cit. v. I, p. 44). Sustenta que o conceito de litígio é aplicável tanto ao processo penal como ao civil.

A nosso ver, existe lide penal mas não há conflito de interesses no processo penal e, assim, definimos lide de outra forma.

O interesse social é de justiça. Este interesse maior se conjuga de dois: o interesse de que os culpados sejam punidos e o interesse de que os inocentes sejam absolvidos.

A sociedade tem interesse na punição dos culpados, pois admite-se que não ficando impunes os delitos haverá uma redução da criminalidade dado à efeitos repressivos/preventivos da pena.

O corpo social tem interesse na absolvição dos inocentes, pois só assim o cidadão honesto terá a tranquilidade e segurança necessárias para conviver socialmente com a certeza que nunca sofrerá uma condenação injusta.

No processo penal incumbe à acusação velar pelo interesse social de punição dos culpados. À defesa, o encargo de proteger o interesse social de absolvição dos inocentes. Como estes dois interesses não se opõem, muito pelo contrário, se complementam, não se pode falar de conflito de interesses.

Pretensão insatisfeita

Não há lugar no processo penal para o conflito de interesses. Porém, o mesmo não pode ser dito para a pretensão insatisfeita. A afirmação que segue é incontroversa: ou o acusado é culpado ou é inocente. Se for culpado, existe no processo direito de punir do Estado e a obrigação substancial do acusado submeter-se à pena, vale dizer, há no processo a pretensão punitiva estatal que é insatisfeita porque a ela o acusado, em razão do processo, se opõe. Se o acusado for inocente tem este o direito substancial de liberdade e o Estado a obrigação de assegurá-la em toda a sua extensão. É insatisfeita a pretensão do acusado inocente porque, mesmo respondendo solto ao processo, seu direito de ir e vir está, mais ou menos, restringido. A liberdade substancial a que tem direito não está lhe sendo concedida em toda a plenitude devida.

O litígio

O litígio para Carnelutti é essencial ao processo. Diz o conhecido jurista que o litígio está presente no processo como a enfermidade na cura. Mas os dois não se confundem – prossegue – litígio não é processo, mas está no processo. O processo se presta para solucioná-lo. Entre processo e litígio medie la misma relación que entre continente e contenido (CARNELUTTI, Franciso. opus cit. v. II, p. 3).

O que é litígio? Calamandrei observou que entre os estudiosos o significado desta palavra é impreciso e múltiplo (apud CARNELUTTI, Franciso. Estudios de derecho procesual . Buenos Aires, Jurídica Europa-America, 1952. v. I, p. 44).

A pretensão insatisfeita contida no processo, seja seu titular o Estado ou o cidadão, dá origem ao debate processual. Para usar termos mais amplos, dá origem à discussão ou à controvérsia processual. Acusação e defesa, cada uma à sua maneira, interpretam a prova e sugerem ao juiz as normas a serem aplicadas. Litígio penal é, portanto, a controvérsia processual estabelecida em consequência da insatisfação da pretensão penal substantiva. Pretensão insatisfeita que é ou do acusado ou do Estado.

Interesses irrelevantes juridicamente

Contudo, ressalve-se, quando sustentamos que não existem conflitos de interesse no processo penal, e não a “subjetivos”. Os interesses subjetivos no processo são circunstanciais, variáveis. O interesse do acusado, mesmo culpado, naturalmente e quase sempre, é o de liberdade. O defensor, mesmo não acreditando na inocência, pode subjetivamente ter o interesse de que o acusado seja absolvido. Pode ocorrer também que o representante do Ministério Público, em determinada ocasião, correspondendo à deficiência da condição humana, mesmo ciente da inocência, deseje a condenação. A própria sociedade pode estar sujeita aos interesses “subjetivos”. Uma coletividade traumatizada pela criminalidade não pode ter outro interesse que não seja aquele que visa a condenação de quaisquer suspeitos e indiciados sem nenhuma culpa provada.

Estes conflitos subjetivos de interesse são eventuais, podem tanto estar como não presentes no processo. É por serem humanos, eventuais, variáveis, que não possuem relevância jurídica.

A relevância deles não transpõe os limites da Psicologia Judiciária. Por isso, no terreno estritamente jurídico e técnico, não se pode falar em conflito de interesses.


CAPÍTULO 20 – TIPOS

Acusatório

O desenvolvimento histórico conheceu três tipos, sistemas ou formas de processo penal: o acusatório, o inquisitório e o misto.

Na Grécia, na República Romana e no direito germânico imperou o sistema acusatório que, em linhas gerais, era dotado das seguintes características:

– acusação, defesa e jurisdição exercidas por pessoas distintas;
– a acusação entregue a particular;
– o contraditório;
– a liberdade do acusado no decorrer do processo como regra;
– a publicidade;
– a oralidade;
– a verdade processual estabelecida pelas partes;
– a falta de poder do julgador para intervir na instrução probatória;
– o início e o andamento do processo dependentes da atividade das partes;
– o acusado como sujeito de direito.

Os princípios da legalidade, verdade real, indisponibilidade, impulso oficial e da oficialidade, resultam da indisponibilidade do objeto do processo (da relação jurídica substancial que é investigada).

Como o objeto do processo do tipo acusatório é disponível, decorre não vigerem nele aqueles princípios. Não há legalidade, pois o início do processo depende da vontade da parte legitimada para propor a ação. A verdade real fica prejudicada visto a verdade ser estabelecida pelas partes. disponibilidade ou seja, a parte pode desistir do andamento da ação. O impulso oficial condiciona-se aos estímulos das partes. A acusação, em vez de ser entregue a um órgão do Estado, oficial portanto, é exercida por particulares, pelo ofendido ou por qualquer do povo.

Doutrina

Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa: Quando o juiz trata o Ministério Público como incapaz ou incompetente. Conjur.

Flavio Meirelles Medeiros: A fábula da igualdade no processo-crime. Conjur.

Rivaldo Pereira Neto: Poderes oficiosos em matéria probatória e a imparcialidade do juiz penal. Faculdade de Direito. Universidade de Lisboa.

Inquisitivo

O processo do tipo inquisitivo, que foi colocado em prática na fase imperial romana, atingiu seu auge na Idade Média. Adotado pelo direito canônico, a seguir, difundiu-se aos ordenamentos europeus.

No processo do tipo inquisitivo, as funções de acusar, defender e julgar ficavam a cargo de um único órgão. Nas ocasiões em que a função de acusar foi entregue a um órgão distinto, este pertencia ao Estado, era oficial. A prisão provisória do acusado era regra e a liberdade, a exceção. Imperavam a escritura e o segredo. Eram amplos os poderes do julgador, o qual, encarregado do início, do andamento e da instrução probatória do procedimento, investigava livremente os fatos, realizando as diligências que entendesse necessárias. O acusado era visto como objeto de investigação. O valor das provas era preestabelecido em lei.

Distinção

O que distingue o sistema acusatório do inquisitivo? Certamente não são suas formas secundárias como a escritura e o segredo em um, e a oralidade e a publicidade no outro.

É difundida entre os escritores a diferença essencial dos dois sistemas como sendo a que segue: no processo do tipo inquisitivo, as funções acusar, defender e julgar são exercidas por um único órgão; no acusatório, estas funções são distribuídas entre órgãos distintos.

O entendimento é correto, mas não de todo. Este traço, apontado como fundamental na distinção, considera meras conformações exteriores dos dois sistemas. O que substancialmente os distingue são os poderes que são concedidos ao julgador. No processo do tipo acusatório, o julgador não possui poderes para investigar a verdade, julga de acordo com a verdade oferecida pelas partes. No inquisitório, ao contrário, o julgador detém amplos poderes para investigar os fatos. Esta é a diferença essencial entre os dois sistemas. A distribuição das funções no acusatório a órgãos distintos não passa de consequência da impossibilidade de o julgador instruir a causa: se a ele não cabe instruir, necessariamente cabe a terceiros. A delegação de funções em um sistema e a acumulação em outro são características acessórias consequentes da diferença essencial apontada.

Sistema misto

Para o que a coletividade deseja hoje da justiça criminal, nem um nem outro sistema, em suas formas puras, representam bom instrumento. O inquisitório, outorgando amplíssimos poderes ao julgador, bem conduzido facilita a investigação da verdade real mas, por outro lado, a garantia que oferece ao acusado e a tranquilidade que dá à sociedade são pequenas.

O acusatório, por sua vez, concedendo maior tranquilidade ao meio social, não é o melhor sistema para que se determine a verdade real, ficando impunes os criminosos, principalmente quando poderosos.

Aproveitando as vantagens e procurando superar as desvantagens dos sistemas puros, surge o sistema misto. Este sistema foi adotado pelo Código de Napoleão (1808) e, na atualidade, está amplamente difundido nos ordenamentos jurídicos das nações civilizadas.

Entre nós, vigora o sistema misto. O sistema repressivo penal brasileiro realiza-se em duas fases ou etapas. A primeira fase é o inquérito policial, tipicamente inquisitivo: o indiciado pode não saber inicialmente do que é acusado, há possibilidade de ser feito em sigilo, não há, praticamente, contraditório, são amplos os poderes da autoridade para investigar o fato, etc. A segunda etapa é acusatória: há contraditório, são encarregadas pessoas distintas para exercer a defesa, a acusação e para julgar, a acusação é anterior à defesa, há publicidade, etc. Mas, ainda persistem alguns traços inquisitórios no curso do processo.

A indisponibilidade da relação jurídica material limita o alcance dos princípios que decorrem do significado do processo como garantia individual, entre eles, os princípios da ampla defesa e o acusatório. Nem tudo está entregue às partes. O impulso oficial é manifestação da indisponibilidade da relação jurídica material. Se o princípio acusatório fosse ilimitado, o juiz estaria não apenas vinculado ao pedido de absolvição do MP – e não está – como também este órgão poderia, a qualquer momento, desistir da ação. O processo é acusatório. Mas essa característica é mitigada pelo princípio da segurança constitucional, o qual insere no processo a indisponibilidade da relação jurídica material. O que há de inquisitório no processo provém do princípio da segurança constitucional (artigo 5o., caput, e artigo 144, caput da CF). E o que ele possui de acusatório tem por origem sua significação constitucional como garantia individual (artigo 5o., inciso LV da CF).

Fim

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